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Proc. nº 237/91
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e B., com os sinais dos autos, propuseram em Outubro de 1983 acção especial de despejo contra C., no Tribunal Cível de Lisboa. Invocaram os autores que eram proprietários de um prédio urbano identificado na petição inicial e que a ré habitava no primeiro andar direito desse imóvel desde 5 de Agosto de 1972, como sublocatária, sendo inquilina D.. Em 16 de Março de 1983, esta última havia declarado, por documento escrito, rescindir o contrato de arrendamento do andar habitado pela ré sublocatária, com efeitos a partir de 30 de Abril do mesmo ano e ter entregue o contrato de arrendamento outorgado em 1968 aos senhorios. De harmonia com a lei e com cláusula contratual constante do contrato de sublocação, a cessação do contrato de arrendamento implicaria a cessação do contrato de sublocação. Formularam em conformidade os autores, como pedido principal, a declaração de cessação do contrato de subarrendamento, nos termos do art. 1102º do Código Civil e, como pedido subsidiário, a resolução do arrendamento com fundamento na alínea g) do art. 1093º, nº 1, do mesmo diploma.
A acção foi indeferida liminarmente por ilegitimidade da ré. Os autores vieram, nos mesmos autos, corrigir a petição inicial, passando a formular um pedido de reivindicação do andar contra a ré. Ordenada a citação desta, veio ela requerer o chamamento à autoria da inquilina sublocadora, invocando a existência de um conluio entre esta e os autores, em fraude à lei, destinado à obtenção por estes do despejo do andar em causa. Os autores opuseram-se à dedução do incidente, sem êxito. A chamada veio aos autos declarar que não aceitava a autoria, pelo que a ré acabou por apresentar contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação. Sustentou nessa peça processual que o novo quadro constitucional em matéria de direito à habitação implicava a existência 'de um verdadeiro vinculum juris entre senhorio e sublocatário', daí decorrendo 'a necessidade do consentimento do sublocatário para que a denúncia operada pelo sublocador' lhe fosse oponível (a fls. 74 dos autos). Invocou ainda a actuação dos autores com abuso do direito de propriedade, actuação ilegítima nos termos do art. 334º do Código Civil.
No despacho saneador, proferido em 18 de Dezembro de
1987, o Senhor Juiz do 17º Juízo Cível de Lisboa conheceu desde logo do pedido, julgando a acção procedente e provada e condenando a ré a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o locado, a restituir o mesmo andar devoluto aos autores e a pagar a estes uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos causados pela ocupação ilícita e abusiva do fogo (a fls. 139 a 147 vº dos autos).
A ré interpôs recurso de apelação do saneador-sentença, o qual foi admitido. Nas alegações respectivas, sustentou que a interpretação perfilhada pelo juiz recorrido do art. 1102º do Código Civil era inconstitucional, por contrariar o disposto nos arts. 65º e 18º da Constituição, pois pressupunha uma concepção absoluta e individualista do direito de propriedade, 'que até o legislador de 1948 fez questão de repudiar expressamente no nº 4 do art. 61º da Lei 2030, de 22/06', sendo certo que o 'reconhecimento constitucional do direito à habitação e de sujeição do direito de propriedade e da iniciativa privada ao interesse geral' tinham de levar a uma outra interpretação da norma, tal como a por si preconizada. Pediu igualmente a concessão do benefício de apoio judiciário, o qual lhe veio a ser concedido por despacho de fls. 189 e 190.
Por acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 11 de Outubro de 1990, foi julgado improcedente o recurso de apelação, tendo sido considerado que não se mostravam violados os 'preceitos constitucionais apontados pela apelante, na medida em que é ao Estado e não aos particulares que compete assegurar habitação condigna aos cidadãos' (a fls. 204 vº). Deste acórdão e após o indeferimento de um pedido de aclaração por si formulado, veio a apelante a interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Este recurso foi admitido com efeito suspensivo por despachos de fls. 220 e 222, após cumprimento do ónus previsto no art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional pela recorrente.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
A recorrente pediu a revogação do acórdão recorrido e a declaração de inconstitucionalidade do art. 1102º do Código Civil, no caso de ser julgado inadaptável às normas constitucionais, formulando as seguintes conclusões:
'a) a actual interpretação dos artigos 1061º e 1102º do Código Civil tem de ser harmonizada com a igualdade constitucional entre o direito à propriedade privada do senhorio e o direito à habitação do sublocatário, cuja força vinculativa é geral, tal como a do igual direito do arrendatário;
b) essa interpretação é incompatível com a supremacia do primeiro sobre o segundo e com a visão estanque dos contratos de arrendamento e de subarrendamento;
c) a vontade de terceiros não é causa legítima de extinção dum direito sem a vontade do respectivo titular, desde que os direitos respectivos tenham igual força e dignidade constitucional;
d) assim, a extinção do arrendamento por denúncia do arrendatário aceite pelo senhorio, ou por qualquer outra forma acordada entre ambas, não produz a caducidade da sublocação;
e) por outro lado, o dever constitucional de fundamentação da decisão judicial só é observado quando esta permita verificar «se, e como, o juiz teve em conta a defesa das partes»;
f) não é esse o caso da decisão que se limita a afirmar um facto (não notório) essencial para defesa de uma das partes, desacompanhado de qualquer motivação;
g) porque assim não decidiu, o acórdão recorrido, entre outros, violou os artigos 18º, 62º, 65º, 81º, 205º, 207º e 208º da Constituição da República' (a fls. 238-239 dos autos).
Os recorridos, por seu turno, suscitaram uma questão prévia de falta de pressuposto processual do recurso de constitucionalidade e, quanto ao fundo, sustentaram a plena conformidade constitucional da norma do art. 1102º do Código Civil (alegações de fls. 240-244).
3. Pelo Acórdão nº 74/92, proferido em 25 de Fevereiro de 1992, foi decidido desatender a questão prévia suscitada pelos recorridos.
4. Foram corridos os vistos legais.
II
5. Importará começar por delimitar com rigor o objecto do presente recurso.
Trata-se de um recurso interposto ao abrigo de alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional - ou seja, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 280º da Constituição - pressupondo, portanto, que o tribunal recorrido haja aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Verifica-se pela análise dos autos que a recorrente suscitou nas alegações do recurso de apelação a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 1102º do Código Civil, na interpretação perfilhada pelo juiz de primeira instância. Esta foi efectivamente a única questão de constitucionalidade submetida ao Tribunal da Relação de Lisboa nos presentes autos, tendo este tribunal de segunda instância decidido que a mesma era improcedente.
Como resulta do Acórdão nº 74/92 do Tribunal Constitucional - através do qual foi desatendida a questão prévia suscitada pelos recorridos no que toca a uma invocada falta de pressuposto processual deste recurso, decisão que transitou em julgado - a questão de inconstitucionalidade da norma do art. 1102º do Código Civil, em certa interpretação, foi deduzida pela ora recorrente em momento processualmente adequado durante o processo, constituindo, assim, tal questão o objecto único do presente recurso.
Não integra, por isso, o objecto do recurso a questão da inconstitucionalidade da norma art. 1061º do Código Civil, a interpretação dela acolhida na decisão recorrida, ou a omissão do dever constitucional de fundamentação da decisão judicial que a recorrente imputa ao Tribunal da Relação de Lisboa, por ocasião da redacção do acórdão recorrido. Acrescente-se, ainda, que esta última omissão inconstitucional do dever de fundamentação - a existir - nunca poderia ser objecto de recurso de constitucionalidade, visto que este incide apenas sobre normas e não sobre actos judiciais ou administrativos contrários à Constituição (cfr. art. 280º, nºs 1 e 2, da Constituição e arts.
70º, nº 1, e 71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
Conclui-se, assim, que constitui objecto do presente recurso a imputada inconstitucionalidade do art. 1102º do Código Civil, na interpretação perfilhada no acórdão da Relação de Lisboa 'sub judicio.'
6. Dispõe o art. 1102º do Código Civil:
'O subarrendamento caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de arrendamento, sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando o motivo da extinção lhe seja imputável.'
Esta norma foi entretanto revogada, achando-se substituída pelo art. 45º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, o qual se limita a reproduzir ipsis verbis a norma acima transcrita, não alterando, por isso, o regime legal.
Tal revogação não obsta, porém, a que se conheça da questão da constitucionalidade da norma revogada no presente recurso, visto ter sido esta que foi aplicada, com a interpretação impugnada pela recorrente, na decisão recorrida.
7. O subarrendamento é um subcontrato de arrendamento. De um ponto de vista jurídico, não se confunde com a transmissão ou cessão da posição contratual de inquilino ou arrendatário. Em geral, o subcontrato é um 'contrato que alguém celebra, aproveitando a posição que lhe advém de um contrato anterior da mesma natureza.' (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 5ª ed., Coimbra, 1992, pág. 387). O Código Civil vigente consagrou mesmo uma noção legal de sublocação, no seu art. 1060º: 'a locação diz-se sublocação, quando o locador a celebra com base no direito de locatário que lhe advém de um precedente contrato locativo'. Enquanto que na cessão ou transmissão inter vivos da posição de locatário existe um único contrato de locação, relativamente ao qual, através de acordo, o locatário transmite a terceiro o complexo de direitos e obrigações que lhe advieram do mesmo contrato, com o consentimento do locador (cfr. art. 1059º, nº 2, do Código Civil), na sublocação ou no subarrendamento de bens imóveis existem dois contratos coligados ou conexos, um derivado do outro. A jurisprudência portuguesa, a partir do Decreto nº 5411, de 17 de Abril de 1919 e da Lei nº
1662, de 2 de Setembro de 1924, assentou numa noção de subarrendamento, susceptível de delimitar essa figura face à cessão de posição contratual:
'transferência total ou parcial do uso e fruição do prédio arrendado, feita pelo arrendatário, por tempo determinado e mediante certa retribuição' (José Pinto Loureiro, Manual do Inquilinato, vol. I, Coimbra, 1941, pág. 237), muito embora não contribuísse para tal delimitação rigorosa a equiparação dos regimes jurídicos da cessão de posição contratual de arrendatário e da sublocação operada pelo § único do art. 31º do Decreto nº 5411. Mas as noções aparecem claramente autonomizadas na doutrina portuguesa desde há muito:
'Na cessão, há uma transferência de direitos; o arrendatário deixa de figurar na relação jurídica, desaparece, sendo substituído pelo cessionário, que entra na posição jurídica do primitivo locatário. Na sublocação, pelo contrário, o arrendatário mantém-se; não cede o seu direito; não se deixa substituir; continua a ser, perante o senhorio, o único contraente. Na sublocação subsistem, pois, dois contratos de arrendamento, sendo o primeiro arrendatário senhorio em relação ao segundo, não se criando quaisquer laços jurídicos entre o verdadeiro senhorio e o segundo arrendatário'. (Parecer da Câmara Corporativa de 6 de Abril de 1961, nº 41, transcrito em Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra, 1986, pág. 427).
8. No plano da política legislativa, o regime da sublocação tem variado no tempo. O Projecto do Visconde de Seabra estabelecia que a validade da sublocação ficava dependente do consentimento do locador (art.
1865º). O Código Civil de 1867, porém, não acolheu a solução do Projecto, estabelecendo como princípio o da liberdade do locatário na celebração do contrato de sublocação quanto ao bem locado, desde que não houvesse cláusula de proibição da sublocação no próprio contrato de locação (Dias Ferreira sustentava que era preferível a solução definitivamente acolhida, porque não seria 'justo negar ao locatário, como negava o projecto primitivo, o direito de dispor livremente do uso da coisa, desde que ele fica responsável para com o senhorio pelo pagamento do preço locativo, e pelas mais obrigações derivadas da locação'
- Código Civil Português Anotado, 2ª ed., vol. III, Coimbra, 1898, pág. 194).
No Decreto de 30 de Agosto de 1907, restringiu-se a liberdade do locatário, determinando-se que a sublocação de qualquer prédio rústico ou urbano só produziria efeito em relação ao senhorio, quando este houvesse consentido nela, ou, nos casos em que o consentimento fosse desnecessário, quando lhe fosse notificada (art. 30º). Esta solução foi mantida pelo Decreto de 12 de Novembro de 1910, editado já pelo governo provisório republicano.
Em 1918, o Decreto nº 4499, de 27 de Julho, proibiu a sublocação de prédios urbanos sem a autorização do senhorio mas, no ano seguinte, o já citado Decreto nº 5411 regressou à doutrina do Código Civil de
1867, estabelecendo a possibilidade- regra de sublocação. A Lei nº 1662 acima referida suprimiu em 1924 a faculdade de o locatário urbano sublocar o bem arrendado, só a admitindo quando autorizada por lei, contrato ou consentimento escrito do senhorio (art. 7º). A sublocação não autorizada passou a constituir causa típica de despejo, estabelecendo-se também que o inquilino locador ou o sublocatário locador, no caso de sublocações sucessivas, só poderiam receber uma renda proporcional àquela que pagassem ao respectivo senhorio, aumentada de cinquenta por cento (cfr. J. Pinto Loureiro, ob. cit, I, págs. 239-240).
O regime de 1924 foi mantido pela Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, nos seus aspectos essenciais (cfr. arts. 59º a 63º). Segundo este regime, 'a cláusula permissiva de sublocação não dispensa a notificação [do senhorio], que terá de ser requerida no prazo de quinze dias' (art. 59º, nº 1,
1ª parte). O art. 61º, nº 1, estabelecia o princípio de que a sublocação caducaria com a extinção, por qualquer causa, do arrendamento, 'sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando aquele der motivo ao despejo ou distratar o arrendamento'. Todavia, o nº 4 consagrava uma importante garantia para o sublocatário: ' no caso de sublocação total, quando seja decretado o despejo ou distratado o arrendamento, o principal sublocatário nas condições do número anterior [isto é, o sublocatário que pudesse provar por documento 'que a sublocação foi notificada ao senhorio no prazo de quinze dias ou que o senhorio a autorizou especialmente ou reconheceu o sublocatário como tal]' pode, por meio de notificação judicial, vindicar, relativamente ao senhorio, o direito de se substituir ao arrendatário, assumindo as obrigações que este tinha para com aquele no momento do despejo ou distrate e ficando constituído para com o senhorio nas obrigações que tinha para com o sublocador'. A Lei nº 2030 permitia a absorção ex lege do contrato de sublocação pelo próprio contrato de locação: assim, se o proprietário recebesse directamente alguma renda do sublocatário e lhe passasse recibo, após a extinção do arrendamento, o sublocatário passaria a ser considerado arrendatário directo (art. 61º, nº 2); por outro lado, o senhorio tinha a faculdade de, mediante notificação judicial, se substituir ao arrendatário, 'considerando-se rescindido o primitivo arrendamento e passando o sublocatário ou sublocatários a arrendatários directos' (art. 62º). O art. 63º estabelecia uma presunção ilidível de existência de sublocação em certas situações.
O regime de 1948 veio a ser acolhido no essencial pelo Código Civil de 1966. Proibiu-se que o locatário pudesse 'cobrar do sublocatário renda ou aluguer superior ou proporcionalmente superior ao que é devido pelo contrato de locação, aumentado de vinte por cento, salvo se outra coisa tiver sido convencionada com o locador' (art. 1062º). No subarrendamento urbano, este contrato caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de arrendamento, sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando o motivo lhe seja imputável (art. 1102º). O art. 1103º recebeu o regime previsto no art. 61º, nº 2, e 62º da Lei nº 2030. Apenas a importante garantia consagrada no nº 4 do art. 61º da Lei nº 2030 - bem como a extensão do regime prevista no nº 5 desse mesmo art. 61º - não foi acolhida pelo Código de 1966. O regime do Código Civil passou intocado para o Regime do Arrendamento Urbano de 1990.
Acrescente-se que, após a Revolução de 25 de Abril de
1974, o regime do Código Civil de 1966 manteve-se substancialmente inalterado: o Decreto-Lei nº 420/76, de 28 de Maio, atribuiu ao subarrendatário, em caso de caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, um direito de preferência relativamente a novo arrendamento (cfr. art. 1º, nº 1, alínea a) ). A partir do Decreto-Lei nº 328/81, de 4 de Dezembro, o subarrendatário passou a gozar de direito a novo arrendamento no caso de caducidade do arrendamento para habitação por morte do arrendatário locador, verificadas certas circunstâncias
(art. 3º, nº 1, alínea b) ), solução que foi mantida pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro (art. 28º, nº 1, alínea b), e nº 2). Este direito cessava em certos casos, nomeadamente quando o senhorio pretendesse vender o fogo ou necessitasse dele para sua habitação (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., II vol.,
3ª ed., pág. 588; P. Romano Martinez, o Subcontrato, Coimbra, 1989, págs. 31 e
32).
9. A ora recorrente sustenta a inconstitucionalidade material do art. 1102º do Código Civil, na interpretação acolhida pelas instâncias, face aos arts. 65º e 18º da Constituição.
Nas suas alegações no recurso de apelação, a mesma recorrente invocou em abono da tese de inconstitucionalidade a solução acolhida no nº 4 do art. 61º da Lei nº 2030, referindo que o legislador de 1948 fora sensível às exigências de protecção dos sublocatários, repudiando, assim, uma concepção absoluta e individualista do direito de propriedade.
Terá a recorrente razão quanto à tese da inconstitucionalidade?
Responde-se negativamente a esta questão.
O art. 65º, nº 1, da Constituição afirma o princípio de que 'todos têm direito, para si a para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar'. Mas resulta dos nºs 2 a 4 do mesmo artigo que é ao Estado que incumbem certas obrigações para assegurar o direito à habitação, nalguns casos com a intervenção das autarquias locais.
Na doutrina constitucionalista, autores há que entendem que o direito à habitação, enquanto direito fundamental de carácter social, tem uma dupla natureza: por um lado, configurar-se-ia como um direito análogo a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 17º da Constituição), na medida em que tutelasse os cidadãos contra a privação arbitrária de habitação ou contra o impedimento na obtenção de uma habitação
(tratar-se-ia de um direito negativo ou de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros); por outro lado, e numa dimensão positiva, configurar-se-ia como um direito a prestações do Estado, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objectivo
(cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 5ª ed., Coimbra, 1993, págs. 344-346; dos mesmos autores, veja-se também Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, págs. 127-132). Outros autores consideram que o direito à habitação, enquanto direito fundamental de cariz social, não apresenta uma dupla natureza, antes se configura como uma pretensão jurídica tendo como objecto 'prestações não vinculadas', visto que as normas que o prevêem contêm simplesmente directivas ao legislador, sendo normas impositivas de legislação, 'não conferindo aos seus titulares verdadeiros poderes de exigir, porque apenas indicam ou impõem ao legislador que tome medidas para uma maior satisfação ou realização concreta dos bens protegidos'
(J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, Coimbra, 1987, reimpressão, pág. 206). Esta última postura tem sido igualmente criticada por quem entende que os direitos sociais adquirem uma densidade jurídica autónoma (veja-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, 1988, pág. 106).
Esta controvérsia doutrinária tem encontrado eco na jurisprudência do Tribunal Constitucional, havendo decisões que acolhem a ideia da dupla natureza dos direitos sociais e outras que dela se afastam (no primeiro sentido, veja-se o Acórdão nº 101/92, in Diário da República, II Série, nº 189, de 18 de Agosto de 1992, e os votos de vencido nele exarados; num sentido diverso, veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 130/92, também na segunda série do jornal oficial, nº 169, de 24 de Julho do mesmo ano).
Seja como for, não se crê que do art. 65º da Constituição de 1976 possa resultar um juízo de ilegitimidade constitucional superveniente do art. 1102º do Código Civil .Escreve-se no citado Acórdão nº
130/92:
'O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 205 e 209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderia exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei.' (no mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos nºs 131/92, no mesmo número e série do Diário da República e nº 151/92, no nº 172 da II Série, de 28 de Julho de 1992).
E no Acórdão nº 101/92, no quadro da dupla natureza atribuída ao direito fundamental à habitação, entendeu-se que a chamada vertente negativa do direito não comportava o entendimento de que tivesse de aceitar-se
'como constitucionalmente exigível que a realização daquele direito [estivesse] dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de terceiros (que não o Estado), direitos esses, porventura, também constitucionalmente consagrados, como sucede, aliás, com o direito de propriedade privada, elencado no título constitucional correspondente aos direitos económicos, sociais e culturais'.
Não pode deixar de acentuar-se que existem aqui interesses conflituantes entre sujeitos privados, no caso o senhorio e o sublocatário. O art. 1102º do Código Civil, conjugado com as restantes normas atrás citadas, estabelece uma solução que 'protege suficientemente a dimensão social mais premente do direito à habitação' (formulação do citado Acórdão nº
101/92), visto que, no caso de extinção reflexa da relação de sublocação - decorrente de extinção do contrato de arrendamento por qualquer causa - se cria uma responsabilidade do arrendatário - senhorio face ao sublocatário - inquilino, se a extinção do contrato principal for imputável àquele. Acresce a isto a consideração de que o Código Civil prevê mecanismos de natureza geral que poderão levar à responsabilização do próprio senhorio, se não mesmo à nulidade do acordo revogatório do contrato principal (bastará referir normas como as dos arts. 281º, nº 2, do Código Civil - nulidade do negócio se o fim do negócio for contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes - ou do art. 334º do mesmo diploma, sobre abuso de direito - cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, págs 707 e segs.).
A invocação da solução constante do nº 4 do art. 61º da Lei nº 2030 feita pela ora recorrente não se revela decisiva, no sentido de tornar constitucionalmente ilegítima a norma do art. 1102º do Código Civil, interpretada tal como o foi pelas instâncias. De facto, sendo indiscutivelmente aquela solução mais generosa para a subsistência de situação de morador efectivo do subarrendatário e podendo a mesma ser consagrada pelo legislador ordinário - visto a Constituição autorizar que a legislação de arrendamento para habitação seja acentuadamente vinculística, permitindo o sacrifício da propriedade privada e da liberdade contratual à concretização do direito à habitação das pessoas, já que, como se escreveu no citado Acórdão nº 151/92, se está num
'domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade é, talvez, mais forte' - a verdade é que o legislador a abandonou em 1966, afastando-se nesse ponto da proposta do Anteprojecto, e não mais a consagrou no nosso direito (na Itália, em 1988, o Tribunal Constitucional teve ocasião de considerar manifestamente infundada a questão da ilegitimidade constitucional da última alínea do art. 1595º do Código Civil, que estabelece a extinção do subarrendamento se se verificar a nulidade ou resolução do contrato principal - cfr. Roberto Praden e outros, Locazione e Costituzione, 2ª ed., Milão, 1989, págs. 35-36).
Ora, nesta matéria do direito constitucional à habitação, tem de ponderar-se que o seu grau de realização fica dependente sempre, em última análise, das opções que o Estado seguir em matéria de política de habitação, as quais são sempre condicionadas pelos recursos financeiros de que o próprio Estado possa dispor em cada momento (a chamada 'reserva do possível'). e pelo grau de sacrifício que o legislador considerar razoável impor aos proprietários privados, senhorios de casas de habitação.
Assim sendo, não é inconstitucional o art. 1102º do Código Civil, na interpretação perfilhada pela decisão recorrida, a qual coincide com a interpretação que um declaratário normal faz da lei. Tal interpretação não viola nem o art. 65º da Constituição, nem o art. 18º desta
última.
10. Para terminar, importa deixar vincado que este Tribunal não pode fiscalizar o modo por que as instâncias aplicaram outras normas do Código Civil - nomeadamente os arts. 240º, 280º e 334º - visto a sua competência estar limitada à questão de inconstitucionalidade suscitada. Tão-pouco lhe cabe apreciar a justiça da decisão impugnada, confrontada com outras soluções que a jurisprudência acolheu e que se acham invocadas pela recorrente nas suas alegações.
III
11. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando, em consequência, o acórdão recorrido.
Lisboa,12 de Maio de 1993
Armindo Ribeiro mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Luís Nunes de Almeida