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Proc. nº 600/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. O Hospital D ... requereu execução com a forma sumária contra a Companhia de Seguros A ... para pagamento da quantia de 85.000$00
(acrescida de juros moratórios desde a citação à taxa legal de 15%), devida por tratamentos feitos a vários sinistrados (4 em acidentes de trabalho, 2 em acidentes de viação e 1 em acidente pessoal), por cujo pagamento ela é responsável, já que a respectiva responsabilidade civil fora transferida para si. Juntou uma certidão de dívida passada pelo mesmo Hospital, a qual, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, constitui título executivo.
A petição foi indeferida liminarmente, por despacho de 12 de Julho de 1995, com fundamento em falta de título executivo, em virtude de as normas dos artigos 2º, nº 2, alínea a), e 4º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, terem sido julgadas inconstitucionais.
2. Neste Tribunal, o Procurador Geral Adjunto concluiu as suas alegações do seguinte modo:
'1º - A certificação da existência de um crédito próprio, emergente de tratamentos prestados em consequência de lesões decorrentes de acidentes de viação, pelos órgãos de gestão dos estabelecimentos hospitalares, contra os possíveis e eventuais obrigados a indemnizar, não representa o exercício de qualquer tarefa ou função jurisdicional, mas a mera criação de um título executivo administrativo.
2º - A criação de tal título administrativo em nada preclude o direito de defesa dos executados, que podem perfeitamente alegar, através da dedução de embargos do executado, todos os meios de defesa que lhes seria lícito deduzir em sede de acção declaratória.
Por seu turno, o Hospital recorrente concluiu assim as alegações que apresentou:
'A) O art. 46º al. d) do CPC dispõe que podem servir de base à execução os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
B) Por disposição especial contida no art. 2º do DL 194/92 de
08/09 o legislador conferiu à Declaração elaborada nos termos aí prescritos força executiva.
C) O título assim constituído em nada viola o princípio constitucional ínsito no art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
D) Uma vez que para tal acontecer só as sentenças condenatórias teriam força executiva.
E) O DL em causa e, em especial, as invocadas normas dos arts. 2º al. a), 4º e 6º do DL 194/92, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade material.'
Por sua vez, a Companhia recorrida concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:
'1ª O Mmo. Juiz do Tribunal 'a quo' decidiu correctamente ao considerar materialmente inconstitucionais os arts. 2º, nº 2, al. a), 4º, 6º e
8º do Dec.-Lei nº 194/92 por violação do disposto no art. 205º da CRP.
2ª A determinação do terceiro responsável, quer em caso de acidente de viação quer nas restantes situações definidas no diploma, é uma tarefa exclusiva-mente jurisdicional, não podendo o legislador defini-lo como o fez nas referidas normas.
3ª O legislador ao atribuir força de título executivo às certidões de dívidas hospitalares perante alguns particulares (maxime perante as seguradoras), ao defini-los, antes de qualquer juízo jurisdicional, como terceiros responsáveis, criou um verdadeiro regime de excepção violador dos princípios gerais de direito civil e do princípio da igualdade do cidadão perante a lei consagrado no art. 13º da CRP.
4ª As certidões de dívida hospitalares com força de título executivo perante alguns particulares (em especial as seguradoras) vieram prejudicar gravemente os seus direitos de defesa determinando uma inversão do
ónus da prova e, relativamente aos casos emergentes de acidentes de viação, sem existência de qualquer presunção legal de culpa.'
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. O presente recurso, interposto pelo Ministério Público e pelo Hospital D..., ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 2º, nº
2, alínea a), 4º, 6º e 8º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
É a seguinte a redacção desses preceitos:
'Artigo 2º
Exequibilidade das certidões de dívida
1 - As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o artigo anterior, por serviços ou tratamentos prestados, são títulos executivos.
2 - São condições de exequibilidade do título:
a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma;
b) A menção precisa e individualizada dos serviços prestados;
c) A indicação da quantia exequenda, calculada nos termos do presente diploma;
d) A assinatura do presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legitimamente o substitua;
e) A autenticação do título de dívida com a aposição do selo branco em uso na instituição credora.'
'Artigo 4º
Dívidas resultantes de tratamentos a sinistrados por acidentes de viação
1 - Em caso de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação, a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva entidade seguradora, se seguro houver.
2 - Se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a execução corre contra a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervindo no sinistro, salvo se ocorrer qualquer das causas de exclusão da responsabilidade a que se refere o artigo 505º do Código Civil.'
'Artigo 6º
Dívidas resultantes de tratamentos de sinistrados em acidente de trabalho ou equiparado
1 - Se as dívidas resultarem de tratamento de sinistrados por acidente de trabalho, a execução corre contra aquele a quem o sinistrado prestava os seus serviços, no momento da ocorrência do sinistro, independentemente da natureza jurídica do vínculo nos termos do qual eram prestados tais serviços.
2 - Havendo contrato de seguro, a execução corre contra a entidade seguradora respectiva.'
'Artigo 8º
Dívidas resultantes de tratamentos de doentes abrangidos por seguros privados de saúde
1 - Sendo assistido o beneficiário de seguro de doença ou de acidentes pessoais, deve mencionar tal facto, juntando documento comprovativo.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 4º a 7º, os riscos que se encontrem cobertos pelo contrato de seguro a que se refere o número anterior são da responsabilidade da instituição seguradora respectiva, a quem serão debitados, salvo indicação em contrário do segurado.
3 - A menção e a prova a que se refere o nº 1 dispensam o assistido do pagamento de quaisquer taxas que legalmente fossem devidas pelos serviços prestados e que sejam debitados à instituição seguradora nos termos do número anterior.'
5. As normas transcritas já foram objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, tendo-se sempre concluído pela sua não inconstitucionalidade (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs 760/95 e
761/95, D.R., II Série, de 2 de Fevereiro de 1996).
No citado Acórdão nº 760/95 entendeu-se que:
'É (...) na resolução de conflitos relativos a casos concretos - resolução que se faz lançando mão de normas jurídicas ou de critérios legais pré-existentes - que reside o punctum saliens caracterizador da função jurisdicional, a qual, assim, outro interesse público não prossegue, nem realiza, que o da composição desses conflitos. O seu fim específico é, pois, a realização do direito e da justiça.
(...)
Sendo estas as notas que caracterizam a função jurisdicional, logo se vê que a elas se não reconduzem os poderes conferidos pelos artigos 2º,
4º e 6º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, ao 'presidente do órgão de administração' das 'instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde' (ou a 'quem legitimamente o substitua') para a emissão de certidões de dívida por serviços ou tratamentos prestados.
Nestas certidões de dívida, que são títulos executivos, o emitente, que é uma entidade pública, certifica, não apenas a existência de um crédito próprio, como também a identidade daquele ou daqueles contra quem a execução deve correr. E isso, sem que o executado haja assumido a responsabilidade pelo débito e sem que tenha havido qualquer decisão judicial prévia a definir (declarar) essa responsabilidade. Ou seja: tais certidões de dívida gozam legalmente de um grau de fé pública tal que dispensam a intervenção do juiz, previamente à instauração da execução, para declarar a existência da dívida e dizer quem o responsável pelo seu pagamento.
Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor (ou outrem) àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes - e tudo com vista à realização do direito e da justiça.
(...)
A atribuição de uma tal fé pública aos títulos de dívida hospitalar relativas a serviços ou tratamentos prestados, nada tem, de resto, de estranho. Só o teria, se a acção executiva houvesse de ser precedida em todos os casos de uma acção de condenação no termo da qual o juiz declarasse a existência da dívida e dissesse quem o responsável pelo seu pagamento.
No nosso sistema jurídico, isso não é, porém, assim, como este Tribunal sublinhou ainda recentemente no acórdão nº 398/95 (por publicar).
De facto - para além das sentenças condenatórias [cf. artigo
46º, alínea a), do Código de Processo Civil] - podem ser dados à execução os documentos exarados ou autenticados por notário, as letras, livranças, extractos de factura, vales, extractos de factura conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis e, ainda, os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva [cf. artigo 46º citado, alíneas b), c) e d)].
É certo que, instaurar execuções nas condições previstas nas normas aqui sub iudicio, significa, como sublinha o Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, fazê-lo um pouco 'às cegas'. E isso pode ter como consequência um proliferar de embargos de executado, nos quais a seguradora se limita - para dizer com aquele Magistrado - 'a alegar a inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do seu segurado, lançando tal ónus para a entidade exequente, que naturalmente terá sérias dificuldades em o cumprir'. E, então, o desiderato da eficácia na cobrança das dívidas hospitalares, perseguido pelo legislador, acabará por não ser alcançado.
Isso significará que a solução legal encontrada é, afinal, mau direito; não que seja não direito.
Ora, com o controlo de constitucionalidade, visa-se apenas expurgar o ordenamento jurídico do não direito: só este não pode subsistir, por só ele ser incompatível com as normas e princípios constitucionais.'
6. Considerando-se que a função jurisdicional se consubstancia 'numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um
órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do Direito e da Justiça' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 182/90, D.R., II Série, de 11 de Setembro de 1990), continua a entender-se que as normas em crise não violam o preceituado no artigo 205º, nº 1, da Constituição.
As certidões de dívida - a que é atribuída a qualidade de título executivo - não correspondem ao exercício de poderes característicos da função judicial. Ao emitirem tais declarações, os hospitais não resolvem ou compõem eventuais conflitos referentes a relações de crédito.
7. Também a alegada violação do artigo 13º da Constituição não se verifica, na medida em que a selecção de 'alguns particulares (maxime as seguradoras)' identificados como terceiros responsáveis não é arbitrária, fundando-se, antes, em critérios racionais. Tais critérios resultam da existência de contratos de seguro celebrados entre uma entidade seguradora e o transportador (artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 194/92). Tão pouco se vislumbra qualquer violação de princípios gerais de Direito Civil que, aliás, o recorrido não identifica e que só seriam relevantes se consagrados constitucionalmente.
8. Por fim, quanto à invocada 'inversão do ónus da prova ... sem existência de qualquer presunção legal de culpa', deverá observar-se o seguinte:
O citado artigo 4º do Decreto-Lei nº 194/92 apenas determina que a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva entidade seguradora e exceptua da execução, na hipótese do sinistrado não circular em qualquer veículo, a entidade seguradora do veículo ou dos veículos intervenientes no sinistro, quando ocorra causa de exclusão da responsabilidade
(artigo 505º do Código Civil). É certo que a obtenção do título executivo depende, sobretudo, de uma actividade (não jurisdicional) do próprio exequente. Porém, no âmbito da acção executiva, o executado dispõe, como se viu, de amplas garantias de defesa, podendo ilidir o valor probatório reforçado atribuído ao título executivo. Deste modo, uma eventual inversão do ónus da prova decorrente da lei não é necessariamente incompatível com princípios e normas constitucionais (desde que corresponda a uma justa distribuição de riscos resultante de interacção social) e é mesmo expressamente admitida, no plano infraconstitucional, pelo artigo 344º, nº 1, do Código Civil, independentemente de qualquer presunção de culpa.
Aliás, a própria recorrida não identifica qualquer norma ou princípios constitucionais eventualmente violados pela invocada inversão do ónus da prova.
III Decisão
9. Ante o exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido, a fim de ser reformado em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Maio de 1966
Maria Fernanda palma
Maria da Assunção Esteves
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Armindo Ribeiro Mendes
Luis NUnes de Almeida