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Processo n.º 779/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A., Lda., reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de fls. 4193/4197 que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«A., LDA., recorrente no recurso de revista à margem identificado, em que é recorrida B., S.A., notificada do despacho pelo qual o Excelentíssimo Conselheiro Presidente da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, e com ele se não conformando, vem, ao abrigo do disposto no art.° 76.°, n.° 4, da Lei n.° 28/82, de 15 de novembro, com as alterações que lhe foram entretanto introduzidas, reclamar do aludido despacho, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
I
As normas cuja inconstitucionalidade a reclamante pretende ver declarada são as que se discriminam no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, e que aqui se repete para comodidade de raciocínio:
1. A norma do n.° 2 do art.° 265.° do Código de Processo Civil, interpretada e aplicada no sentido com que o Supremo Tribunal de Justiça a interpretou e aplicou no acórdão proferido no presente recurso de revista, ou seja, no sentido de que o alcance daquele preceito deve ser restringido pelo princípio da razoabilidade e que o tribunal não deve aplicar o preceito sempre que as partes, podendo, não produziram mais prova nem nada disseram sobre a efetivação de outras diligências, sem que o tribunal tivesse convidado as partes a praticar esses atos, sentido e alcance que são manifestamente inconstitucionais, por violação do disposto no n.° 1 e no n.° 4 do art.° 20.° e no n.° 2 do art.° 202.° da Constituição da República Portuguesa, já que não asseguram o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, assim como não asseguram a garantia constitucional de um processo equitativo.
2. A norma emergente da conjugação do n.° 2 do art.° 265.º do Código de Processo Civil com o n.° 2 do art.° 342.° do Código Civil, interpretada e aplicada no sentido com que o Supremo Tribunal de Justiça a interpretou e aplicou no acórdão proferido no presente recurso de revista, ou seja, no sentido de que caberia ao dono da obra o ónus de alegar e provar a insuficiência do montante das garantias bancárias por si embolsado para fazer face aos custos da eliminação dos defeitos da obra, o que impõe ao dono da obra uma inversão do ónus da prova, já que só ao empreiteiro incumbe alegar e provar que a execução das garantias foi abusiva, interpretação e aplicação que violam o disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.° 20.° e n.° 2 do art.° 202.° da CRP.
3. A norma do art.° 428.°, n.° 2 do Código Civil, interpretada e aplicada no sentido e com o alcance com que o Supremo Tribunal de Justiça a interpretou e aplicou no acórdão proferido no presente recurso de revista, ou seja, no sentido e com o alcance de que o empreiteiro, muito embora não podendo afastar a exceção de não cumprimento do contrato mediante a prestação de garantias, poderia todavia deitar mão de garantias já prestadas para a indemnização de danos e prejuízos (por eventual incumprimento), afastando a exceptio invocada pelo dono da obra, o que viola o disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.° 20.° e n.° 2 do art.° 202.°, ambos da CRIP.
4. A norma do art.° 346.° do Código Civil, interpretada e aplicada no sentido com que o Supremo Tribunal de Justiça a interpretou e aplicou no acórdão proferido no presente recurso de revista, ou seja, no sentido de que tendo a dona da obra feito acionar, on the first demand, garantias bancárias destinadas a ressarcir prejuízos havidos com a empreitada, teria de ser a dona da obra a provar que o montante das garantias recebidas teria ficado aquém do valor dos danos emergentes do incumprimento do contrato, e em quanto, confundindo a exceptio non rite adimpleti contractus invocada pela embargante, dona da obra, com vista a forçar o cumprimento do contrato pela empreiteira, com a mobilização de garantias bancárias destinadas não a forçar o cumprimento de contrato pela empreiteira, mas a indemnizar os danos e prejuízos causados pelo incumprimento pontual, o que viola o disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.° 20.°, n.° 1 do art.° 62.° e n.° 2 do art.° 202.°, todos da CRP.
5. O preceito emergente da conjugação do art.° 265.°, n.° 2 do Código de Processo Civil com os art.ºs 564.°, 565.° e 566.°, n.° 2, do Código Civil e com o art.° 661.°, n.° 2 do Código de Processo Civil, interpretado e aplicado no sentido e com o alcance com que o interpretou e aplicou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no presente recurso de revista, ou seja, no sentido e com o alcance de que, quando se conheçam os danos e só não possa averiguar-se o seu valor exato dentro dos limites que tiver por provados (art.° 566.°, n.° 2, do CC) e se não houver elementos para fixar o quantum debeatur, não deve o tribunal condenar no que vier a ser liquidado (art.° 661.°, n.° 2 do CPC), o que viola as disposições dos n.°s 1 e 4 do art.° 20. e n.° 2 do art.° 202.º, ambos da CRP.
II
E os preceitos e princípios constitucionais que se entende terem sido, e gravemente, violados são:
• Relativamente à primeira norma, o disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.° 20.° e n.° 2 do art.° 202.° da CRP;
• Relativamente à segunda norma, o disposto nos n.°s 1 e 4 do art.° 20.° e n.° 2 do art.° 202.° da CRP’;
• Relativamente à terceira norma, o disposto nos n.ºs° 1 e 4 do art.° 20.° e n.° 2 do art.° 202.° da CRP’;
• Relativamente à quarta norma, o disposto nos n.°s1 e 4 do art.° 20.° e n.° 2 do art.° 202.° da CRP;
• Relativamente à quinta norma, o disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.° 20.º e n.° 2 do art.° 202.° da CRP.
III
Todas as inconstitucionalidades acima discriminadas surgiram pela primeira vez no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em sede de revista, razão por que não puderam ser arguidas em nenhuma peça processual anterior ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
IV
Com efeito, só no acórdão proferido em sede de revista é que o Tribunal, pela primeira vez, deu à norma do n.° 2 do art.° 265.° do Código de Processo Civil uma interpretação e fez aplicação inteiramente abusivas e ao arrepio da letra e do espírito do preceito, pretendendo que às partes, seus representantes ou mandatários, caberia o encargo de fornecerem esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito, sem terem sido convidados para tal pelo juiz do processo, e sem poderem adivinhar quais os esclarecimentos que em concreto o juiz pretendia.
V
Da mesma maneira, só no acórdão proferido em revista é que se ficou a conhecer o entendimento do tribunal sobre a norma emergente da conjugação do n.° 2 do art.° 265.° do Código de Processo Civil com o n.° 2 do art.° 342.° do Código Civil, ou seja, se ficou a conhecer que o tribunal entendia que caberia ao dono da obra o ónus de alegar e provar a insuficiência do montante das garantias bancárias para fazer face aos custos da eliminação dos defeitos da obra, impondo uma total e ilegal inversão de ónus da prova, já que só ao empreiteiro incumbia alegar e provar que a execução das garantias bancárias teria sido porventura abusiva.
VI
Da mesma forma, só pelo acórdão proferido em revista ficou a reclamante a saber que o tribunal interpretava e aplicava a norma do art.° 346.° do Código Civil no sentido de que tendo o dono da obra feito acionar, on the first demand, garantias bancárias destinadas a ressarcir prejuízos havidos com a empreitada, teria de ser o dono da obra a provar que o montante das garantias recebidas teria ficado aquém do valor dos danos emergentes do incumprimento do contrato, confundindo assim a exceptio non rite adimpleti contractus, invocada pela embargante, dona da obra, com vista a forçar o cumprimento do contrato pelo empreiteira, com a mobilização de garantias bancárias destinadas não a forçar o cumprimento do contrato pelo empreiteiro, mas a indemnizar os danos e prejuízos causados pelo incumprimento pontual.
VII
Finalmente, só no acórdão proferido em revista ficou a reclamante a conhecer o alcance e a interpretação do tribunal com relação ao preceito emergente da conjugação do art.° 265.°, n.° 2, do CPC, com os art.ºs 564.°, 565.° e 566.°, n.° 2 do Código Civil e com o art.° 661.°, n.° 2 do CPC, ou seja, ficou a saber ex novo que o tribunal entendia que não deve condenar no que vier a ser liquidado, quando se conhecerem os danos mas não se possa averiguar imediatamente o seu valor exato dentro dos limites que tiver por provados.
VIII
Todas estas interpretações, absolutamente inconstitucionais, aparecem ex novo no acórdão proferido em sede de revista, razão por que só agora poderiam ser impugnadas as referidas inconstitucionalidades.
Nos termos expostos, deve Vossa Excelência, Senhor Presidente do Tribunal Constitucional, admitir o recurso que, pelo despacho do STJ, ficou retido.»
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos que se seguem:
«1. A A., Ld.ª, reclamou da decisão que, no Supremo Tribunal de Justiça, não lhe admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, porque durante o processo não suscitara a inconstitucionalidade das questões que agora pretendia ver apreciadas, não estando dispensada desse ónus.
2. No requerimento de interposição do recurso a recorrente identifica cinco questões.
3. Quanto à primeira, questiona-se uma certa interpretação do art.° 265.°, n.° 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Esta questão está relacionada com o facto de o Tribunal não ter procurado averiguar oficiosamente o quantum relativo aos danos decorrentes dos defeitos da obra.
Ora, a norma do n.° 2 do artigo 265.° do CPC, não foi aplicada, mas sim o n.° 3 do mesmo artigo.
Foi sobre a aplicabilidade deste preceito que o acórdão recorrido se pronunciou, pois foi a sua aplicação que a recorrente requereu, dizendo designadamente, nas Alegações (fls. 4028 e 4029):
“Isto é, estando apenas em causa apurar o montante dos prejuízos causados pela Exequente à Executada para determinar se ainda existe crédito da Executada sobre a Exequente que lhe permita invocar a exceção do incumprimento, deve o Tribunal oficiosamente indagar esse montante, nos termos e em cumprimento do disposto no n.° 3 do artigo 265.° do CPC”.
4. Por outro lado, na dimensão normativa que enuncia, a recorrente não refere um importante elemento que consta da decisão recorrida: já em recurso a parte recorrente nada referir quanto a diligências suplementares a realizar e a sua concretização.
5. Omitida esta circunstância da dimensão normativa questionada, só se pode concluir que não há correspondência entre aquela e a efetivamente aplicada como ratio decidendi.
6. Por último, diremos que o conhecimento da questão da inconstitucionalidade não se revestiria de qualquer efeito útil, uma vez que no acórdão recorrido acaba por se concluir que nada na matéria de facto sugeria que alguma diligência fizesse luz sobre o que se pretendia saber, antes pelo contrário.
Ou seja, atendendo às concretas circunstâncias dos autos, nunca seria de ordenar qualquer diligência.
7. Para negar provimento ao recurso, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, em síntese, o seguinte:
- invocados e provados os defeitos, cabe ao empreiteiro, por força do disposto no artigo 346.° do Código Civil, a contraprova de que os defeitos não causaram danos ao dono da obra, ou que tendo-os causado, se limitam ao valor de X ou Y.
- no caso dos autos, como a dona da obra fez acionar as garantias bancárias, o mesmo artigo 346.° leva a que tenha de ser ela a provar que tal recebimento ficou aquém do valor dos danos emergentes do cumprimento defeituoso.
- chegar-se-ia a este entendimento pelo princípio da boa-fé, sendo legítimo pensar-se que tendo havido defeitos e tendo sido acionadas as garantias, era legítimo pensar-se, salvo demonstração em contrário, que quanto àqueles, tudo se passava no acerto de contas, como se não tivessem tido lugar.
- o recurso à exceção de não pagamento, por parte da dona da obra, não seria de recusar à partida, só que tendo sido acionados por aquela, as garantias bancárias, passou a caber-lhe o ónus de provar o que não provou.
8. O recorrente desdobrou e fragmentou as interpretações, mas, no essencial e decisivo, foram aqueles os fundamentos que levaram a que a revista fosse negada.
9. Vendo a decisão já anteriormente proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que concedeu provimento ao recurso interposto pela embargada/exequente e se encontra transcrita no acórdão ora recorrido, constata-se que grande parte das questões controvertidas que ali foram tratadas, correspondem àquelas que agora são questionadas (designadamente ónus da prova recair sobre a embargante porque as garantias foram acionadas).
10. Também pela análise do Acórdão da Relação de Lisboa, das Alegações no recurso interposto pela recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça e do “Parecer” junto por aquela, se constata que as interpretações acolhidas pelo Supremo Tribunal de Justiça nada tiveram de surpreendente.
11. Aliás, não perfilhando o entendimento da recorrente, aquelas interpretações não só eram possíveis como eram as prováveis, as mais prováveis, constituindo, em suma, “a outra interpretação”.
12. Assim, não sendo as interpretações anómalas, surpreendentes ou inesperadas, a recorrente não estava dispensada do ónus da suscitação prévia, em relação a todas as questões de constitucionalidade.
13. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
3. Notificada a reclamante para se pronunciar sobre as questões novas suscitadas na resposta do Ministério Público, veio dizer o seguinte:
«A., LDA., Reclamante nos autos em epígrafe, onde é Reclamada B., S.A., notificada do parecer incorporado pelo Ministério Público no processo, vem dizer
1. Ao invés do que pretende o Ministério Público nos n.ºs 3 a 5 do seu parecer, não há nenhum equívoco nem nenhum lapso na identificação das normas cuja dimensão normativa se questiona.
2. Na primeira questão suscitada no recurso, a recorrente pretende, com efeito, ver declarada a inconstitucionalidade da norma do n.° 2 do art.° 265.° do Código de Processo Civil, no sentido com que a interpretou e aplicou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido no recurso de revista, ou seja, no sentido e com o alcance de que tal preceito deve ser restringido pelo princípio da razoabilidade e de que, nessa conformidade, o tribunal não deverá aplicar o preceito em causa sempre que as partes, podendo, não produzirem prova nem tomarem a iniciativa de requerer a efetivação de outras diligências.
3. E também não há nenhum equívoco nem nenhum lapso na indicação da norma cuja declaração de inconstitucionalidade se pretende no n.° 2 do requerimento de interposição: trata-se, com efeito, da norma emergente da norma cuja declaração de inconstitucionalidade se pretende no n.º 2 do requerimento de interposição: trata-se, com efeito, da norma emergente da conjunção do n.º 2 do art.° 265.° do Código de Processo Civil, com o n.° 2 do art.° 342.° do Código Civil.
4. Também não tem razão o Ministério Público quando pretende que as inconstitucionalidades discriminadas pela Recorrente, aqui Reclamante, deveriam ter sido arguidas em sede anterior, porque a verdade é que tais inconstitucionalidades surgiram pela primeira vez no acórdão proferido em sede de revista pelo Supremo Tribunal de Justiça.
5. Não vai sem resposta o facto de que o Ministério Público pretende, com o seu parecer, suscitar a produção antecipada de alegações pelo Reclamante antes da respetiva fase processual.
6. O certo é que, para a Recorrente-Reclamante, as interpretações das normas identificadas no requerimento de interposição do recurso constitucional provém da conduta processual do STJ e são anómalas, surpreendentes e inesperadas.
Nos termos expostos, deve ser deferida a Reclamação da A., Ld.ª e admitido o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, abrindo-se, sem mais delongas, a fase das alegações.»
4. A reclamante pretende recorrer para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 4135/4168, com vista à apreciação da inconstitucionalidade de cinco interpretações normativas, referentes a diversos artigos do Código Civil e do Código de Processo Civil, identificadas no ponto I. da presente reclamação.
O recurso não foi admitido por despacho do Relator no Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento no facto de a interessada não ter suscitado, no decurso do processo, qualquer questão de constitucionalidade (cfr. ponto II. do despacho reclamado, a fls. 4195 e s. dos autos).
Reconhecendo que as inconstitucionalidades não foram arguidas em nenhuma peça processual anterior ao recurso de constitucionalidade, a reclamante contrapõe que não teve possibilidade de as suscitar antes, porque as interpretações questionadas surgiram, pela primeira vez, ex novo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ora recorrido.
Mais alega, em resposta às contra-alegações do Ministério Público, que as mencionadas interpretações “são anómalas, surpreendentes e inesperadas” (fls. 4220).
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Tem o Tribunal efetivamente admitido exceções a esta regra, dispensando o recorrente do ónus de suscitação prévia, mormente nas situações, absolutamente anómalas, em que ele se vê confrontado com uma decisão-surpresa, de conteúdo insólito ou imprevisível. De acordo com este entendimento, o caráter objetivamente inesperado da aplicação, na decisão recorrida, de uma norma ou interpretação normativa torna inexigível que o interessado a represente como possível, de modo a adotar a precaução de suscitar, antes da prolação dessa decisão, as inconstitucionalidades que só em recurso vem alegar.
Vejamos se o caso dos autos se enquadra neste critério legitimador da falta de suscitação prévia.
O acórdão recorrido pronunciou-se pela improcedência da exceção do não cumprimento do contrato (de empreitada), invocada como causa legítima de não pagamento da parte do preço em dívida pelo dono da obra (executado-embargante), quando este não fez prova do montante dos danos decorrentes dos defeitos da obra e acionou as garantias bancárias prestadas pelo empreiteiro (exequente-embargado). A consideração deste último elemento teve relevo decisivo na fundamentação do acórdão recorrido, pois o Supremo Tribunal entendeu que «tendo sido provado, contudo, que a dona da obra fez acionar garantias bancárias, naturalmente para se ressarcir dos prejuízos havidos com a empreitada, o mesmo artigo 346.º leva a que tenha de ser ela a provar que tal recebimento ficou aquém do valor dos danos emergentes do cumprimento defeituoso e, na hipótese afirmativa, em quanto». Só com a prova da insuficiência dos montantes das garantias para arcar com os custos da eliminação dos defeitos da obra ficaria comprovada a subsistência de um crédito do dono da obra, capaz de justificar a exceptio.
Ora, quanto a este ponto fulcral, atinente ao ónus probatório de um crédito do devedor excepcionante, já no anterior acórdão do Supremo Tribunal, proferido neste processo, que anulou o primitivo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e determinou a realização de novo julgamento, se deixara assente o seguinte critério:
«De acordo com os princípios de repartição do ónus da prova (art.342.º, nº 2 C. Civil) incumbe à executada/embargante alegar e provar que não cumpriu por causa legítima, do mesmo modo que lhe competia alegar e provar que os montantes das garantias bancárias que incorporou no seu património eram insuficientes para fazer face aos custos de eliminação dos defeitos da obra. Na verdade, tendo optado por se ressarcir deste modo, no uso, aliás, de um direito que lhe assistia, e opor depois à empreiteira a exceção de não cumprimento precisamente com base na existência de defeitos da obra, sobre ela recaia o ónus de demonstrar que não estava suficientemente ressarcida dos prejuízos decorrentes da execução defeituosa do contrato».
A interpretação questionada é, pois, tudo menos surpreendente, pois, quanto à questão sobre que se pronuncia, limita-se a repetir uma posição já tomada pelo tribunal recorrido no processo. Pelos mais elementares critérios de exigibilidade e de razoabilidade, o interessado devia ter contado com ela, impugnando atempadamente a sua constitucionalidade.
Quanto à interpretação do n.º 2 do artigo 265.º do Código de Processo Civil, o alegado dever de o tribunal convidar as partes a produzir prova tem óbvia conexão material com a relacionação, estabelecida pela reclamante nas conclusões 21. e 22. das alegações que apresentou junto do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 4030 e s. dos autos) entre o princípio da verdade material e o dever de o Tribunal realizar ou ordenar diligências de necessárias ao apuramento do montante dos danos. A questão foi trazida aos autos por iniciativa da própria reclamante, que teve então oportunidade de, atuando com a diligência e a prudência exigíveis, arguir a inconstitucionalidade da interpretação oposta à por si defendida.
O mesmo se diga da questão a que se refere o ponto 5. da presente reclamação, a qual dá corpo ao ponto 17. das mencionadas conclusões. Diga-se, aliás, que o tribunal recorrido nem explícita nem implicitamente aplicou a interpretação impugnada. Passou, pura e simplesmente ao lado dessa questão, uma vez que ela ficou prejudicada pela decisão quanto ao ónus da prova. Esta decisão levou a não dar por assente a existência de um crédito do dono da obra sobre o empreiteiro e não apenas a concluir pela indeterminação do montante de um crédito efetivamente existente.
Acresce que, posteriormente, a reclamante requereu a junção aos autos (que foi deferida) de parecer jurídico no qual, além do mais, se discute a repartição do ónus da prova na exceção de não cumprimento do contrato, a relação desta exceção com a prestação de garantia e a prova do dano sem a correspondente quantificação (fls. 4045 e s. dos autos).
A reclamante estava, assim, em condições de poder (e dever) suscitar as questões de constitucionalidade perante o tribunal recorrido antes que este esgotasse o poder jurisdicional sobre a matéria a que respeitavam as questões de constitucionalidade. As interpretações adotadas no acórdão recorrido nada tiveram de surpreendentes, tendo necessariamente de constar do “horizonte de representação” das possibilidades de juízo, uma vez que estas se dispunham numa alternativa binária de opções, entre uma ou outra das únicas interpretações em jogo. Como salienta o Ministério Público, a interpretação contrária àquela pela qual a reclamante pugna, é “a outra interpretação”, como tal facilmente prognosticável pela interessada.
A falta de suscitação da questão de constitucionalidade no decurso do processo é, só por si, motivo de não admissão do recurso.
Assim, sem necessidade de outros considerandos, deve a presente reclamação ser indeferida.
5. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de janeiro de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.