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Proc. 162/90 Plenário Rel.: Cons. Sousa e Brito
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I
RELATÓRIO
1. O Provedor de Justiça veio requerer em 30 de Maio de 1990, ao abrigo dos artigos 281º, nº 2, alínea d), da Constituição e 51º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional apreciasse e declarasse a inconstitucionalidade material das normas constantes dos arts. 32º e 34º do Decreto-Lei nº 42641, de 21 de Novembro de 1959, e 6º do Decreto-Lei nº
24/86, de 18 de Fevereiro, por entender que as normas dos arts. 32º e 34º violam o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição, a norma do art.
32º colide também com o princípio do 'favor laboratoris' consignado na alínea d) do art. 296º da Lei Fundamental, a norma do art. 34º ofende o direito de propriedade privada reconhecido pelo art. 62º da Constituição e a norma do art.
6º do Decreto-Lei nº 24/86 padece de inconstitucionalidade consequente por violação dos mesmos preceitos constitucionais.
Para fundamentar o pedido baseou-se na seguinte ordem de considerações:
O artigo 32º do Dec-Lei nº 42641 de 21/11/59 impede os empregados das instituições de crédito de, por si ou por interposta pessoa, tomar parte nas respectivas assembleias gerais.
Tal normativo priva do direito societário à participação na assembleia geral de accionistas os accionistas que sejam trabalhadores, e apenas por possuírem tal qualidade.
Só que tal proibição, por envolver o tratamento diferenciado de situações essencialmente iguais - de accionistas - carece de adequado suporte material e, por isso, ofende o princípio de igualdade do art. 13º da C.R.P..
A identidade substancial das situações em presença (accionistas trabalhadores e não trabalhadores) acabou por ser reconhecida, recentemente, com a aprovação da Lei Quadro das Privatizações (Lei 11/90 de 5/4, artigos 3º c) e 12º).
Ora, o art. 32º do Dec-Lei 42641 impõe uma impossibilidade total e permanente de participação na assembleia geral dos trabalhadores accionistas.
Daí que tal 'indisponibilidade permanente' se revele contrária aos objectivos visados pela norma constitucional (art. 13º C.R.P.) ao exigir igual tratamento de situações essencialmente iguais ou seja, das situações de accionistas trabalhadores ou não.
Para mais nas sociedades anónimas têm direito de estar presentes na assembleia geral e aí votar os accionistas que tiverem direito a, pelo menos, um voto (art.
379º C. Soc. Comerciais). E de acordo com os Estatutos anexos ao Dec-Lei 352/88 de 1/10 a cada 100 acções corresponde um voto na assembleia geral (art. 7º).
O artigo 34º do Dec-Lei 42641 de 21/11/59, ao impedir que a assembleia geral dos bancos seja constituída por mais de trezentos accionistas, acaba por beneficiar, sem fundamento material suficiente, os accionistas com menor número de acções até ao limite de 300 em relação aos demais, tendo em conta que a cada acção como parcela do capital social equivale um complexo de situações jurídicas activas e passivas.
O preceito em causa comporta uma discriminação negativa com base na situação económica dos accionistas, a qual é repelida pelo nº 2 do art. 13º da Constituição.
E envolve também uma ofensa ao artigo 62º da Constituição (direito de propriedade privada) considerando, em síntese, que a componente patrimonial do direito de participação social dos accionistas não pode nos termos do citado normativo constitucional sofrer restrições, a não ser nos casos previstos na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
O artigo 34º do Dec-Lei 42641 limita, sem qualquer compensação, o complexo direito de participação social do grupo de accionistas com menos acções além das
300, sendo certo que tal restrição não decorre de algum motivo de interesse público e que nas sociedades anónimas os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de acções e não a accionistas determinados (Código de Sociedades Comerciais, art. 24º nº 4).
O art. 6º do Dec-Lei 24/86 de 18/2 (que adaptou o Dec-Lei 51/84 de 11/2, relativo à constituição de bancos comerciais ou de investimento por entidades privadas, ao regime comunitário de autorização de instituições de crédito) ao manter a aplicação do Capítulo III do Dec-Lei 42641 de 12/11/1959 em cujo âmbito se inserem os seus artigos 32º e 34º, mostra-se também ferido de inconstitucionalidade material por ofensa dos artigos 13º, 62º e 296º d) da Constituição.
2. O Primeiro-Ministro, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, concluiu a sua resposta dizendo:
' I - O artigo 32º do Decreto-Lei nº 42641, de 12 de Novembro de 1959, foi expressamente revogado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 219/90, de 4 de Julho, encontrando-se por isso prejudicada a apreciação do pedido de declaração de inconstitucionalidade.
II - O artigo 34º do mesmo diploma não contraria o nº 2 do artigo
13º, nem o artigo 62º da Constituição, procura antes cumpri-los e até garanti-los.
III - O artigo 6º do Decreto-Lei nº 24/86, de 18 de Fevereiro, não padece de inconstitucionalidade consequente, em virtude da aplicação aos bancos comerciais e de investimento do artigo 34º, uma vez que este não está inquinado de inconstitucionalidade.'
Concluiu, por isso, no sentido de que 'deverá ser julgado improcedente o pedido declarando-se a constitucionalidade das normas contidas nos artigos 34º do Decreto-Lei nº 42641, de 12 de Novembro de 1959, e do artigo 6º do Decreto-Lei nº 24/86, de 18 de Fevereiro.'
II
FUNDAMENTOS
3. Importa começar por referir o teor das normas questionadas.
Os arts. 32º e 34º do Decreto-Lei nº 42641, de 21 de Novembro de 1959, dispõem como segue:
«Art. 32º Os empregados das instituições de crédito não podem, por si ou por interposta pessoa, tomar parte nas respectivas assembleias gerais.»
«Art. 34º A assembleia geral dos bancos não pode ser constituída por mais de 300 accionistas.
§ 1º Feito o depósito das acções dentro do prazo estabelecido para tomar parte numa assembleia geral, o presidente desta ou o conselho de administração, no caso de aquele não estar ainda eleito, verificará se o número de membros da referida assembleia poderá exceder 300 e, podendo, organizará uma lista dos depositantes com a indicação do número de votos que cabe a cada um.
§ 2º Obtida a soma dos votos possíveis, será a mesma dividida por
300 e considerados imediatamente apurados como membros da assembleia geral os accionistas que tiverem um número de votos igual ou superior ao quociente.
§ 3º Os accionistas que não estiverem nas condições do parágrafo anterior serão convidados a agrupar-se de forma que cada grupo fique com o número de votos igual ou superior ao quociente a que se refere o mesmo parágrafo, passando os accionistas procuração a um que será o seu representante na assembleia. Para este efeito, e não obstante qualquer disposição estatutária em contrário, pode um accionista representar vários.
§ 4º A lista dos accionistas a que se refere o parágrafo anterior será publicada com antecedência mínima de oito dias, em relação à data marcada para a assembleia geral, em dois jornais da localidade da sede do banco, se os houver, e também num jornal da capital se a sede não for nesta, e ainda no Diário do Governo, se a sede for no continente.
§ 5º As procurações passadas para os fins do § 3º serão apresentadas na sede do banco até ao último dia útil antes daquele em que a assembleia houver de reunir-se.»
O art. 6º do Decreto-Lei nº 24/86, de 18 de Fevereiro, determina que:
«Aplica-se às instituições abrangidas por este diploma o disposto no capítulo III do Decreto-Lei nº 42641, de 12 de Novembro de 1959, em tudo quanto não contrariar as presentes disposições.»
4. Importa decidir previamente se se reveste de interesse jurídico o conhecimento do presente pedido.
Coloca-se esta questão, porque, na pendência do pedido, as normas que constituem objecto do mesmo, foram, todas elas, revogadas.
Na verdade, a norma constante do art. 32º do Decreto-Lei nº 42641, de 12 de Novembro de 1959, foi revogada expressamente pelo art. 2º do Decreto-Lei nº 219/90, de 4 de Julho.
Quanto ao art. 34º do Decreto-Lei nº 42641, os seus parágrafos 4º e 5º foram alterados, primeiro, pelo Decreto-Lei nº 219/90 (cfr. art. 1º), e, revogado todo o artigo, depois, pelo art. 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro (publicado no 6º Suplemento do Diário da República, nº 301, I Série-A, de 31 de Dezembro de 1992). Este diploma, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, revogou, a partir da data da entrada em vigor desse Regime Geral, a legislação relativa às matérias nele reguladas, designadamente o Decreto-Lei nº 42641, de 12 de Novembro de 1959 e o Decreto-Lei nº 24/86, de 18 de Fevereiro.
Embora não haja declaração revogatória expressa quanto aos arts. 34º do Decreto-Lei nº 42642, e 6º do Decreto-Lei nº 24/86, a revogação resulta da circunstância de a nova lei regular toda a matéria do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, de que faz parte o funcionamento e composição dos orgãos sociais, nomeadamente das assembleias gerais. De facto, neste Regime Geral o seu Título IV estabelece normas prudenciais e de supervisão, surgindo no Capítulo II, respeitante especificamente a normas prudenciais, várias regras sobre participações accionistas, direitos de voto e sua inibição e sobre organização das assembleias gerais que criam um regime jurídico incompatível com o previsto no art. 34º do Decreto-Lei nº 42641. Bastará referir o art. 110º do Regime Geral sobre a organização da relação de accionistas, o qual pressupõe a aplicação às instituições de crédito do disposto no Código das Sociedades Comerciais quanto a assembleias gerais de sociedades anónimas (cfr. o seu nº 3).
O Decreto-Lei nº 298/92, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1993 (cfr. art. 2º).
Tendo sido revogadas, como acaba de ver-se, todas as normas que constituem objecto do pedido, impõe-se perguntar se, ainda assim, haverá interesse com relevo jurídico bastante para justificar o conhecimento do pedido.
5. A circunstância de uma determinada norma impugnada ter sido, entretanto, revogada não implica, por si só, a falta de interesse jurídico no conhecimento da questão da sua eventual inconstitucionalidade e respectiva declaração com força obrigatória geral. É pacífica neste ponto a jurisprudência do Tribunal Constitucional (vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs
238/88, 415/89, 73/90, 200/90, 446/91 e 175/93, este ainda inédito e os outros publicados no Diário da República, II Série, nº 293, de 21 de Dezembro de 1988, nº 213, de 15 de Setembro de 1989, nº 165, de 19 de Julho de 1990, nº 207, de 7 de Setembro do mesmo ano, nº 211, de 12 de Setembro ainda do mesmo ano e nº 78, de 2 de Abril de 1992, respectivamente). Na verdade, uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, produzindo efeitos retroactivos, ex tunc (art. 282º, nº 1, da Constituição), sempre poderia tornar
útil a fiscalização da constitucionalidade da norma revogada, na medida em que tal norma, enquanto havia estado em vigor, tivesse produzido efeitos medio tempore, que se mantivessem até ao momento em que o Tribunal Constitucional viesse a proferir a sua decisão.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional atrás referida exige que, nos casos de apreciação da inconstitucionalidade de normas revogadas em processos de fiscalização sucessiva, se verifique um interesse 'com conteúdo prático apreciável' que permita justificar o 'accionamento de um mecanismo de índole genérica e abstracta como é a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade' (formulação contida no Parecer nº
21/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 16º volume, pág. 203; esta formulação é acolhida no Acórdão nº 238/88, atrás citado).
6. No caso sub judicio nenhum interesse de 'conteúdo prático apreciável' consegue vislumbrar-se para conhecer do objecto do pedido.
A norma do art. 32º do Decreto-Lei nº 42641 foi revogada pelo Decreto-Lei nº 219/90. A revogação neste caso só produziu efeitos para o futuro.
As normas dos arts. 34º do Decreto-Lei nº 42641 e 6º do Decreto-Lei nº 24/86, foram revogadas, como se disse atrás, pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro. Este diploma entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1993, sendo que 'aos processos pendentes em 1 de Janeiro de 1993 continua a aplicar-se a legislação substantiva e processual anterior, sem prejuízo da aplicação da lei mais favorável' (cfr. art. 3º, nº 5).
Tendo as normas questionadas produzido efeitos durante o período de tempo por que vigoraram, bem possível é que, desses efeitos, alguns ainda subsistam pois que, eventualmente, foram realizadas assembleias gerais pelas instituições de crédito nas quais os seus empregados foram impedidos de tomar parte, por si ou por interposta pessoa, e em que apenas puderam participar um máximo de 300 accionistas, apurados de acordo com o procedimento constante dos vários parágrafos do art. 34º do Decreto-Lei nº
42641. Possível é também que tais assembleias gerais tenham sido judicialmente impugnadas.
Só que a eventual subsistência de tais efeitos, não torna necessário que se faça uma declaração de inconstitucionalidade das normas em apreço. Na verdade, realizadas as assembleias gerais de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 32º e 34º do Decreto-Lei nº 42641, e tendo sido as mesmas judicialmente impugnadas, sempre poderá haver recurso de constitucionalidadee da decisão judicial que aplique ou se recuse a aplicar tais normas, nos termos do disposto nos arts. 280º, nº 1, alíneas a) e b) da Constituição da República Portuguesa e 70º, nº 1, alíneas a) e b) da Lei do Tribunal Constitucional. Se não tiver havido impugnação judicial de tais assembleias, as situações jurídicas acham-se consolidadas, não devendo ser afectadas por eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Daqui se pode concluir que sempre seria excessivo ou desproporcionado continuar o presente processo até à eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, apenas para contemplar os litígios em que as normas revogadas tivessem sido aplicadas ou objecto de recusa de aplicação por decisão judicial. Para tais situações, basta que se aguarde pelos respectivos recursos de constitucionalidade, de forma a vir a ser proferida decisão pelo Tribunal Constitucional, não sendo, para tal, indispensável a prossecução do processo de fiscalização abstracta, mais complexo, por não se mostrar que tal seja aconselhado por quaisquer 'valores jurídico-constitucionais relevantes' (formulação retirada do já citado Acórdão nº 238/88).
Pode, por isso, concluir-se que, no caso sub judicio, não existe interesse jurídico relevante na apreciação do pedido.
III
CONCLUSÃO
7. Em virtude do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas dos arts. 32º e 34º do Decreto-Lei nº 42641, de 21 de Novembro de
1959, e 6º do Decreto-Lei nº 24/86, de 18 de Fevereiro, em razão da inutilidade do mesmo pedido.
Lisboa, 22 de Junho de 1993
José de Sousa e Brito Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa