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Proc. nº 89/93
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Na Repartição de Finanças do Concelho de Bombarral foram levantados, contra A. e B., autos de notícia relativos à prática de transgressões previstas e punidas nos termos das disposições conjugadas dos artigos 10º, 11º e 22º, nº 1, todos do Regulamento do Imposto de Compensação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 354-A/82, de 4 de Setembro, em virtude de não terem pago o imposto de compensação correspondente a um veículo automóvel de sua propriedade que utilizava combustível normal ou de substituição, não sujeito ao imposto que onera a gasolina, respeitante aos 4 trimestres de 1987 (fls. 3).
Remetido depois o processo ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Leiria, o senhor juiz, por sentença de 6 de Abril de 1992
(fls. 13 e 14), julgou extinto o procedimento judicial por prescrição, nos termos dos artigos 126º, nº 1, do Código Penal e 115º, alínea b), do Código de Processo das Contribuições e Impostos, e determinou o arquivamento dos autos, com base na consideração de que, entre a data da prática da infracção e a entrada em vigor do Código de Processo Tributário havia decorrido mais de um ano e o artigo 27º do Decreto-Lei nº 433/92, de 27 de Outubro, aplicável ex vi do artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, veio estatuir que o procedimento por contra--ordenação se extingue por efeito de prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação haja decorrido o prazo de 1 ano, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável coima não superior a
100.000$00.
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2 - Desta decisão interpôs o Representante da Fazenda Pública recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, sustentando, em suma, que o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, como se pode extrair do disposto nos artigos 2º e 5º, nº 2 do Decreto-Lei nº 20-A/90, só é aplicável aos factos praticados após a sua entrada em vigor.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 9 de Dezembro de 1992, negou provimento ao recurso, havendo para o efeito, desaplicado, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo
29º, nº 4 da Constituição, as referenciadas normas dos artigos 2º e 5º, nº 2 do Decreto-Lei nº 20-A/90, interpretadas no sentido de proibirem a aplicação retroactiva, ainda que mais favorável para o infractor, dos preceitos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado por aquele diploma.
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3 - Deste acórdão, em obediência ao disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a) da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nºs
1, alínea a) e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
Nas alegações entretanto oferecidas pelo senhor Procurador-Geral Adjunto concluiu-se do modo seguinte:
a) São materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição, as normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, enquanto obstam à aplicação retroactiva de lei sancionatória mais favorável;
b) Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada.
Passados os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - As normas cuja aplicação foi recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, dispõem assim:
Artigo 2º
(Início da eficácia temporal)
As normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor do presente diploma.
Artigo 5º
(Âmbito da revogação)
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2 - Mantêm-se em vigor as normas do direito contravencional anterior até que haja decisão, com trânsito em julgado, sobre as transgressões praticadas até à data da entrada em vigor do presente diploma.
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O Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, em que se inscrevem estas normas, aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, segundo o qual, as infracções fiscais - facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei fiscal anterior - podem assumir a forma de crimes e de contra-ordenações fiscais, sendo àqueles aplicáveis, subsidiariamente, o Código Penal e legislação complementar, e a estas, também subsidiariamente, as disposições da I Parte do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro.
Os crimes fiscais acham-se previstos nos artigos
23º (fraude fiscal), 24º (abuso de confiança fiscal) e 25º (frustração de créditos fiscais).
As contra-ordenações fiscais resultantes da desgraduação das restantes transgressões fiscais ou se acham tipificadas nos artigos 28º a 40º, ou decorrem da equiparação a que foram sujeitas e da submissão ao regime que para estas vigora - é o caso das transgressões fiscais tipicamente descritas a que era aplicável o Código de Processo das Contribuições e Impostos, desde que os factos nelas previstos não sejam subsumíveis aos tipos de ilícito de mera ordenação social previstos nos citados artigos 28º a 40º
(cfr. artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20-A/90).
Mas, enquanto não transitem em julgado as decisões proferidas ou a proferir sobre elas, as transgressões fiscais praticadas até à data da entrada em vigor daquele diploma legal - quer as correspondentes condutas tenham passado a ser tipificadas como contra-ordenações fiscais, quer hajam tão somente sido a estas equiparadas - continuam a subsistir como tais, por força do que se dispõe nos controvertidos artigos 2º e 55º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90.
E assim sendo, mesmo que o Regime Jurídico actualmente vigente seja mais favorável ao arguido do que o anterior, por força daqueles preceitos, existe impedimento à aplicação da lei nova.
O acórdão recorrido, confrontado com esta realidade, recusou legitimidade constitucional aquelas normas por as ter como colidentes com o disposto no artigo 29º, nº 4, da Constituição.
Será efectivamente assim?
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2 - Este preceito constitucional contém a seguinte formulação:
Artigo 29º
(Aplicação da lei criminal)
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4 - Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente, as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
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Consagrou-se aqui o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
Este princípio constitui uma excepção ao princípio da legalidade ('nullum crimen sine lege praevia'), consagrado no nº 1 do mesmo artigo 29º - 'ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão' -, segundo o qual a norma penal incriminadora há-de ter sido editada antes do conhecimento do facto incriminado e há-de achar-se em vigor nesse momento.
A norma penal não pode, pois, ser retroactiva, nem ultra-activa, o que constitui uma manifestação nuclear da função de garantia do princípio, exigida pela ideia de Estado de direito, pois se trata de evitar incriminações persecutórias, leis ad hoc - de evitar, em suma, o 'arbítrio ex post'.
A irretroactividade da lei penal é, no entanto, apenas uma irrectroactividade in peius, que não in melius, pois que se a lei nova for de conteúdo mais favorável ao arguido, já ela se deve aplicar a factos passados.
Mas, achando-se o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável formulado apenas para o domínio penal, valerá ele, então, para situações como aquela que aqui se apresenta, em que um ilícito, antes qualificado pela lei como transgressão fiscal, foi desgraduado em contra-ordenação fiscal?
A resposta há-de ser seguramente afirmativa.
A este respeito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 227/92, Diário da República, II série, de 12 de Setembro de
1992, o que agora se repete e inteiramente se perfilha:
'De facto, a nova lei (no caso, as normas do citado Regime Jurídico respeitantes a contra-ordenações) - na medida em que deixou de qualificar como transgressões condutas que assim rotulava - é, em certo sentido, uma lei penal de conteúdo mais favorável, pois que `expulsou' do domínio penal factos que antes aí situava.
Claro que isto só é assim quando se veja nas infracções fiscais ilícitos de natureza criminal, puníveis embora, com sanções (criminais) especiais (cfr., neste sentido, Eduardo Correia, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
100º, pp. 289 e seguintes, sp. p. 371).
Pode, no entanto, argumentar-se que a nova lei não deve ser qualificada como lei penal, uma vez que as infracções fiscais não integravam o domínio penal
(cfr., neste sentido, J.M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Coimbra,
1970, pp 100 e seguintes); e, depois, em direitas contas, o que ela talvez faz
é, nuns casos (nos casos dos artigos 28º a 40º do citado Regime Jurídico), tipificar como contra-ordenações condutas que, antes, eram tipificadas como transgressões e, noutros (nos casos previstos no artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20-A/90), equipar a contra-ordenações outras transgressões, que não converteu em crimes nem tipificou como ilícitos de mera ordenação social.
Se as coisas houverem de ser entendidas como por último se apontou, nem por isso haverá de ter-se o legislador por dispensado de observar o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável, consagrado expressamente no artigo 29º, nº 4, da Constituição apenas para as leis penais.
Tal princípio - o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável -, na sua ideia essencial, há-de, com efeito, valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social'.
Também, a doutrina tem atribuído à garantia constitucional da retroactividade da lei penal mais favorável uma extensão que compreende e abarca outros domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 195 e Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, p. 330).
E nesta linha de entendimento aquelas normas não podem deixar de se haver como inconstitucionais.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar as normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, quando interpretadas no sentido de visarem impedir a aplicação da lei nova, ainda que mais favorável, às infracções que o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, desgraduou em contra-ordenações, como inconstitucionais, por violação do disposto no artigo
29º, nº 4, da Constituição.
b) Negar, consequentemente, provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido na parte respeitante à questão de constitucionalidade agora decidida.
Lisboa, 3 de Novembro de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa