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Proc. nº 366/93
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., autuado em 1990 pela prática de uma infracção prevista e punida nos termos dos arts. 10º, 11º e 22º do Regulamento do Imposto de Compensação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 354-A/82, de 4 de Setembro, consistente na falta de pagamento do imposto em causa referente ao veículo com a matrícula ---------------- e aos primeiro trimestre de 1985, e primeiro a terceiro trimestres de 1988, veio a ser condenado apenas ao pagamento do imposto devido (no montante de 12.000$00) por decisão do Sr. Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Leiria, o qual mandou arquivar os autos, quanto à infracção punida por multa, em virtude da prescrição do procedimento judicial.
Deste despacho interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo o Representante da Fazenda Nacional.
Por acórdão da 2ª Secção deste último Tribunal proferido em 28 de Abril de 1993, foi julgado improcedente o recurso. Nesse acórdão, foram desaplicados os arts. 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no nº 4 do art. 29º da Lei Fundamental.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade desta decisão, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, o qual foi admitido.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas produziu alegações a entidade recorrente, tendo formulado nessa peça as seguintes conclusões:
'1º São materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição, a normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, enquanto obstam à aplicação retroactiva da lei sancionatória mais favorável;
2º Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada.'
(a fls. 55 dos autos)
3. Foram dispensados os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Constitui objecto do presente recurso a questão da alegada inconstitucionalidade das normas dos arts. 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, diploma que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA).
Subordinado à epígrafe 'início da eficácia temporal', dispõe o art. 2º deste diploma:
'As normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor do presente diploma'.
E, por seu turno, o nº 2 do art. 5º do Decreto-Lei nº
20-A/90 estatui:
'Mantêm-se em vigor as normas do direito contravencional anterior até que haja decisão, com trânsito em julgado, sobre as transgressões praticadas até à data da entrada em vigor do presente diploma.'
Como as normas preambulares deste diploma nada dispuseram sobre a data da entrada em vigor do RJIFNA, há-de entender-se que as respectivas normas começaram a vigorar a partir de 20 de Janeiro de 1990.
Cabe, assim, perguntar se é constitucionalmente admissível uma interpretação das referidas normas do arts. 2º e 5º, nº 2, que impeça a aplicação retroactiva de normas do regime novo mais favoráveis ao arguido, atento o disposto na parte final do nº 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, o art. 29º da Constituição, preceito que regula a aplicação da lei criminal, estatui no seu nº 4:
'Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroacti-vamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'.
Deve notar-se que as transgressões imputadas ao arguido, praticadas nos anos de 1985 e 1988, tinham natureza penal contravencional, tendo as mesmas sido desgraduadas em contra-ordenações, passando a ser equiparadas a ilícito de mera ordenação social (arts. 3º, nº 1, e
5º de Decreto-Lei nº 20-A/90).
5. Como se demonstra detalhadamente nas alegações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido vale igualmente para o direito de mera ordenação social:
'Será que este princípio vale também para o direito de mera ordenação social?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa pois tem-se entendido que aí se consagra um princípio geral de aplicação do regime sancionatório (de natureza criminal ou não) mais favorável ao infractor, e, se este entendimento não é líquido em relação ao ilícito disciplinar, já o é mais em relação ao ilícito de mera ordenação social [...].
Parece, pois, que embora a realidade do direito criminal seja completamente diferente da do direito de mera ordenação social, os princípios de direito penal, que visam, em última análise, as garantias do próprio infractor, aplicam-se ao direito de mera ordenação social. Daí, o direito material subsidiariamente aplicável às contra-ordenações ser o Código Penal (artigo 32º do Decreto-Lei nº 433/82).
Poderia dizer-se que o que vem de referir-se valeria apenas para as situações em que há duas normas, uma de conteúdo mais favorável, mas da mesma natureza, ou seja, ambas do direito das contra-ordenações, e que o caso deste processo não é rigorosamente esse, porque, aqui, o confronto é entre uma norma de natureza criminal (em que se incluem as contravenções) com uma norma de direito de mera ordenação, portanto, de natureza diferente.
Mas, mesmo nestes casos, afigura-se que aquele princípio constitucional é válido, pois não faria sentido aplicá-lo quando estão em confronto duas normas de direito de mera ordenação social e não o aplicar quando houvesse uma norma de natureza criminal, porque neste caso o «desagravamento» ainda é maior, podendo falar-se inclusivamente de descriminalização (Taipa de Carvalho, ob. cit, págs. 88 a (100). O que é válido para o mais é neste caso, válido para o menos'. (a fls. 51 a 52 dos autos).
Tem-se por rigorosamente exacta a doutrina que se acaba de transcrever e que é aplicada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo identificada no acórdão recorrido e nas alegações a que se acaba de fazer referência.
6. No mesmo sentido vai a jurisprudência do Tribunal Constitucional (vejam-se os Acórdãos nºs 414/89, 227/92 e 228/92, o primeiro publicado no Diário da República, I Série, nº 150, de 3 de Julho de 1989, o segundo no Diário da República, II Série, nº 211, de 12 de Setembro de 1992 e o terceiro ainda inédito).
Em especial, no Acórdão nº 227/92, o Tribunal Constitucional julgou que sofriam de inconstitucionalidade, por violação do art.
29º, nº 4, da Lei Fundamental, os arts. 2º e 5º, nºs 2, deste Decreto-Lei nº
20-A/90. Escreveu-se aí:
'De facto, a nova lei (no caso as normas do citado Regime Jurídico respeitantes a contra-ordenações) - na medida em que deixou de qualificar como transgressões condutas que assim rotulava - é, em certo sentido, uma lei penal de conteúdo mais favorável, pois que «expulsou» do domínio penal factos que antes aí situava.
Claro que isto só é assim quando se veja nas infracções fiscais ilícitos de natureza criminal, puníveis, embora, com sanções (criminais) especiais (cfr., neste sentido, Eduardo Correia, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 100º, pp 289 e seguintes, sp. p. 371).
Pode, no entanto, argumentar-se que a nova lei não deve ser qualificada como lei penal, uma vez que as infracções fiscais não integravam o domínio penal (cfr., neste sentido, J.M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, pp. 100 e seguintes); e, depois, em direitas contas, o que ela talvez faz é, nuns casos (nos
casos dos artigos 28º a 40º do citado Regime Jurídico), tipificar como contra-ordenações condutas que, antes, eram tipificadas como transgressões e, noutros (nos casos previstos no artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20-A/90) equiparar a contra-ordenações outras trans-gressões, que não converteu em crimes nem tipificou como ilícitos de mera ordenação social.
Se as coisas houverem de ser entendidas como por último se apontou, nem por isso haverá de ter-se o legislador por dispensado de observar o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável consagrado expressamente no artigo 29º, nº 4, da Constituição apenas para as leis penais.
Tal princípio - o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável -, na sua ideia essencial, há-de, com efeito, valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social'. (nº 7)
7. Impõe-se, assim, a conclusão de que a interpretação dos arts. 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, segundo a qual não é possível a aplicação retroactiva da lei nova de conteúdo mais favorável ao arguido, contraria o art. 29º, nº 4, da Constituição, norma que é também aplicável no domínio do direito de mera ordenação social.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando em consequência o acórdão recorrido.
Lisboa, 28 de Outubro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
António Vitorino
José Manuel Cardoso da Costa