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Proc. nº 655/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - A., foi autuado na Repartição de Finanças do concelho de Figueira da Foz, pela prática de transgressões previstas e punidas nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º, 2º, 3º, 11º e 22º, nº 1, todos do Regulamento do Imposto de Compensação, aprovado pelo Decreto-Lei nº
354-A/82, de 4 de Setembro, em virtude de não haver pago o imposto de compensação, respeitante aos anos de 1984, 1985 e 1986, e correspondente ao veículo automóvel de matrícula ----------------, de sua propriedade, que utilizava o gasóleo como combustível de propulsão.
Não havendo o infractor feito o pagamento voluntário da multa e do imposto liquidados no respectivo processo foi este remetido ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra.
Neste tribunal, na sequência de informação prestada pela Conservatória do Registo de Automóveis, veio a apurar-se que a propriedade do veículo em causa fora registada desde 27 de Abril de 1982, a favor de A., desde 29 de Novembro de 1983, a favor de B. e desde 1 de Agosto de 1986, a favor de C..
Os autos foram devolvidos à Repartição de Finanças da Figueira da Foz onde, em face dos elementos de facto assim recolhidos, se organizaram novas liquidações.
Entretanto, no Tribunal Tributário de 1ª instância de Coimbra, para o qual os autos foram reenviados, por sentença de 3 de Abril, foi julgado extinto o procedimento judicial instaurado contra a arguida C. em virtude de esta haver pago voluntariamente o imposto e a multa referida no auto de notícia, considerando-se porém o arguido B. como autor de dez contravenções fiscais previstas e punidas pelos já citados artigos do Regulamento do Imposto de Compensação.
Todavia, ponderando que posteriormente à data da prática dos factos, foi editada a Lei nº 65/90, de 28 de Dezembro (Orçamento do Estado para 1991) que no seu artigo 43º eliminou o imposto de compensação - o que equivale a uma despenalização das condutas pretéritas (artigo 2º, nº 2 do Código Penal), não tendo o legislador posto qualquer ressalva quanto às ofensas anteriormente dirigidas ao bem jurídico ali protegido o que significou a supressão de toda a estrutura normativa a ele respeitante - aquela sentença teve por não puníveis as infracções fiscais praticadas pelo arguido, se bem que o houvesse condenado ao pagamento do imposto devido no montante de 30.000$00.
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2 - Desta decisão levou recurso ao Supremo Tribunal Administrativo o Representante da Fazenda Pública junto daquele Tribunal Tributário, peticionando a sua revogação na parte em que absolveu o arguido da infracção fiscal por que vinha acusado, e a sua consequente condenação no pagamento da respectiva multa.
Por acórdão de 30 de Setembro de 1992, o Supremo Tribunal Administrativo não chegou a apreciar o objecto do recurso pois que, conhecendo oficiosamente da questão da prescrição do procedimento judicial, concluiu no sentido de se verificar tal excepção, ficando desta forma prejudicada a decisão sobre o mérito do recurso com a consequente a extinção do procedimento judicial contra o arguido e o arquivamento dos autos.
No essencial, esta decisão ateve-se aos fundamentos seguintes:
- Segundo o artigo 115º, alínea b) e §§ 1º e 2º do Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI), na redacção do Decreto-Lei nº 500/79, de 27 de Dezembro, o prazo de prescrição do procedimento judicial era de cinco anos e interrompia-se pela instauração do processo de transgressão bem como por qualquer acto que já tivesse sido notificado ao arguido;
- No caso vertente, foi instaurado contra o arguido processo de transgressão em
14 de Dezembro de 1989, havendo sido notificado para pagar as multas correspondentes às infracções que lhe eram imputadas ou contestar, através de editais afixadas em 5 de Fevereiro de 1990;
- Daqui decorre que passaram mais de cinco anos desde a prática das infracções consistentes no não pagamento do imposto relativo a todo o ano de 1984, até que foi instaurado o processo de transgressão, encontrando-se assim prescrito o respectivo procedimento;
- Relativamente às restantes transgressões, decorreram, menos de cinco anos desde a sua prática até à instauração do processo de transgressão, não se encontrando assim prescritas ao abrigo do artigo 115º do CPCI;
- Contudo, há-de tomar-se em consideração o Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras - RJIFNA) que transformou em contra--ordenações fiscais todas as anteriores transgressões e instituiu um novo regime de prescrição;
- Por força do artigo 3º deste diploma, aquelas transgressões são equiparadas a contra-ordenações ou mesmo qualificadas como tal, condutas que lhes estão subjacentes, sendo certo que em qualquer dos casos, ex vi do disposto no artigo
4º, nº 2, daquele Regime Jurídico, são-lhes aplicadas as disposições do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que no artigo 27º estabelece um prazo máximo de prescrição de dois anos.
- Aplicando este último diploma, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, as infracções em causa estariam prescritas, sendo certo apresentar-se este regime como o mais favorável ao arguido.
- Simplesmente, os artigos 2º e 5º, nº 2 do Decreto-Lei nº 20-A/90, impedem a aplicação daquele regime, ainda que mais favorável ao arguido, às transgressões praticadas antes da sua entrada em vigor. Todavia, nessa exacta medida, são tais normas inconstitucionais por violação do disposto no artigo 29º, nº 4, da Constituição, havendo, em consequência, sido recusada a sua aplicação.
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3 - Em obediência ao disposto nos artigos 70º, nº
1, alínea a) e 72º, nº 1, alínea a) e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, trouxe o Ministério Público recurso obrigatório deste acórdão ao Tribunal Constitucional.
Nas alegações entretanto oferecidas pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, concluiu-se do modo seguinte:
1º - São materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição, as normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, enquanto obstam à aplicação retroactiva da lei sancionatória mais favorável;
2º - termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada.
O recorrido não produziu qualquer contra-alegação.
Corridos os vistos de lei cumpre agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - As normas dos artigos 2º e 5º, nº 2 do Decreto-Lei nº 20-A/90, que como já se referiu veio aprovar o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, desaplicadas, com fundamento em inconstitucionalidade, no acórdão recorrido, dispõem do modo seguinte:
Artigo 2º
(Início da eficácia temporal)
As normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor do presente diploma.
Artigo 5º
(Âmbito da revogação)
1 - ................................................
2 - Mantêm-se em vigor as normas do direito contravencional anterior até que haja decisão, com trânsito em julgado, sobre as transgressões praticadas até à data da entrada em vigor do presente diploma.
3 -.................................................
O Regime Jurídico aprovado por este diploma depois de definir infracção fiscal como 'todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei fiscal anterior', dividiu as infracções fiscais em
'crimes e contra-ordenações fiscais'.
Os crimes fiscais (fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e prestação de créditos fiscais) acham-se previstas nos artigos
23º a 27º, dispondo os artigos 28º a 40º sobre as contra-ordenações fiscais nos quais se tipificam em todos eles condutas contra-ordenacionais no âmbito fiscal.
Acresce, neste particular domínio, que o artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20-A/90, equiparou a contra-ordenações, todas as transgressões fiscais tipicamente descritas a que era aplicável o Código de Processo das Contribuições e Impostos, desde que os factos nelas previstos não sejam subsumíveis aos tipos de ilícito de mera ordenação social contemplados no novo Regime Jurídico.
Todavia, até ao momento em que transitem em julgado as decisões proferidas ou a proferir sobre elas, as transgressões fiscais praticadas até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 20-A/90, continuaram a subsistir como tais.
Com efeito, por força das normas de que se deixou transcrição, 'as normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor' do respectivo diploma (artigo 2º), mantendo-se 'em vigor as normas do direito contravencional anterior, até que haja decisão, com trânsito em julgado, sobre as transgressões praticadas até à data do início da sua vigência' (artigo 5º, nº 2).
Pode seguramente afirmar-se que estes preceitos visaram impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às transgressões fiscais entretanto desgraduadas em contra-ordenações pelo novo Regime Jurídico.
O acórdão recorrido interpretando deste modo as normas em controvérsia, desaplicou-as com base no entendimento de conflituarem com o princípio estabelecido no artigo 29º, nº 4, da Constituição.
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2 - O artigo 29º, nº 4, da Constituição, que consagra o princípio da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável ao arguido dispõe assim:
'Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'.
Este princípio significa fundamentalmente que deixa de ser considerado crime o facto que a lei posterior venha despenalizar, ou que passa a ser menos severamente penalizado se a lei posterior o sancionar como pena mais leve.
Consagram-se assim constitucionalmente excepções ao princípio da irretroactividade da lei penal estabelecido nos nºs 1 e 3 do mesmo preceito, excepções essas que se repercutem no artigo 2º, nºs 2 e 4 do Código Penal.
A lei posterior à perpetração do crime é mais favorável em dois casos previstos neste preceitos, isto é, no caso de eliminação da infracção pela nova lei, e no caso de, sendo embora incriminado o facto tanto pela lei anterior como pela posterior à sua perpetracção, a nova lei consentir uma punição mais leve (cfr. sobre o princípio da legalidade e da não retroactividade penal, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, 1963, p.
154; Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, Lisboa, 1992, pp. 65 e ss.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 192 e ss).
Mas, embora formulado para o domínio do direito penal, será que o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável, valerá também para situações como aquela que se coloca nos presentes autos, em que um ilícito qualificado como transgressão fiscal foi, entretanto, desgraduado em ilícito contra-ordenacional?
Como a seguir se tentará demonstrar a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
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3 - O Tribunal Constitucional teve já ensejo de se pronunciar sobre esta matéria (cfr. por todos o Acórdão nº 227/92, Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1992), havendo fixado uma linha jurisprudencial que de seguida se acompanhará.
As normas do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras respeitantes a contra-ordenações, na medida em que deixam de qualificar como transgressões condutas anteriormente assim definidas, constituem, em certo sentido, uma lei penal de conteúdo mais favorável, pois que retiram do domínio penal factos que antes aí se situavam.
Mesmo quando se entenda que a nova lei não deve ser qualificada como lei penal, uma vez que as infracções fiscais não integravam o domínio penal (cfr. José Manuel Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, pp. 100 e ss.) e, depois, porque, em direitas contas, verdadeiramente veio ela tipificar como contra-ordenações condutas que, antes, eram havidas como transgressões (artigos 28º a 40º do novo Regime Jurídico) e, em outros casos, equiparar a contra-ordenações outras transgressões que não converteu em crimes nem tipificou como ilícitos de mera ordenação social (artigo
3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20-A/90), ainda assim haverá o legislador de observar o princípio contido no artigo 29º, nº 4 da Constituição.
É que, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável, na sua ideia essencial, não pode deixar de valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social.
Muito embora a realidade do direito criminal seja completamente diferente da do direito de mera ordenação social, aquele princípio que visa, em última análise, as garantias do próprio infractor, há-de aplicar-se neste ramo do direito do qual é direito material subsidiariamente aplicável o Código Penal, por força do que se dispõe no artigo 32º do Decreto-Lei nº 433/82.
Este entendimento vem sendo perfilhado no plano doutrinal, havendo sobre esta específica matéria Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 195, escrito, nomeadamente:
'É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensíveis a outros domínios sancionatórios. A epígrafe `aplicação da lei criminal' e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação directa apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respectivas sanções). Há-de, porém, entender-se que esses princípios devem, no essencial, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar. Será o caso do princípio da legalidade, da não retroactividade, da aplicação retroactiva da lei mais favorável'.
Em sentido similar se pronunciou Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, O Movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Centro de Estudos Judiciários, p. 330, referindo expressamente, no que toca ao âmbito de vigência da lei que instituiu o ilícito de mera ordenação social (o Decreto-Lei nº 433/82), 'que se transportam para o direito das contra-ordenações as garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal, nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável'.
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III - A decisão
Pelos fundamentos expostos decide-se:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 29º, nº 4 da Constituição, as normas dos artigos 2º e 5º, nº 2 do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, interpretadas no sentido de visarem impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às infracções que o Regime Jurídico, aprovado por este diploma, desgraduou em contra-ordenações;
b) Negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido relativamente ao julgamento da questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 3 de Novembro de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa