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Proc. nº 160/92
1ª Secção Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Nos autos emergentes de acidente de trabalho nº 88/1989 da 2ª Secção do 7º Juízo do Tribunal do Trabalho do Porto, foi, por sentença de 31 de Outubro de 1989, homologado o acordo celebrado na mesma data, entre o sinistrado A. e a seguradora B., pelo qual esta se comprometeu a pagar àquele a pensão anual de
5330$00, a partir de 1 de Agosto de 1989, dia seguinte ao da alta.
Sendo a pensão obrigatoriamente remível, a secretaria efectuou, de acordo com as tabelas constantes da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, o cálculo do capital de remição, que foi visto pelo Ministério Público, tendo-se procedido, por termo, à sua entrega pelo representante da seguradora ao sinistrado, em 18 de Dezembro de 1989.
Em 21 de Dezembro de 1989, o respectivo juiz proferiu o seguinte despacho:
' 1. À conta. Fixo o valor da causa e do auto de fls. 13 em 49.391$00 e o valor da remição em 46.732$00.
2. Anota-se o facto de no cálculo do capital de remição não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 57º, nº 1, do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto; porém, dado que o capital já foi entregue e a diferença de 1$00 não justifica as diligências necessárias para o entregar ao sinistrado, fica apenas, aqui anotado o facto e a chamada de atenção aos senhores funcionários.'
2. Posteriormente, pela ordem de serviço nº 1/90, de 30 de Outubro, o juiz daquele 7º Juízo veio a aderir ao juízo de inconstitucionalidade da norma da alínea b) do nº 3 da aludida Portaria nº 760/85, constante dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 232/90, 233/90 e 234/90, a qual determinava que:
'a) O cálculo do capital de remição decretado após esta data será sempre efectuado de acordo com o disposto na Portaria nº 632/71, de 19 de Novembro, nomeadamente, na sua tabela anexa I, desde que o acidente tenha ocorrido após 19 de Novembro de 1971;
b) O cálculo do valor das acções incidentes em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais será efectuado de acordo com a alínea precedente;
c) Nos processos cujo capital de remição tenha sido calculado com base na Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, proceder-se-á à sua reabertura com o cálculo a que alude o artigo 151º, nº 4, do Código de Processo do Trabalho efectuado nos termos da alínea a) precedente e proceder-se-á, em seguida, nos termos do nº 5 do artigo 151º e do artigo 152º do Código de Processo do Trabalho quanto ao remanescente que seja encontrado a favor dos pensionistas com o capital remido.'
Em face do que a secretaria procedeu à rectificação do cálculo do capital de remição (que passou, no caso, de 46.731$00 para 50.853$00, registando assim uma diferença de 4122$00).
Desta decisão a seguradora B. interpôs recurso para a Relação do Porto, com fundamento na não inconstitucionalidade da Portaria nº 760/85 e na violação de caso julgado.
3. A Relação do Porto, por acórdão de 1 de Julho de 1991, negou provimento ao recurso, invocando, quanto à questão de constitucionalidade da aludida Portaria, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91 que havia declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma impugnada. Quanto à invocada violação de caso julgado, o mesmo Tribunal da Relação entendeu não se verificar tal violação, socorrendo-se para tanto do disposto no artigo 151º do Código de Processo do Trabalho, do qual resulta 'que o juiz se limita a ordenar (...) se proceda ao cálculo do capital', logo 'o juiz não se pronuncia sobre o montante deste, nem interfere no seu cálculo, nem na entrega do mesmo, pois é a secretaria que procede ao cálculo e o Ministério Público que superintende sobre a sua (...) correcção e entrega ao sinistrado. Já assim não sucederia se o juiz declarasse o montante do capital, pois que se formaria caso julgado'.
4. Inconformada com tal decisão, a seguradora recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, onde, a dado passo das suas alegações veio afirmar que 'não se coloca no presente recurso a questão da apreciação da inconstitucionalidade da Portaria nº 760/85, nº 3, alínea b), atenta a decisão consubstanciada no Acórdão nº 61/91 que conheceu daquela inconstitucionalidade com força obrigatória geral'. Mas já quanto à questão da violação de caso julgado, a seguradora foi do entendimento, na mesma peça processual, que 'jamais se poderia entender que o legislador queira subtrair um acto de decisão à competência do Tribunal, apenas para obviar à formação de caso julgado, o que viola os princípios elementares de direito de processo civil e de trabalho'.
E depois de referir que 'no que respeita às pensões obrigatoriamente remíveis (...) o Tribunal decide quanto à obrigação do devedor de pagar o respectivo montante, correspondente ao capital de remição', tendo a secretaria apenas 'por função efectuar o simples cálculo matemático, para liquidar o valor da prestação nos termos ordenados pelo Tribunal', sublinha, a título de conclusão, que, por um lado, 'a remição efectuada não é colocada em crise nem susceptível de ser alterada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91, uma vez que este expressamente estatui que a ' presente declaração de inconstitucionalidade não pode influir sobre as remições já efectuadas' e, por outro, que a Relação, 'ao julgar como o fez, violou entre outros (...) os artigos 151º e seguintes do Código de Processo do Trabalho, artigos 671º e seguintes do Código de Processo Civil, e Acórdão nº 61/91 do Tribunal Constitucional'.
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 26 de Fevereiro de 1992, negou provimento ao agravo, entendendo que não houve ofensa de caso julgado, para o que, depois de restringir a esta questão o objecto do recurso, invocou a seguinte fundamentação:
' No incidente da remição o juiz intervém para decidir por despacho fundamentado se a remição é admissível - 'admitindo ou recusando a remição'.
Seguem-se duas acções que se apresentam com natureza de mera execução administrativa: o cálculo do capital a realizar pela Secretaria e a entrega do capital que se efectuará sob a égide do Ministério Público.
Pela sua natureza, pela qualidade das entidades executantes, tais actos não se apresentam como decisões judiciais, que possam adquirir força de caso julgado.
Só havendo divergência e tendo-se cumprido o princípio do contraditório, que deve anteceder toda a decisão judicial, cabe então esta ser proferida. Portanto integrando-se e pondo termo a um litígio aberto anteriormente.
(...) No incidente de remição também é o Ministério Público o responsável pelo desenvolvimento do processo, que vai ao juiz para verificar a legalidade da remição, seja esta obrigatória, seja facultativa. O desenvolvimento processual subsequente é-lhe estranho, salvo quando se levante divergência que exija decisão judicial. Quando tal aconteça, deve satisfazer-se o princípio do contraditório.
Ora, considerando-se o caso sub judice, na primeira fase não houve dictum judicial a determinar o processo de cálculo do capital.
(...) Neste restrito âmbito, por não haver uma anterior decisão judicial sobre o processo de cálculo do capital a que o pensionista tinha direito, por não haver caso julgado, não pode haver ofensa. Não existe o que se diz ter sido ofendido!'
6. Contra esta decisão veio a seguradora recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, porquanto aquela decisão teria recusado 'a aplicação aos autos da Portaria nº 760/85, com fundamento na sua inconstitucionalidade, violando o disposto no acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91 e no artigo
282º, nº 3, da Constituição'.
Este recurso não foi admitido por despacho do Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Abril de 1992, porquanto 'por imperativo legal, como se explicitou no despacho liminar do relator e no acórdão ora recorrido, o agravo foi admitido, mas confinado à questão de ofensa de caso julgado, o que não implicava a recusa da aplicação aos autos da Portaria nº 760/85, com fundamento na sua inconstitucionalidade', pelo que 'não é verdade que neste recurso tenha sido apreciada a matéria que se invoca para justificar a interposição do recurso para o Tribunal Constitucional'.
Contra este despacho a seguradora deduziu a presente reclamação, sustentando que 'entre outra questão, foi suscitada, no recurso, a violação de caso julgado (...), mas foi também suscitada a violação, pela decisão recorrida, do Acórdão nº 61/91 do Tribunal Constitucional', pelo que 'estando em causa a apreciação da decisão que violou aquele acórdão do Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, deve o presente recurso ser admitido'.
O Relator do Supremo Tribunal de Justiça, aduzindo não ter havido reclamação para a conferência, ordenou, por despacho de 8 de Abril de 1992, a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional.
7. Neste Tribunal, o Relator, por despacho de 18 de Maio de 1992, enviou o processo a visto do Ministério Público, o qual, em 25 de Maio, veio promover que 'os presentes autos sejam remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça a fim de a reclamação ser autuada por apenso e submetida à conferência, seguindo-se os ulteriores termos consoante esta mantenha ou revogue o despacho reclamado'.
Em 1 de Junho de 1992, o Relator neste Tribunal proferiu o seguinte despacho: 'Conforme promoção do Ministério Público a fls 106 e 107, remetam-se os presentes autos ao Supremo Tribunal de Justiça para que a reclamação seja autuada por apenso e submetida à conferência'.
8. O Relator do Supremo, por despacho de 22 de Junho de 1992, considerando 'ilegal e ilegítima a determinação de fls. 108, no sentido de se autuar por apenso a reclamação e ser submetida à conferência', determinou a devolução dos autos.
Deste despacho reclamou o Ministério Público junto do S.T.J. para a conferência, a qual, por acórdão de 11 de Novembro de 1992 decidiu:
- confirmar o despacho do Relator que havia rejeitado o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, assim dando, nessa parte, razão à reclamação do Ministério Público;
- não reconhecer legitimidade ao Ministério Público para reclamar para a conferência do despacho do Relator na parte em que não determinou o processamento da reclamação para o Tribunal Constitucional em apenso próprio, por se tratar 'de simples formalismo processual, sem incidência na decisão material do feito'.
9. Reenviados os autos ao Tribunal Constitucional, o Relator, por despacho de 4 de Janeiro de 1993 enviou o processo ao Ministério Público. Este, na peça processual produzida, depois de referir que, sobre o processamento da reclamação, lhe merece discordância a decisão do S.T.J. , 'absolutamente carecida de base legal', de não determinar a autuação da reclamação em apenso, mas, invocando 'razões de economia e celeridade processuais', acaba por preconizar que 'se dispense, no caso, excepcionalmente, o rigoroso acatamento das regras processuais aplicáveis, e que, por isso, apesar de a presente reclamação vir indevidamente incorporada no processo principal, se aprecie, desde já, o seu mérito'.
Pronunciando-se sobre a questão de fundo, o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, depois de detalhadamente analisar as implicações dela decorrentes e de invocar lugares paralelos da jurisprudência constitucional antecedente (quer da Comissão Constitucional - Acórdão nº 415, in Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983, pág. 59, e Boletim do Ministério da Justiça, nº 310, pág. 173 - quer do Tribunal Constitucional - Acórdãos nºs
94/90, 214/90, 251/90, 253/90, 186/91 e 330/92, o primeiro, o segundo e o quinto publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1990, de 17 de Setembro de 1990 e de 10 de Setembro de 1991, respectivamente, e os restantes inéditos), e na sequência de uma exaustiva análise da argumentação susceptível de ser produzida em prol de qualquer das suas soluções possíveis, acaba por,
'não sem dúvidas', emitir parecer no sentido de ser deferida a presente reclamação.
10. Corridos que foram os vistos legais, passa-se a decidir.
II
1. Conforme resulta do atrás exposto, a tramitação processual da presente reclamação registou alguns incidentes interpretativos que só parcialmente se podem ter por resolvidos.
Na realidade, a pretensão deduzida pelo Ministério Público neste Tribunal foi, na parte em que visava provocar uma decisão da conferência do S.T.J. sobre o despacho do Relator de não admissão do recurso de constitucionalidade, cabalmente consumida pelo acórdão da conferência do S.T.J. de 11 de Novembro de
1992. Com efeito, neste aresto, e na sequência de reclamação deduzida pelo representante do Ministério Público junto do S.T.J. de despacho do Relator naquele Supremo Tribunal no sentido de não ser submetido à conferência o despacho de rejeição do recurso de constitucionalidade, o S.T.J., em conferência, decidiu confirmar o primitivo despacho do Relator que havia rejeitado o aludido recurso de constitucionalidade, desta forma recaindo sobre a admissibilidade deste recurso a decisão da conferência postulada pelas disposições conjugadas dos artigos 76º, nº 4, 77º e 69º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e dos artigos 688º e 689º do Código de Processo Civil (cfr., para um desenvolvimento mais detalhado da aplicação destes normativos ao processamento das reclamações no Tribunal Constitucional, o Acórdão nº 318/93, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993, que incidiu sobre um recurso cuja tramitação apresenta algumas similitudes com o presente caso).
Decidiu a conferência do S.T.J. não processar a reclamação por apenso, como pretendia o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal e tem sido, aliás, prática comummente seguida nas reclamações para o Tribunal Constitucional das decisões dos outros tribunais que rejeitam a admissão de recursos de constitucionalidade. Sem embargo, e porque se trata manifestamente de uma formalidade menor, daí não resulta, conforme reconhece o Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, qualquer impedimento para que o Tribunal Constitucional possa imediatamente pronunciar-se sobre o fundo da presente reclamação.
2. A reclamante pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea a), do nº 1, do artigo 70º da Lei nº 28/82, ou seja, ao abrigo de uma disposição que prevê que cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
A reclamante, convém recordá-lo, nas suas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, afirmou expressamente que não se colocava nesse recurso a questão da apreciação da inconstitucionalidade da alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85, mas, ao centrar a sua argumentação nas condições que haviam levado, ou não, à formação de caso julgado, acabou por equacionar uma temática que se prende, no fundo, com a interpretação e delimitação da restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade levada a cabo pelo Acórdão deste Tribunal Constitucional nº 61/91. Daí que a reclamante tenha acabado por afirmar que o acórdão da Relação violou, além do mais, 'o acórdão nº 61/91 do Tribunal Constitucional' (conclusão 5.16).
Ou seja, ao submeter à apreciação do S.T.J. a questão da formação, ou não, de caso julgado, a reclamante entendia que a resolução de tal questão passava pela determinação do sentido, extensão e alcance da declaração de inconstitucionalidade contida no Acórdão nº 61/91.
A este propósito escreve o Procurador-Geral Adjunto no seu parecer:
'Estavam, assim, em confronto duas teses: a da recorrente, ora reclamante, no sentido de que, tendo-se formado no presente processo caso julgado, operava a restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, e, por isso, devia aplicar-se, ao caso, a tabela da Portaria nº 760/85; e a da Relação do Porto, no sentido de que, não se tendo formado ainda caso julgado, não operava a restrição de efeitos, havendo que aplicar, de pleno, a declaração de inconstitucionalidade e, com esse fundamento, recusar a aplicação de tal tabela.
Foi esta última a tese acolhida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que, assim, na perspectiva da ora reclamante, ao não incluir no âmbito da restrição de efeitos uma situação que nela cabia, operou, na prática, implicitamente, uma recusa de aplicação da norma em causa, com fundamento em inconstitucionalidade, para além do que fora declarado, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional. Nesta perspectiva, tal decisão cabe autonomamente na previsão da alínea a) do nº 1 do artigo 70º, da Lei nº 28/82, e, por isso, o recurso para o Tribunal Constitucional, assim fundamentado, é admissível.
Não interessa saber agora, se, no caso, houve, ou não, caso julgado: disso dependerá a procedência, ou não, do recurso, mas não a sua admissibilidade
(cfr. acórdão nº 415 da Comissão Constitucional).
Contra-argumentar-se-à que, nesse recurso, o Tribunal Constitucional vai ter de imiscuir-se na definição da formação do caso julgado quanto ao montante do capital da remição de pensões por acidente de trabalho, matéria que, dependendo exclusivamente da interpretação de normas de direito ordinário, sem que esteja em causa qualquer relação de hipotético conflito entre essas normas e qualquer norma ou princípios constitucionais, extravasaria da sua específica competência.
Mas - responder-se-á -, também nos Acórdãos nºs 214/90, 251/90 e
253/90 o Tribunal Constitucional teve de interpretar normas de direito ordinário para determinar quando se devia considerar praticado um acto de natureza financeira ou orçamental, e, em direitas contas, do que se tratará é de obter uma interpretação autêntica, não já do sentido e alcance de uma declaração de inconstitucionalidade (como ocorreu com o Acórdão nº 186/91), mas do sentido e alcance de uma restrição de efeitos de declaração de inconstitucionalidade (que
é, bem vistas as coisas, o mero recorte negativo dessa declaração), feita perante uma decisão que, na perspectiva da recorrente, encerra uma autónoma recusa de aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade, isto é, que preenche autonomamente uma das situações de admissibilidade de recurso elencadas no nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, no caso, a da alínea a) desse preceito'.
3. As questões assim colocadas não se apresentam isentas de dificuldades, quer na parte em que se reportam ao âmbito dos poderes cogniscitivos do Tribunal Constitucional, quer na parte em que contendem com as condições de formação de caso julgado e sua articulação com o sentido, extensão e alcance da declaração de inconstitucionalidade contida no Acórdão nº 61/91.
Recorde-se, desde já, que este aresto do Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma da alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, e, bem assim, da norma constante do artigo 65º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei nº 466/85, de 5 de Novembro, enquanto conjugado com o nº 1 da referida portaria, mas sem proceder a qualquer limitação de efeitos, nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição. Deste facto decorre que tal declaração não afectou os 'casos julgados', de acordo com a regra geral constante do nº 3 do artigo 282º da Constituição, pelo que ela não teve qualquer influência sobre as remições de pensões já efectuadas, ou seja, as remições que tivessem sentença de homologação já transitada em julgado, aplicando-se, por isso, e apenas,
àquelas remições que ainda se encontrassem pendentes, fosse nos tribunais de trabalho fosse nos tribunais de recurso.
Neste contexto, o acórdão da Relação do Porto (e, embora de forma apenas implícita, o do próprio Supremo Tribunal de Justiça) foi do entendimento de que no caso não relevava a proibição de repristinação da norma anteriormente aplicável, como decorrência da imposição constitucional da ressalva dos casos julgados (artigo 282º, nºs 1 e 3 da Constituição) porquanto entendeu que a decisão que transitara em julgado se havia confinado a autorizar a remição da pensão e a ordenar à secretaria do tribunal o cálculo do respectivo capital, sem que dessa decisão resultasse uma tomada de posição nem quanto à tabela aplicável, nem quanto ao correspondente montante. De igual forma, como resulta do acórdão do S.T.J., não poderia ser entendido como revestindo tal alcance o segundo despacho do juiz, que se limitou a representar uma chamada de atenção ao secretário judicial por incumprimento de um preceito legal ao proceder ao cálculo do capital, mas sem que daí tenham advindo quaisquer consequências de alteração do respectivo cálculo.
Do exposto resulta que o acórdão do S.T.J. ora recorrido não pode ser tido como tendo alargado o âmbito da declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão nº 61/91, pois que, verdadeiramente, partindo daquela declaração se limitou a interpretar o preceito do artigo 151º do Código de Processo de Trabalho, do qual extraiu a conclusão de que se não poderia ter como compreendido no caso julgado o concreto cálculo do montante do capital de remição e, consequentemente, entendeu que o mesmo era susceptível de rectificação, por efeito da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85.
Ora, o julgamento levado a cabo pelo S.T.J. quanto à não inclusão, no
âmbito do caso julgado, da determinação do montante do capital de remição de pensões por acidente de trabalho reporta-se a um domínio de matérias que assenta essencialmente na interpretação de normas de direito ordinário, especificamente da norma do nº 1 do artigo 151º do Código de Processo de Trabalho, interpretação essa que, por controversa que possa ser, não pode ter-se por abrangida no âmbito das competências específicas de controlo da constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional, pois que a função deste tipo de controlo não consiste na resolução de divergências jurídicas ou jurisprudenciais que não tenham a ver, em si mesmas, com o confronto de normas de direito ordinário com regras ou princípios constitucionais (cfr, neste sentido, Acórdãos nº 21/87, 339/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31 de Março de
1987 e de 19 de Setembro de 1987 e nº 318/93 já citado).
E se é verdade que em tal controlo de constitucionalidade a específica intervenção do Tribunal Constitucional compreende naturalmente a formulação de interpretações de normas de direito ordinário com o fim de as cotejar com os pertinentes parâmetros constitucionais, no caso vertente, contudo, e no que respeita à norma em causa da Portaria nº 760/85, não parece que se possa imputar ao acórdão recorrido o sentido de nele se conter a formulação de um novo e autónomo juízo de inconstitucionalidade àcerca da referida norma, pelo que padece de fundamento a pretensão da reclamante de dele poder recorrer para o Tribunal Constitucional.
4. A reclamante invoca ainda que a decisão recorrida viola o disposto no nº 3, do artigo 282º, da Constituição, que, como já atrás se deixou dito, se reporta directamente à temática do âmbito material do caso julgado, mas também nesta vertente o recurso não será de admitir porquanto o controlo de constitucionalidade previsto no artigo 70º da Lei nº 28/82 se refere exclusivamente à apreciação da conformidade à Lei Fundamental de normas jurídicas e já não de decisões judiciais enquanto tais, pelo que improcede também a alegada violação como fundamento de admissão do pretendido recurso
(cfr., no mesmo sentido, Acórdãos nº 359/92, ainda inédito, e nº 318/93 já citado).
Com efeito, a reclamante não imputa a violação do nº 3, do artigo 282º, da Constituição, a um específico normativo que tivesse sido aplicado pelo S.T.J., e cuja inconstitucionalidade, por isso, tivesse suscitado durante o processo, mas antes à decisão em si mesma considerada. Ora, embora possa haver quem entenda que esta situação se poderia reconduzir àquelas onde por vezes se tem apontado existir uma lacuna do nosso sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade (assente na ausência de mecanismos específicos destinados a viabilizar a sindicabilidade da conformidade constitucional de decisões judiciais que de forma autónoma atentassem contra direitos fundamentais dos cidadãos constitucionalmente consagrados), o que é verdade é que, tal como dispõe a Constituição da República e a Lei nº 28/82, e constitui também jurisprudência assente do Tribunal Constitucional, objecto do controlo de constitucionalidade são as normas jurídicas, na interpretação delas acolhida nas decisões judiciais impugnadas, e já não as decisões dos tribunais a se.
Razão pela qual também nesta vertente a reclamação em apreço não poderá ser deferida.
III
Nestes termos e pelas razões expostas, o Tribunal decide indeferir a presente reclamação, condenando a reclamante em custas, para o que se fixa a taxa de justiça em 5 unidades de conta.
Lisboa, 3 de Novembro de 1993
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa