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Proc. nº 7/92
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Por acórdão de 14 de Dezembro de 1990, A., B. e C. foram julgados pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, juntamente com 26 outros arguidos, e condenados como autores de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 23º e 27º, alíneas b), c) e d), do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro.
O Ministério Público e os dois primeiros arguidos recorreram da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 31 de Outubro de 1991, negou provimento aos recursos dos arguidos, mas concedeu provimento parcial ao do Ministério Público, e condenou, pela prática do crime já referido e ainda de um crime de associação de delinquentes, previsto e punível pelo artigo 28º, nº 1, do mesmo diploma, em cúmulo jurídico, respectivamente: o arguido A., nas penas de 15 anos de prisão e multa de
3.050.000$00; o arguido B., nas penas de 16 anos de prisão e multa de
4.050.000$00; e o arguido C., nas penas de 14 anos de prisão e multa de
2.050.000$00.
Da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, recorreram para o Tribunal Constitucional os três arguidos já indicados, invocando a inconstitucionalidade das normas dos seguintes artigos do Código de Processo Penal: (a) artigo 433º do Código de Processo Penal (arguido A.); (b) artigo
363º, 2ª parte (arguido B.); (c) artigos 363º, 410º, nºs 1, 2 e 3, e 434º
(arguido C.).
2. O Tribunal Constitucional, por acórdão de 3 de Junho de 1992, decidiu não conhecer deste último recurso, por a questão de inconstitucionalidade não ter sido suscitada pelo recorrente perante o tribunal a quo, mas sim posteriormente.
Corridos os vistos, cumpre agora decidir os restantes recursos.
II - FUNDAMENTOS
3. Examinemos em primeiro lugar o recurso do arguido A., e em seguida o do arguido B..
É objecto do primeiro recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 433º do Código de Processo Penal, questão suscitada já nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e por este desatendida.
Segundo o recorrente, a norma daquele artigo 433º, ao não permitir, sem restrições, o julgamento da matéria de facto em dois graus de jurisdição, é inconstitucional, violando o preceito do artigo 32º, nº 1, da Lei Fundamental. O Ministério Público, contudo, é de opinião contrária.
O teor da norma em causa é o seguinte:
Sem prejuízo no disposto no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.
E, por sua vez, aquele artigo 410º dispõe:
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
O recurso foi interposto, segundo o recorrente (fls.
3285), porquanto a decisão do S.T.J.:
a) Julgou improcedente a arguição de inconstitucionalidade material do Art.º
433º do C. P. Penal (na medida em que restringe o duplo grau de jurisdição sobre os factos às hipóteses dos n.ºs 2 e 3 do Art.º 410º do C.P.P.), deduzida no parágrafo 4 e conclusão IV das alegações do recorrente [no recurso para o S.T. J.]
b) Absteve-se de reapreciar toda a matéria de facto da causa;
c) E aplicou, assim, a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada;
d) Sendo que tal norma - salvo o devido respeito pela decisão em causa - viola, nomeadamente, os Art.ºs 12º, 13º, 32º e 215º da Constituição da República.
E, nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, acrescenta:
A questão[...] é, no fundo, a de o recorrente apesar de julgado por tribunal de júri, ter ou não direito constitucional a seu favor de que a matéria de facto, irrestritamente, seja passível de jurisdição de recurso. Na hipótese afirmativa, a norma do artigo 433º do C. P. Penal deverá ser declarada inconstitucional, uma vez que só em casos contados - os do n.º 2 do artigo
410º - permite a jurisdição de recurso quanto à matéria de facto.
[...]
Ao não permitir, sem restrições, o julgamento da matéria de facto em processo penal por dois graus de jurisdição, o art.º 433º do C. P. Penal é inconstitucional, violando o preceito do art.º 32º, n.º 1, da C.R.P.
O recorrente restringiu, assim, o recurso à questão da inconstitucionalidade do artigo 433º do Código de Processo Penal, com fundamento na violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
4. O processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, conforme se estabelece no artigo 32º, nº 1, da Constituição. E, no núcleo essencial dessas garantias de defesa, conta-se, de acordo com a jurisprudência uniforme deste Tribunal, a existência de um duplo grau de jurisdição em matéria penal, em benefício do arguido (v.g. Acórdão nº
40/84, Diário da República, II série, de 7 de Julho de 1984).
Que esse recurso deve existir tanto em matéria de direito como em matéria de facto é conclusão já várias vezes afirmada: por exemplo, no Acórdão nº 219/89 (Diário da República, II série, de 30 de Junho de
1989), onde se considerou que 'no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto, como da solução que haja sido dada à questão de direito'.
Todavia, nos Acórdãos nº 61/88, e nº 124/90 (Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1988, e de 8 de Fevereiro de 1991, respectivamente), ponderou-se que, 'tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso'. Também o Acórdão nº 401/91 (Diário da República, I série A, de 8 de Janeiro de 1992), examinou, a esta luz, a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929, na interpretação que lhe havia sido dada pelo assento do S.T.J. de 29 de Junho de 1934, concluindo pela sua inconstitucionalidade, mas reafirmando a doutrina, atrás referida, dos Acórdãos nº 61/88 e nº 124/90.
Segundo a parte final do artigo 433º do actual Código de Processo Penal, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito. E é certo que dos acórdãos finais dos tribunais colectivos ou do júri se recorre imediatamente para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 432º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal).
No entanto, é da própria redacção da parte inicial do artigo 433º que resulta, sem margem para dúvidas, que este recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode não se limitar, afinal, ao reexame da matéria de direito: o princípio de que o recurso visa o reexame da matéria de direito, não prejudica a possibilidade de se reexaminar matéria de facto, remetendo-se aqui, na parte inicial da norma em questão, para o artigo 410º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Mas, se assim é, o artigo 433º não fecha irremissivelmente a possibilidade de o S.T.J. reexaminar a matéria de facto - e, portanto, tal artigo, em si mesmo considerado, e só por si, não pode violar o artigo 32º, nº 1, da Constituição, na medida em que, como se viu, esta não exige um recuso irrestrito em matéria de facto.
Poderá, é certo, haver ou não inconstitucionalidade nos normativos do artigo 410º, n.ºs 2 e 3, que determinam a extensão dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, em matérias que não sejam exclusivamente de direito. Mas, então, a questão de inconstitucionalidade não estaria no artigo 433º, mas sim naquele artigo 410º, n.os 2 e 3.
Só que estas normas não são objecto do presente recurso. O recorrente apenas invocou a inconstitucionalidade do artigo 433.º do Código de Processo Penal, e o Tribunal Constitucional, limitado ao exame da questão suscitada pelo recorrente, não pode oficiosamente alargar o objecto do pedido a uma outra questão, essa não suscitada.
5. Assim, a norma do artigo 433º do Código de Processo Penal, não fechando irremissivelmente a possibilidade de reexame da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos recursos dos acórdãos finais dos tribunais colectivos e do júri (e isto apesar do teor literal da sua parte final), não é em si mesma inconstitucional - e, portanto, o recurso do arguido A. é improcedente.
6. É objecto do recurso do arguido B. a apreciação da constitucionalidade do artigo 363º, do Código de Processo Penal, na parte em que condiciona a possibilidade de documentação das declarações prestadas oralmente em audiência à disponibilidade de meios estenotípicos, estenográficos, ou outros, idóneos a assegurar a respectiva reprodução integral.
O teor integral daquele artigo é o seguinte:
As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.
Segundo o recorrente, tal norma (na parte indicada) permite diferenças de tratamento dos arguidos, consoante haja ou não, no tribunal em que vão ser julgados, os referidos meios técnicos, sendo ela susceptível de impedir na prática a observância do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Assim, viola o disposto nos artigos 12º, nº 1,
13º, nº 1, 32º, nº 1 e 212º, nº 5, da Constituição.
A isto opõe o Ministério Público que o registo da prova oral prevista naquele artigo 363º reveste carácter programático e não se destina a ser utilizado para efeito de recurso, antes se destinando apenas a ser utilizado pelo próprio tribunal que efectua o julgamento, até à prolação da sentença ou acórdão - designadamente no caso de julgamentos complexos - e que tal regime restritivo não é, portanto, inconstitucional.
7. A questão já foi examinada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 253/92 (Diário da República, II série, de 27 de Outubro de 1992). Aí se concluiu que a norma em causa não é inconstitucional, e não foram apresentados novos argumentos que levem a alterar tal jurisprudência.
Com efeito, no actual Código de Processo Penal, dos acórdãos finais proferidos pelos tribunais colectivos e do júri recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432º, alíneas b) e c)]; em tal recurso, o S.T.J. tem poderes de revista alargada - isto é: o recurso pode visar, não só o reexame da matéria de direito, mas também a apreciação da inobservância de requisitos de que resulte nulidade não sanada (artigo 410º, nº
3), e ainda a apreciação dos vícios que consistem em insuficiência da matéria de facto provada, em contradição insanável da fundamentação, e em erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2) - vícios esses que, segundo a disposição em causa, só podem ser considerados desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.
Ora - independentemente da constitucionalidade desta
última restrição, que não cabe aqui examinar - o que é certo é que quando estes vícios do artigo 410º, nº 2, o impedirem de decidir a causa, o Supremo Tribunal de Justiça não pode realizar quaisquer diligências de prova, substituindo-se ao tribunal recorrido: o que faz é ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, relativo à totalidade da causa ou às questões concretas que indicar, julgamento esse que incumbe ao tribunal de categoria e composição idênticas ao tribunal a quo que se encontrar mais próximo (artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal).
Mas, se assim é, as declarações documentadas na acta da audiência não podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que não se destinam à apreciação do recurso. Poderão antes, como já foi sugerido, servir, por exemplo, de base à elaboração do acórdão pelo próprio tribunal colectivo ou do júri, particularmente nos julgamentos mais complexos, em que a audiência se prolongue por vários dias, semanas ou até meses.
Mas se as declarações documentadas nos autos nunca podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, então o facto de o tribunal de primeira instância as documentar ou não, por dispor ou não de meios técnicos adequados, em nada prejudicará a observância do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto: se o Supremo Tribunal de Justiça concluir pela necessidade de reenvio do processo, indicará oficiosamente que diligências de prova deverão ser realizadas no novo julgamento a efectuar nos termos dos referidos artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal; e também não cria qualquer desigualdade, já que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça são sempre os mesmos, independentemente da existência, ou não, de documentação da prova.
Assim, o normativo em causa não viola o disposto nos artigos 12º, nº 1, 13º, nº 1, ou 32º, nº 1, da Constituição. E, em qualquer caso, também não viola, evidentemente, o artigo 212º, nº 5, segundo o qual o Supremo Tribunal de Justiça funcionará como tribunal de instância nos casos determinados pela lei. Improcede, portanto, também, este recurso.
III - DECISÃO
Assim, e pelo exposto, decide-se negar provimento a ambos os recursos.
Lisboa, 17 de Março de 1993
Luís Nunes de Almeida Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra José de Sousa e Brito
Mário de Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa