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Proc. nº 671/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 2 de Junho de 1989 foram instaurados contra A., residente na Rua ------------------------------, nº -----------------,
----------º, em ----------------, autos de transgressão pela 1ª Repartição de Finanças desta cidade, pela falta de pagamento do imposto de compensação relativamente a um veículo automóvel a gasóleo (com a matrícula ---------------) e com referência aos quatro trimestres dos anos de 1984 a 1987, somando os impostos em falta 168.000$00, a que acrescia a multa no triplo desta importância.
Os autos foram remetidos ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra em 20 de Dezembro do mesmo ano, em virtude de o particular não ter pago voluntariamente a multa e os impostos em falta.
Por sentença de 2 de Abril de 1991, veio o arguido a ser condenado a pagar apenas os impostos relativos aos 1º e 2º trimestres de 1984 e 1º trimestre de 1985, visto o veículo em causa ter sido apreendido em 8 de Janeiro de 1985 nos termos do art. 29º do Regulamento do Imposto de Compensação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 354-A/82, de 4 de Setembro, e ter o mesmo sido condenado, por decisão transitada em julgado, pela transgressão que dera origem à apreensão e pelo pagamento do imposto quanto aos
3º e 4º trimestres de 1984.
Considerou-se ainda nessa sentença que a eliminação do imposto de compensação, operada pelo art. 43º da Lei nº 65/90, de
28 de Dezembro (Orçamento do Estado para 1991), implicava que deixassem de ser punidas as transgressões cometidas anteriormente à sua entrada em vigor, em matéria de imposto de compensação, por aplicação do disposto no art. 2º, nº 2, do Código Penal e no art. 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro. Não havia, assim, que pagar quaisquer multas (a fls. 19 a 23 dos autos).
Desta decisão interpôs recurso o Representante da Fazenda Nacional para a Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo, sustentando a sua ilegalidade.
No Supremo Tribunal Administrativo, o Representante do Ministério Público formulou parecer em que sustentava que o recurso merecia provimento, visto não ter sido revogado o diploma que autorizava a cobrança do imposto de compensação, limitando-se o art. 43º, nº 1, da Lei nº
65/90 a eliminar para o futuro aquele imposto.
Por acórdão proferido a fls. 38 a 48 dos autos, em 30 de Setembro de 1992, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso.
Considerou-se nesse acórdão que, independentemente das questões jurídicas que constituíam objecto do recurso, se havia consumado a prescrição do procedimento judicial relativo às mesmas infracções, questão que era do conhecimento oficioso do tribunal. Quanto às duas primeiras contravenções, cometidas em 31 de Janeiro de 1984 e em 30 de Abril do mesmo ano, completara-se o prazo de prescrição do procedimento judicial de cinco anos, contemplado no art. 115º, alínea b), do já revogado Código de Processo de Contribuições e Impostos. Quanto à última contravenção, porque se aplicava retroactivamente o prazo prescricional mais curto previsto para o procedimento por contra-ordenação fiscal, por força do art. 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA).
Depois de sustentar que o art. 29º, nº 4, da Constituição se aplicava nos domínios do direito penal e do direito de mera ordenação social, o referido acórdão veio a debruçar-se sobre uma questão de inconstitucionalidade nos seguintes termos:
'Do exposto se infere que sofre de inconstitucionalidade material, por violar o referido preceito da Constituição [art. 29º, nº 4] o art. 2º do DL 20-A/90 na medida em que, ao dispor que as normas, mesmo as substantivas, do RJIFNA só se aplicam a factos praticados depois da sua entrada em vigor, pretende proibir se apliquem, ainda que mais favoráveis ao infractor, os preceitos neste adoptados sobre prescrição do procedimento judicial a factos do pretérito, previstos e punidos ao tempo da sua prática como transgressões fiscais.
Em sentido semelhante, o citado Ac. do TC [nº 227/92] julgou inconstitucional, por violação do art 29º, nº 4, da Constituição, o dito art.
2º, «interpretado no sentido de visar impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às infracções» que o RJIFNA desgraduou em contra-ordenações. Em obediência ao art. 207º da Constituição decida-se, pois, não tomar em consideração este art. 2º do DL 20-A/90 [...]'. (a fls. 45-46 dos autos)
Deste acórdão interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional o Representante do Ministério Público. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 53.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas produziu alegações a entidade recorrente, tendo formulado nessa peça as seguintes conclusões:
'1º É materialmente inconstitucional, por violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, enquanto obsta à aplicação retroactiva da lei sancionatória mais favorável;
2º Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada.'
(a fls. 65-66 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Constitui objecto do presente recurso a questão da alegada inconstitucionalidade da norma do art. 2º do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, diploma que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA).
Subordinado à epígrafe 'início da eficácia temporal', dispõe esse artigo:
'As normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor do presente diploma'.
Como as normas preambulares deste diploma nada dispuseram sobre a data da entrada em vigor do RJIFNA, há-de entender-se que as respectivas normas começaram a vigorar a partir de 20 de Janeiro de 1990, devendo referir-se que o nº 2 do art. 5º do mesmo Decreto-Lei nº 20-A/90 dispõe que se mantêm em vigor as normas do direito contravencional revogadas pelo novo diploma, 'até que haja decisão com trânsito em julgado, sobre as transgressões praticadas até à data da entrada em vigor do presente diploma'.
Cabe, assim, perguntar se é constitucionalmente admissível uma interpretação da referida norma do art. 2º que impeça a aplicação retroactiva de normas do regime novo mais favoráveis ao arguido, atento o disposto na parte final do nº 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, o art. 29º da Constituição, preceito que regula a aplicação da lei criminal, estatui no seu nº 4:
'Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'.
Deve notar-se que as transgressões imputadas ao arguido, praticadas nos anos de 1984 e de 1985, tinham natureza penal contravencional, tendo as mesmas sido desgraduadas em contra-ordenações, passando a ser equiparadas a ilícito de mera ordenação social (arts. 3º, nº 1, e
5º de Decreto-Lei nº 20-A/90).
5. Como se demonstra detalhadamente nas alegações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido vale igualmente para o direito de mera ordenação social:
'Será que este princípio vale também para o direito de mera ordenação social?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa pois tem-se entendido que aí se consagra um princípio geral de aplicação do regime sancionatório (de natureza criminal ou não) mais favorável ao infractor, e, se este entendimento não é líquido em relação ao ilícito disciplinar, já o é mais em relação ao ilícito de mera ordenação social[...].
Parece, pois, que embora a realidade do direito criminal seja completamente diferente da do direito de mera ordenação social, os princípios de direito penal, que visam, em última análise, as garantias do próprio infractor, aplicam-se ao direito de mera ordenação social. Daí, o direito material subsidiariamente aplicável às contra-ordenações ser o Código Penal (artigo 32º do Decreto-Lei nº 433/82).
Poderia dizer-se que o que vem de referir-se valeria apenas para as situações em que há duas normas, uma de conteúdo mais favorável, mas da mesma natureza, ou seja, ambas do direito das contra-ordenações, e que o caso deste processo não é rigorosamente esse, porque, aqui, o confronto é entre uma norma de natureza criminal (em que se incluem as contravenções) com uma norma de direito de mera ordenação, portanto, de natureza diferente.
Mas, mesmo nestes casos, afigura-se que aquele princípio constitucional é válido, pois não faria sentido aplicá-lo quando estão em confronto duas normas de direito de mera ordenação social e não o aplicar quando houvesse uma norma de natureza criminal, porque neste caso o «desagravamento» ainda é maior, podendo falar-se inclusivamente de descriminalização (Taipa de Carvalho, ob. cit, págs. 88 a (100). O que é válido para o mais é neste caso, válido para o menos'. (a fls. 62 a 64 dos autos).
Tem-se por rigorosamente exacta a doutrina que se acaba de transcrever e que é aplicada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo identificada no acórdão recorrido e nas alegações a que se acaba de fazer referência.
6. No mesmo sentido vai a jurisprudência do Tribunal Constitucional (vejam-se os Acórdãos nºs 414/89, 227/92 e 228/92, o primeiro publicado no Diário da República, I Série, nº 150, de 3 de Julho de
1989, o segundo no Diário da República, II Série, nº 211, de 12 de Setembro de
1992 e o terceiro ainda inédito).
Em especial, no Acórdão nº 227/92, o Tribunal Constitucional julgou que sofriam de inconstitucionalidade, por violação do art.
29º, nº 4, da Lei Fundamental, os arts. 2º e 5º, nºs 2, deste Decreto-Lei nº
20-A/90. Escreveu-se aí:
'De facto, a nova lei (no caso as normas do citado Regime Jurídico respeitantes a contra-ordenações) - na medida em que deixou de qualificar como transgressões condutas que assim rotulava - é, em certo sentido, uma lei penal de conteúdo mais favorável, pois que «expulsou» do domínio penal factos que antes aí situava.
Claro que isto só é assim quando se veja nas infracções fiscais ilícitos de natureza criminal, puníveis, embora, com sanções (criminais) especiais (cfr., neste sentido, Eduardo Correia, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 100º, pp 289 e seguintes, sp. p. 371).
Pode, no entanto, argumentar-se que a nova lei não deve ser qualificada como lei penal, uma vez que as infracções fiscais não integravam o domínio penal (cfr., neste sentido, J.M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, pp. 100 e seguintes); e, depois, em direitas contas, o que ela talvez faz é, nuns casos (nos casos dos artigos 28º a 40º do citado Regime Jurídico), tipificar como contra-ordenações condutas que, antes, eram tipificadas como transgressões e, noutros (nos casos previstos no artigo 3º, nº
1, do Decreto-Lei nº 20-A/90) equiparar a contra-ordenações outras transgressões, que não converteu em crimes nem tipificou como ilícitos de mera ordenação social.
Se as coisas houverem de ser entendidas como por último se apontou, nem por isso haverá de ter-se o legislador por dispensado de observar o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável consagrado expressamente no artigo 29º, nº 4, da Constituição apenas para as leis penais.
Tal princípio - o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável -, na sua ideia essencial, há-de, com efeito, valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social'. (nº 7)
7. Impõe-se, assim, a conclusão de que a interpretação do art. 2º do Decreto-Lei nº 20-A/90, segundo a qual não é possível a aplicação retroactiva da lei nova de conteúdo mais favorável ao arguido, contraria o art. 29º, nº 4, da Constituição, norma que é também aplicável no domínio do direito de mera ordenação social.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando em consequência o acórdão recorrido.
Lisboa, 3 de Novembro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa