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Processo nº 102/93
2ª secção Rel. Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. e mulher, B., deduziram embargos de executado na execução, que o Estado moveu contra eles no 7º Juízo Cível da comarca de Lisboa, para cobrança da quantia de 3.000.000$00 (acrescida de juros, à taxa anual de
4%), titulada por uma livrança que ambos subscreveram. Alegaram, entre o mais, que o Estado não é legítimo detentor de tal título.
Tendo os embargos sido julgados improcedentes, recorreram para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 26 de Março de 1992, revogou parcialmente a decisão da 1ª instância.
Do acórdão da Relação de Lisboa interpuseram eles recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por se não terem conformado com ele,
'na parte em que decid[iu] que o Estado Português é parte legítima na acção executiva por ser legítimo detentor da livrança em causa'.
O Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, por acórdão de 9 de Dezembro de 1992.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vem o presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da constitucionalidade do artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/79, de 8 de Junho, na interpretação aí adoptada.
Nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitaram os recorrentes a inconstitucionalidade daquele artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/79, de 8 de Junho, 'na interpretação que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa perfilh[ou] [...], fazendo que um decreto-lei substitua o endosso previsto nos artigos 13º e 16º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças [...]'.
3. Tendo o relator entendido que não podia conhecer-se do recurso (uma vez que ele fora interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, quando o certo é que o artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/79, de 8 de Junho, na interpretação questionada, não coloca uma questão de inconstitucionalidade), fez exposição prévia nesse sentido e mandou ouvir sobre ela as partes.
4. Os recorrentes vieram responder nos termos seguintes:
1 - Os recorrentes consideram que as normas de direito internacional, ratificadas e aprovadas pelo Estado Português deverão ser respeitadas pelo direito interno e têm a primazia sobre este.
2 - Esta primazia está constitucionalmente assegurada nos termos do Nº 1 e 2 do Artº 8º da Constituição da República Portuguesa.
3 - Caso assim não suceda, restar-nos-ia apelar para as instâncias internacionais com os incómodos daí advenientes.
Concluindo: a) O Artº 4º do Decreto-Lei 179/79 de 8 de Junho, na interpretação que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça lhe dão, ou seja, que a Livrança transferida da 'Comissão para os Desalojados' para o Estado Português - Secretaria do Estado das Finanças têm força executiva, é inconstitucional por ofender os Artºs 13º e 16º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças e Artº. 8º, Nº 2, da Constituição da República Portuguesa. b) Em consequência deverá declarar-se que a livrança em causa não é título executivo, ordenando-se o arquivamento dos Autos. Assim, com o Suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS, deverá ser julgada inconstitucional a referida norma, declarando-se que a livrança em causa não é título executivo [...].
O Procurador-Geral Adjunto, de sua parte, na resposta que apresentou, sustentou que o Tribunal Constitucional se deve reconhecer
'competente para apreciar a conformidade entre o artigo 4º do Decreto-Lei nº
179/79, de 8 de Junho, na interpretação acolhida na decisão recorrida, e os artigos 13º e 16º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças e, indirectamente, o artigo 8º, nº 2, da Constituição'.
E isso porque - disse - 'é entendimento generalizado que, com o aditamento, pela Lei nº 85/89, da nova alínea i) àquele preceito
[refere-se ao nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional], pretendeu o legislador pôr termo àquela divergência jurisdicional [refere-se à divergência entre a 1ª e a 2ª Secções deste Tribunal: esta entendia que era incompetente para conhecer dos recursos, em que se questionassem normas de direito ordinário interno, com fundamento em que contrariavam normas de direito internacional convencional; a 1ª Secção, pelo contrário, considerava que o Tribunal era competente para o julgamento desses recursos, quer eles fossem interpostos ao abrigo da alínea a), quer da alínea b), do citado nº 1 do artigo 70º] no sentido da admissibilidade daqueles tipos de recursos'.
E acrescenta: Não faria sentido que, agora, com base na formulação daquela alínea i) - que não alude explicitamente à hipótese das decisões que apliquem norma constante de acto legislativo cuja contrariedade com uma convenção internacional haja sido suscitada durante o processo -, se viesse a sustentar a postergação do entendimento, desde sempre sufragado pela 1ª Secção, da admissibilidade deste tipo de recurso ao abrigo da alínea b) do citado preceito.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir a questão prévia do não conhecimento do recurso.
II. Fundamentos:
6. O recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe das decisões dos outros tribunais que tenham aplicado norma, cuja inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo.
Pois bem: a inconstitucionalidade do artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/79, de 8 de Junho (A titularidade dos créditos concedidos e de outros actos praticados na prossecução dos programas de crédito, bem como a dos saldos das contas bancárias exclusivamente afectas aos mesmos, transfere-se para a Secretaria de Estado das Finanças) - que os recorrentes suscitaram durante o processo - decorre, na tese deles, do facto de tal normativo - que o acórdão recorrido aplicou - ter substituído (dispensado) o endosso, previsto nos artigos 13º e 16º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, que, ex vi do preceituado no artigo 8º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, faz
'parte do direito interno português por força da publicação do Decreto nº
26.556, de 30 de Abril de 1936'.
Esta impostação do problema arranca da ideia de que aquele artigo 4º (na interpretação adoptada no acórdão recorrido) contraria os referidos artigos 13º e 16º da Lei Uniforme e, por via disso, o artigo 8º, nº 2, da Constituição.
Estas são, porém, questões que - pressupondo a consagração constitucional do princípio da primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno - aqui não há que decidir.
De facto, ainda que tais pressupostos sejam exactos, sempre a violação do artigo 8º, nº 2, da Constituição será uma violação indirecta, mediata ou de 2º grau, pois que esse normativo só será violado, havendo violação daqueles preceitos da Lei Uniforme.
Ora, este Tribunal, pela sua 2ª Secção, tem vindo a entender que as questões de constitucionalidade de que lhe cumpre conhecer ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, são apenas aquelas em que a norma arguida de inconstitucional viola, directa ou imediatamente, um princípio ou norma constitucional, e não também os casos de inconstitucionalidade indirecta (ou seja, aqueles casos em que a violação da Lei Fundamental ocorre porque, em primeira linha, existe uma violação de um preceito de lei infraconstitucional).
Os casos de contrariedade de norma constante de acto legislativo com uma convenção internacional só podem ser objecto de recurso para o Tribunal Constitucional - recurso que 'é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida' (cf. nº 2 do artigo 71º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) - na hipótese prevista na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da mesma Lei. Ou seja: só pode recorrer-se para este Tribunal das decisões 'que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional'.
O aditamento da alínea i) ao nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, feito pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, tem, justamente, o sentido de - como se sublinhou no Acórdão nº 162/93, da 1ª Secção
(por publicar) - enunciar 'um específico pressuposto que tem que ver com a competência deste Tribunal para apreciar a questão da contrariedade de acto legislativo com convenção internacional, nas dimensões jurídico-constitucional e jurídico-internacional'. Ou seja: após a publicação da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, deixou de poder questionar-se a competência do Tribunal Constitucional para o conhecimento da eventual contrariedade de norma constante de acto legislativo com convenção internacional.
Essa competência é, no entanto, restrita ao julgamento das 'questões de natureza juirídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida', devendo o Tribunal exercê-la, quando para si se recorrer das decisões de outros tribunais ao abrigo da citada alínea i) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da mencionada Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, nos precisos casos e termos enunciados nessa alínea i).
7. Tendo, pois, o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e não colocando o artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/79, de 8 de Junho, uma questão de inconstitucionalidade da competência deste Tribunal, não pode dele conhecer-se
(cf., embora incidindo sobre hipóteses diferentes da dos autos, os Acórdãos nºs
277/92, 351/92, 603/92 e 162/93, o primeiro, publicado no Diário da República, II série, de 23 de Novembro de 1992, e os últimos, por publicar).
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em cinco unidades de conta.
Lisboa, 29 de Junho de 1993
Messias Bento Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida
Bravo Serra (com a declaração de que me sobram dúvidas sobre a total coerência do disposto na alínea i) do nº 1 do artº 70º da LTC, no ponto em que pelo seu teor literal, não será admissível recurso para este Tribunal nos casos de aplicação de norma cuja ilegalidade foi suscitada pela 'parte'). José Manuel Cardoso da Costa