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Processo nº 227/91
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Comandante do Batalhão nº ----- da Guarda Fiscal, sediado em -----------, por despacho de 4 de Fevereiro de 1991, proferido em processo de contra-ordenação fiscal aduaneira, condenou A., identificado nos autos, na coima de 200.000$00, por ter introduzido alterações no veículo automóvel de matrícula ---------------, de sua propriedade, classificado como viatura ligeira de mercadorias, de modo a transformá-lo em veículo ligeiro misto de passageiros e carga - o que constitui contra-ordenação prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 1º, nº 2, e 11º do Decreto-Lei nº
152/89, de 10 de Maio, e do artigo 35º, nº 1, do 'Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras', aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro.
Desta condenação recorreu o arguido para o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto, sustentando não se verificar a prática da infracção fiscal de descaminho prevista naquele artigo 11º se um veículo de mercadorias ligeiro fechado, mesmo com alterações nas características determinantes da classificação fiscal, se destina exclusivamente ao transporte das pessoas referidas no §1º do artigo 5º do Regulamento de Transportes em Automóvel, acrescendo que, a não se entender assim, é exagerado o montante da coima aplicada, a ser, então, fixada no mínimo.
O Senhor Juiz, por despacho de 19 de Março de 1991, decidiu:
a) julgar organicamente inconstitucional o Decreto-Lei nº 376-A/89, por violação do artigo 168º, nº 1, alíneas c) e q), da Constituição da República (CR), uma vez que foi promulgado e referendado após o termo do prazo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 7/89, de 21 de Abril;
b) recusar, em consequência, a aplicação ao caso concreto do artigo 35º do Decreto-Lei nº 376-A/89 (terá querido dizer artigo 35º do Regime Jurídico aprovado por este diploma legal);
c) anular a decisão do Comandante da Guarda Fiscal, por falta de jurisdição do seu autor para conhecer e condenar pelo delito de descaminho;
d) converter o processo em processo-crime;
e) interromper a instância;
f) declarar-se incompetente para conhecer do crime e declarar competente para o efeito o Tribunal Judicial de Pinhel, devendo os autos, transitado o despacho em julgado, ser remetidos ao magistrado do Ministério Público (MºPº) dessa comarca, à ordem de quem ficará o veículo apreendido.
2.- Da decisão que assim recusou aplicar o artigo 35º em referência recorreu obrigatoriamente o MºPº para este Tribunal Constitucional.
O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal alegou oportunamente, entendendo dever conceder-se provimento ao recurso e determinar-se a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada, de acordo com o juízo de não inconstitucionalidade que assim sintetiza, nas respectivas conclusões:
'1º- Para que uma autorização legislativa seja utilizada dentro do prazo da respectiva duração basta que, antes de o mesmo expirar, o Governo haja aprovado, em Conselho de Ministros, o correspondente decreto-lei, sendo irrelevante que este só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além do termo de tal prazo;
2º- Assim, o Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, aprovado em Conselho de Ministros de 21 de Setembro de 1989, foi-o antes de expirado o prazo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 7/89, de 21 de Abril;
3º- Não sofrem, por isso, de inconstitucionalidade orgânica as normas do artigo 35º, nºs. 1 e 2, alínea d), do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado por esse decreto-lei que qualificam como contra-ordenação e punem com coima de 10.000$ a 10.000.000$ a violação de disposições especiais que expressamente tipifiquem o facto como descaminho, como acontece com o artigo 11º do Decreto-Lei nº 152/89, de 10 de Maio'.
Os autos sofreram posterior tramitação no sentido de se apurar eventual sujeição à amnistia decretada pela Lei nº 23/91, de 4 de Julho, a apreensão do veículo foi substituída por caução adequada e correram-se os vistos legais pelo que cumpre apreciar e decidir.
II
1.- A Lei
1.1.- Os textos legais invocados pelo Comandante da Guarda Fiscal para fundamentação da aplicação da coima dizem-nos: Decreto-Lei nº 152/89, de 10 de Maio: Artigo 1º, nº 2:
'Estão ainda sujeitos ao imposto automóvel os veículos automóveis ligeiros de mercadorias que, após a sua introdução no consumo, sejam transformados em veículos de passageiros ou em mistos de passageiros e carga de peso bruto inferior a 2500Kg'.
Artigo 11º
'O incumprimento dos prazos, a alteração das características determinantes da classificação fiscal dos veículos, bem como a utilização de veículos com desvio do destino ou aplicação em vista aos quais foram concedidos regimes de benefício, constantes do presente diploma, serão considerados como descaminho'.
Regime Jurídico das Infracções Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro:
Artigo 35º, nº 1:
'1.- A todo o facto que tenha por fim evitar, no todo ou em parte, o pagamento da prestação tributária aduaneira, tal como definida no artigo 2º deste Regime Jurídico, ou fazer passar através das alfândegas ou delas retirar quaisquer mercadorias sem serem submetidas às competentes formalidades de desembaraço fiscal, ou mediante falsas indicações, será aplicável coima de 10.000$ a 10.000.000$'.
1.2.- A recusa do magistrado recorrido em aplicar o preceito do
'Regime Jurídico' aprovado pelo diploma de 1989 baseou-se no artigo 168º, nº 1, da CR, e respectivas alíneas c) e q):
'1.- É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
-------------------------------
c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal;
-------------------------------
q) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos;
-----------------------------'.
Tratando-se, por conseguinte, de matérias relativamente às quais o Governo só poderia legislar desde que parlamentarmente credenciado, a Lei nº 7/89, de 21 de Abril, veio dar-lhe a competente autorização ao dispor, na parte que ora interessa:
'Artigo 1º
1.- Fico o Governo autorizado a estabelecer o regime jurídico das infracções fiscais aduaneiras, procedendo à revisão das actuais disposições legais relativas às mesmas e sua punição.
2.- No uso da autorização legislativa conferida nos termos do número anterior pode o Governo:
a) --------------------------
b) Definir tipos de ilícito de mera ordenação social de carácter aduaneiro, seus agentes, sua punição, órgãos competentes para dele conhecer e respectivas normas processuais aplicáveis.
Artigo 2º
O sentido da autorização legislativa constante do artigo anterior é a seguinte:
-------------------------------
c) Descriminalização de condutas previstas nas leis de contencioso aduaneiro e simplificação, com desvio do regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social, de tramitação do processo fiscal aduaneiro, tendo em vista uma maior eficácia na prevenção e repressão da fraude e evasão fiscal aduaneira;
-----------------------------'.
2.- O objecto do recurso
Entendeu o magistrado a quo ter a autorização concedida pela Lei nº 7/89 caducado em 18 de Outubro de 1989, inclusive,
'sendo este o 180º dia da autorização para fazer lei', se se entender que as leis de autorização legislativa entram em vigor sem vacatio legis, como é sua opinião, ou em 22 do mesmo mês, a considerar-se que a lei de autorização só entrou em vigor no continente no quinto dia após a sua publicação. De qualquer modo, sempre o Governo legislou posteriormente a essa data uma vez que o Decreto-Lei nº 376-A/89 é de 25 desse mês.
O objecto do recurso delimita-se, assim, à questão de saber, como melhor se verá adiante, qual o dies ad quem da autorização legislativa, daí se retirando o correspondente juízo sobre a eventual inconstitucionalidade orgânica da norma em causa.
III
1.- A eventual inconstitucionalidade orgânica do diploma por ofensa à alínea q) do nº 1 do artigo 168º da CR não tem razão de ser, no caso concreto.
Para o Senhor Juiz, o descaminho constituia delito fiscal definido pelo artigo 41º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 31 664, de 2 de Novembro de 1941, em vigor, por repristinação, quando foi publicado o Decreto-Lei nº 376-A/89, dada a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº
414/89 deste Tribunal (in - Diário da República, I Série, de 3 de Julho de
1989), que atingiu, entre outras, a norma do artigo 22º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 187/83, de 13 de Maio, a qual desgraduara o descaminho em contra-ordenação, reiterada pela do artigo 35º, nº 1, alínea d), do Decreto-Lei nº 424/86, de 27 de Dezembro.
Ora, diz-nos aquele magistrado, não tem o Governo competência para, sem autorização da Assembleia da República, 'converter crimes em contra-ordenações', o que envolve 'uma diminuição da competência dos tribunais' que só aquele órgão parlamentar pode levar a efeito (salvo autorização ao Governo, que não houve).
Se a asserção é correcta - a desgraduação só seria legítima mediante autorização legislativa - não é menos certo que a norma do artigo 35º do 'Regime Jurídico' aprovado pelo diploma de 1989 não teve por objectivo a alteração da competência dos tribunais, como fim directo e autónomo, antes se configurando essa alteração efectivamente ocorrida como meramente consequencial da nova postura do legislador.
Como, aliás, salienta judiciosamente o MºPº, nas suas alegações, 'também a transformação de contravenções em contra-ordenações reflexamente afecta a competência dos tribunais, que passam a intervir apenas em via de recurso e não como primeiros apreciadores e sancionadores das infracções, e ninguém duvida que cabe na competência própria do Governo, sem necessidade de solicitar autorização legislativa, proceder àquela transformação, desde que as contravenções não fossem puníveis com penas restritivas de liberdade'.
Resta, assim, a questão do hipotético desrespeito pela alínea c) do nº 1 da citada norma do artigo 168º da CR, incontroverso que
é abranger a 'definição de crimes' a criação de novos tipos de crime, a sua alteração ou a sua eliminação, seja pura e simples, seja por degradação em outro tipo de ilícito, designadamente contra-ordenacional, e não menos exacto que o Governo só poderia editar uma norma como a em apreço se para tanto estivesse munido validamente de autorização legislativa.
É ponto que nos propomos averiguar, tarefa de certo modo facilitada pelo facto de o Senhor Juiz ter logrado carrear para os autos documentação da Presidência do Conselho de Ministros apostilada de 'muito secreta'.
2.- A Lei nº 7/89, de 21 de Abril, concedeu, como se consignou já, autorização ao Governo para estabelecer o regime jurídico das infracções fiscais aduaneiras, caducando a autorização se não utilizada no prazo de 180 dias.
Por ela, o Governo podia, nomeadamente, definir tipos de ilícito de mera ordenação social de carácter aduaneiro e descriminalizar condutas previstas nas leis de contencioso aduaneiro.
A formação do processo legislativo correspondente e o seu desenvolvimento podem assim esquematizar-se:
a) em 7 de Agosto de 1989, deu entrada na Presidência do Conselho de Ministros o projecto de decreto-lei que aprova o regime jurídico das infracções fiscais aduaneiras, enviado pelo Ministério das Finanças (fls. 57 dos autos);
b) esse projecto foi incluído na agenda da reunião do Conselho de Ministros de 21 de Setembro de 1989 (ponto II-4 do documento de fls. 58 a 65, onde foi manuscrita a menção 'Aprovado'), e assinado, com menção dessa data, pelo Primeiro Ministro e pelos Ministros das Finanças e da Justiça (fls. 66 e 67), embora dele se não faça menção no comunicado difundido sobre essa reunião (fls. 68 a 70);
c) em 18 de Outubro de 1989 deu entrada na Presidência da República para promulgação (fls. 72);
d) em 23 de Outubro de 1989 foi enviado à Imprensa Nacional para composição (fls. 71);
e) em 24 de Outubro de 1989 foi promulgado pelo Presidente da República (fls. 73);
f) em 30 de Outubro de 1989, o Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros solicitou ao Chefe da Casa Civil do Presidente da República autorização para a introdução de diversas
'rectificações' no diploma em causa (ofício de fls. 74 a 76).
g) em 2 de Novembro de 1989, o Chefe da Casa Civil do Presidente da República devolveu ao Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros o diploma, já promulgado pelo Presidente da República, chamando a atenção para 'a necessidade de introduzir no diploma em questão as alterações acordadas em conversa telefónica havida com o Gabinete de V. Exa. e constantes do vosso ofício nº 1720, de 30 de Outubro de 1989, elaborado na sequência da mesma' (ofício de fls. 77);
h) em 3 de Novembro de 1989, o diploma foi presente para referenda (fls. 78);
i) a referenda foi aposta com a data de 24 de Outubro de 1989 (fls. 80), o que levou o Senhor Juiz a vislumbrar responsabilidade criminal, participando do facto ao Procurador da República do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (fls. 93, 94, 99, 100 e
104);
j) a publicação do diploma ocorreu em Suplemento ao Diário da República, posto à venda nas lojas da Imprensa Nacional em 9 de Novembro de 1989, e enviado pelo correio aos assinantes em 13 dos mesmos mês e ano (ofício de fls. 81).
Constata-se do descrito rosário de factos que a publicação do diploma ocorreu em momento posterior ao do prazo da autorização legislativa, siga-se a orientação do Senhor Juiz que entende não haver lugar a vacatio legis quando se trata de lei dessa natureza, siga-se o critério que não dispensa o decurso do prazo correspondente a esse período.
Assim, a questão nuclear a resolver centra-se na determinação do dies ad quem da autorização legislativa: aprovação em Conselho de Ministros, promulgação, referenda ou publicação (ou eventualmente outro) uma vez que a Constituição nada diz a este respeito.
3.- Na sua redacção originária, o artigo 122º da CR estabelecia, como consequência da falta de publicidade dos actos enunciados no seu nº 1 - como sejam os decretos-leis - a inexistência dos mesmos (cfr. o nº 4 do preceito). Hoje, ou seja, após a 1ª Revisão Constitucional, a falta de publicidade passou a implicar a ineficácia jurídica do acto (actual nº 2 do artigo 122º).
O silêncio do diploma fundamental sobre o momento de perfeição do acto legislativo originou multiplicidade de opiniões que a alteração introduzida pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, afectou profundamente.
Assim, o parecer da Comissão dos Assuntos Constitucionais - publicado no suplemento ao Diário da Assembleia da República nº 59, de 27 de Dezembro de 1976, págs. 1904(7) e segs. e nos Pareceres da Comissão dos Assuntos Constitucionais, 1º volume, 1ª Legislatura, págs. 163 e segs. - considerara a publicidade como 'o momento decisivo final para a existência de qualquer acto legislativo', convocando o nº 4 daquele artigo 122º para afirmar linearmente que 'o decreto-lei só existe quando é publicado'.
A Comissão Constitucional aderiu, numa primeira fase, a interpretação idêntica mas viria a afastar-se dela, ainda na vigência da primitiva redacção, por a considerar fruto de uma leitura em demasia apegada à letra, ao integrar a publicação no momento final e culminante do processo legislativo, como seu elemento constitutivo.
O voto de vencido lavrado no acórdão nº 165, de 8 de Abril de 1980 (publicado, rectificadamente, no Apêndice ao Diário da República de 16 de Abril de 1981, págs. 1 e segs.), viria a ditar alteração radical da Comissão a este respeito, plasmada numa linha de uniformidade constante a partir do acórdão nº 212, de 27 de Maio seguinte (publicado no mesmo Apêndice, págs. 21 e segs.).
Com a actual redacção do nº 2 do artigo 122º, segundo o qual a falta de publicidade implica ineficácia jurídica e não inexistência, o Tribunal Constitucional tem afirmado que a alteração levada a efeito teve, para além do mais, 'o mérito de significar que a publicação é mero elemento de integração de eficácia, e não elemento constitutivo de acto ou diploma legislativo final, que, como declaração de vontade fica completa ou perfeita no momento em que tal vontade é manifestada pelo órgão legislativo competente' - cfr. os Acórdãos nºs. 37/84, 59/84, 60/84 e 80/84, publicados no Diário da República, II Série, de 6 de Julho, 14 e 15 de Novembro de 1984 e 29 de Janeiro de 1985, respectivamente, numa orientação jurisprudencial ainda recentemente reafirmada como ilustram os Acórdãos nºs. 400/89 e 150/92, publicados naquele jornal oficial, II Série, de 14 de Setembro de 1989 e 28 de Julho de 1992, respectivamente, e nº 121/93, de 14 de Janeiro último, ainda inédito.
Mas, e como se observou no último dos arestos publicados, excluída, para o efeito tido em vista, a publicação do diploma, há a considerar, para além da aprovação em Conselho de Ministros, outros elementos tais como a referenda do Governo e a promulgação pelo Presidente da República, pois tanto a falta de uma como de outra implicam a inexistência jurídica do diploma enquanto tal [CR, artigos 140º e 143º, com referência à alínea b) do artigo 137º].
Na verdade, a promulgação declara que o diploma foi elaborado por um determinado órgão legislativo para formalmente valer como tal pelo que encerrará sempre o valor de um atestado de autenticidade do acto, como se exprimiu Marcello Caetano (Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, II, 6ª ed., Coimbra, 1972, pág. 563).
Do mesmo passo, se bem que se reconheça a dificuldade em definir a natureza jurídica da promulgação - poderá ver-se nela uma manifestação típica de controlo pelo Presidente da República sobre a regularidade de acto normativo e a legitimidade constitucional deste - crê-se que nem a função declarativa do acto de promulgar nem a eventual implicação de controlo constitucional desse mesmo acto permitem concluir inserir-se este na fase constitutiva da afirmação da vontade do órgão que legisla, permitindo, sim, que o diploma legal possa ser executado, mediante a publicação que se seguirá (A promulgação 'fait passer la loi dans sa phase d'exécution', observa Edouard Sauvignon in - 'La promulgation des lois: réflexions sur la jurisprudence Desreumeaux', na Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à l'Étranger', nº 4 de 1981, págs. 1001).
Por seu turno, a referenda, mais do que corresponsabilizar o Governo em relação a actos presidenciais que, directa ou indirectamente, impliquem colaboração política - enquanto expressão de poderes partilhados - exerce, igualmente, um controlo certificatório semelhante ao da promulgação e, por reflexo, de harmonização e colaboração entre os órgãos de Estado intervenientes.
Por via da referenda (do acto do Presidente da República que é a promulgação), o Governo apenas se responsabiliza nos precisos termos em que o pode ser o Chefe do Estado por haver promulgado, como, aliás, a Comissão Constitucional teve oportunidade de sublinhar no seu parecer nº 5/80
(in - Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 11, págs. 140 e segs.).
Assim, não merece a referenda, face ao processo de formação legislativa, entendimento diverso do adoptado para a promulgação, quanto ao problema subjacente.
4.- De acordo com as considerações desenvolvidas e a orientação da jurisprudência deste Tribunal, aponta-se para a não exigência de publicação dentro dos limites temporais fixados na lei de autorização, e, designadamente, para a irrelevância da promulgação ou da referenda neste específico domínio, não se vislumbrando outro qualquer momento - ou elemento do processo de formação legislativa - com virtualidade para um diferente entendimento.
Consignar-se-á, não obstante, uma certa hesitação doutrinal.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao tempo da redacção originária do artigo 122º, defenderam que 'os decretos-leis autorizados devem ser publicados durante o período de autorização, pois só a publicação lhes dá existência e não é possível controlar o momento da aprovação', se bem que reconhecessem poder a solução dar lugar a 'consequências pouco razoáveis, uma vez que a data da publicação não depende do Governo', dado ser ao Presidente da República que compete promulgar e mandar publicar esses diplomas (cfr. Constituição da República Anotada, Coimbra, 1978, pág. 336).
Já na 2ª edição desta obra, face à citada alteração do preceito constitucional, se bem que mantenham a problematicidade da questão, cuja solução não têm por evidente, afirmam estes autores ser verdade que, por um lado, a aprovação pelo Governo não basta para que se dê por existente juridicamente um diploma legislativo e não é publicamente controlável, mas, por outro lado, a publicação deixou de ser condição de existência e, além disso, não depende do Governo (ob. cit., 2ª ed., 2º vol., Coimbra, 1985, pág. 205).
Nas diversas edições do seu Direito Constitucional, Gomes Canotilho denuncia a similitude na evolução do seu entendimento face às diferentes redacções do artigo 122º.
Assim, nas 1ª e 2ª edições da obra (respectivamente a págs. 305 e 356) começa por considerar prevalecente a tese da não exigência da publicação dentro dos limites temporais fixados pela lei de delegação, argumentando-se nesse sentido com o facto da publicação ser um acto sucessivo estranho ao exercício da autorização legislativa. Contrapõe, no entanto, que, a favor da exigência da publicação dentro dos limites temporais fixados na lei de autorização pode dizer-se que a falta de publicidade dos actos implica a sua inexistência jurídica, e, por isso, uma lei não publicada é uma lei inexistente.
Porém, não deixa de reconhecer, a favor da suficiência da simples aprovação dos decretos-leis pelo Governo, o facto de, tal como a lei se considera aprovada depois da sua aprovação pelo órgão parlamentar, também o decreto-lei do Governo, no exercício de autorizações legislativas, se consideraria perfeito com a simples aprovação pelo Governo.
Na 3ª edição da citada obra, Gomes Canotilho já chama a atenção para o nº 2 do artigo 122º da Constituição revista, que determina como sanção da falta de publicidade a ineficácia e não a inexistência, como acontecia na redacção inicial deste artigo (pág. 636). Este aspecto é igualmente salientado na 4ª edição, de 1989 (pág. 635), mas aí também se insiste em que a simples aprovação não é condição suficiente de existência de um acto legislativo e que a favor da exigência da publicação no Diário da República se pode invocar que sem ela não é susceptível de controlo público a data do diploma (pág. 636), tese que mantém na 5ª edição, de 1991 (pág. 865).
Jorge Miranda mostra preferência pelo momento da aprovação: 'olhando à ratio da regra constitucional e tendo em conta a interferência de outros órgãos no processo dos decretos-leis (o Presidente da República e, sendo caso disso, o Tribunal Constitucional)', entende que 'a subsistência da competência do Governo apura-se no momento da aprovação (ou da
2ª aprovação) em Conselho de Ministros ou, porventura, para maior objectividade, no momento da recepção pelo Presidente da República para efeito de promulgação' (Funções, Órgãos e Actos do Estado, Apontamentos de Lições, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, policopiado, 1986, pág. 281, nota 1; 1990, págs. 476/477, nota 4; e 'Autorizações Legislativas', na Revista de Direito Público, ano I, nº 2, Maio de 1986, pág. 18, nota 46).
Também Isaltino Morais, José Mário Ferreira de Almeida e Ricardo L. Leite Pinto (Constituição da República Portuguesa Anotada e Comentada, 1983, pág. 331) sustentam que a solução mais curial é a de se contar o prazo pela aprovação em Conselho de Ministros, embora reconheçam que assim se suscitam algumas dificuldades, como a de se conhecer a data da aprovação.
Noutra obra - Constituição da República Portuguesa (texto e comentários à Lei nº 1/82), Lisboa, 1982, António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas ponderam que a favor da tese do momento da promulgação ou da referenda se pode dizer que sem esses actos não há decreto-lei
(artigos 140º e 143º, nº 2), e, portanto, não há utilização de autorização, o mesmo não se podendo dizer do momento da publicação, uma vez que, após a revisão de 1982, a falta desta implica apenas a ineficácia jurídica do decreto-lei e não a sua inexistência jurídica, como acontecia anteriormente; e que a favor da tese do momento da aprovação se pode dizer que o exercício da competência legislativa do Governo consiste na aprovação, por este, de decretos-leis, e não na sua promulgação ou referenda, além de que, a não ser adoptada esta tese, o Presidente da República, como órgão de promulgação, poderia obstar ao cumprimento do prazo estabelecido na lei da autorização, o que não parece correcto.
Refira-se, por fim, António Vitorino na sua tese As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, Lisboa, edição policopiada, que perfilha a opinião que se contenta com a aprovação em Conselho de Ministros (págs. 257 a 259).
O autor argumenta contra a tese da publicação por ver nesta mero requisito de eficácia e não condição de existência do acto normativo e também não aceita a da promulgação, uma vez que a adopção do acto delegado teria de ocorrer com grande antecedência de modo a permitir a tramitação habitual prévia à promulgação.
Opta pela tese de aprovação pelo Governo, quer pelo paralelo que se pode estabelecer com a aprovação parlamentar (a lei considera-se definitivamente aprovada quando o Parlamento vota o seu texto final em termos globais), quer porque, sendo a autorização legislativa um instituto que assenta no relacionamento directo e especialmente vinculante entre o Parlamento e o Governo, um dado e concreto Governo, este cumpre o ónus que para ele decorre da lei da autorização com a aprovação do acto delegado, desonerando-se assim da incumbência que se lhe encontra cometida pela lei de delegação, cessando aí, nessa aprovação, a sua responsabilidade quanto à efectiva utilização da autorização conferida.
Estes argumentos a favor da tese da aprovação sobrelevam, na perspectiva de António Vitorino, o reconhecido inconveniente de não existir efectivo controlo da data de aprovação em Conselho de Ministros, pois este óbice é 'ultrapassável através da compulsão dos comunicados do Governo tanto mais eficazmente quanto eles relatarem de facto os actos objecto de aprovação para informação dos cidadãos em geral'.
Este posicionamento insere-se numa linha que se harmoniza com a jurisprudência deste Tribunal - como houve oportunidade de se verificar - e ora se reitera.
Por um lado - e seguindo de perto o Acórdão nº
150//92 - não constituindo a promulgação um acto de competência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria.
Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os diplomas - problema equacionado por Gomes Canotilho na
5ª edição do Direito Constitucional, tendo presente o já citado Acórdão nº
400/89 - sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta, com admissão de prova em contrário (observe-se que as actas do Conselho de Ministros, documentos oficiais, deverão gozar de presunção de fidedignidade).
Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo de autorização legislativa 'existe' para o efeito se considerar respeitado este prazo, como 'existe' qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolva enviar ao Tribunal Constitucional para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas.
5.- No caso concreto não foi apenas a publicação do diploma que ocorreu para além do termo do prazo de autorização legislativa, mas ainda as suas promulgação e referenda: só a aprovação em Conselho de Ministros ocorreu antes do termo do prazo de autorização legislativa.
Como se viu, no entanto, o facto de os momentos de promulgação e da referenda terem, de igual modo, transposto aquele prazo mostra-se irrelevante, pois entende-se que o diploma se torna perfeito no momento da sua aprovação pelo Governo, em Conselho de Ministros. IV
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, e consequentemente, determina-se a revogação da decisão recorrida, que deverá ser reformada em consonância com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 30 de Março de 1993
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa