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Proc. nº 434/91
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Na acção executiva movida por A. contra B., o 11º Juízo Cível de Lisboa determinou a penhora de 1/3 da pensão de reforma atribuída pela Caixa Nacional de Pensões ao executado. E como a Caixa, notificada para proceder aos descontos, tivesse invocado a impenhorabilidade da pensão, de acordo com o disposto no artigo 45º, nº 2, da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, o tribunal esclareceu que, do despacho que havia ordenado a penhora, decorria o entendimento de que tal preceito é inconstitucional, por violação do artigo 13º da Constituição, na parte em que estabelece a impenhorabilidade das pensões pagas pelas instituições de segurança social.
De tal decisão, assim esclarecida, recorreu então o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, conforme o disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), e nº 2, e no artigo 72º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. O recurso foi admitido, tendo subido após a penhora, nos termos do estabelecido no artigo 923º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou alegações referindo que a norma a apreciar é a do artigo 45º, nº 1, da Lei nº
28/84, na parte em que dispõe que as prestações devidas pelas instituições da segurança social são impenhoráveis. Considera não ser inconstitucional aquela norma quando as prestações, pelo seu montante, devam ser consideradas instrumento de garantia de uma sobrevivência minimamente digna do pensionista, e que, assim, a decisão de primeira instância deve ser eventualmente reformulada em conformidade com tal entendimento (já que ela não explicita o fundamento em que se baseou o juízo de inconstitucionalidade emitido).
O recorrido também produziu alegações, pedindo a manutenção do despacho em causa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
2. É objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, Lei da Segurança Social, na parte em que estabelece a impenhorabilidade das prestações devidas pelas instituições de segurança social.
A lei em questão define as bases em que assentam o sistema de segurança social previsto na Constituição e a acção social prosseguida pelas instituições de segurança social, bem como as iniciativas particulares não lucrativas de fins análogos aos daquelas instituições (artigo 1º). E o texto completo daquele artigo 45º é o seguinte:
Artigo 45º
(Impenhorabilidade e intransmissibilidade das prestações)
1 - As prestações devidas pelas instituições de segurança social são impenhoráveis e intransmissíveis.
2 - A impenhorabilidade das prestações não se aplica em processo de execução especial por alimentos, relativamente a prestações substitutivas de rendimento e até um terço do seu montante.
O artigo 823º do Código de Processo Civil enumera bens e direitos que estão isentos de penhora. Dispõe, designadamente, o seguinte:
Artigo 823º
(Bens relativa ou parcialmente impenhoráveis)
1 - Estão também isentos de penhora:
...
f) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação, reforma, auxílio, doença, invalidez, montepio, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, e de outras pensões de natureza semelhante.
...
4 - As quantias e pensões a que se referem as alíneas e) e f) do nº 1 podem ser apreendidas até metade, quando a execução provenha de comedorias ou géneros fornecidos para alimentação do executado, do seu cônjuge ou de seus ascendentes ou descendentes. Nos casos restantes, a parte penhorável das quantias e pensões é fixada pelo juiz, segundo o seu prudente arbítrio e tendo em atenção as condições económicas do executado, entre um terço e um sexto.
3. Vê-se, pois, que as prestações devidas pelas instituições de segurança social têm um regime mais favorável para os respectivos titulares do que as prestações correspondentes pagas por outras entidades, públicas ou privadas: enquanto as primeiras são totalmente impenhoráveis, as segundas são penhoráveis até um terço, e, no caso de dívidas referentes a alimentação, até metade.
A questão está, assim, em saber, se da diferença de regimes entre aquelas e estas pensões, resulta para os beneficiários das prestações da segurança social uma situação de favor ou privilégio injustificado, de tal modo que se deva concluir ter sido criada pela lei uma diferenciação arbitrária ou discriminatória entre uns e outros, com ofensa do disposto no artigo 13º da Constituição.
4. Sobre uma situação semelhante, já a Comissão Constitucional se pronunciou, no Acórdão nº 479, de 25 de Março de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983. A norma aí em exame era a da base XXVI da Lei nº 2115, de 18 de Junho de 1962 - diploma revogado justamente pela actual Lei nº 28/84, artigo 83º, nº 1 - segundo a qual 'As prestações devidas aos beneficiários ou sócios das instituições de previdência social e seus familiares não podem ser cedidas a terceiros nem penhoradas, [...]'.
Segundo a Comissão Constitucional, esta norma (bem como a norma idêntica do artigo 30º do Decreto nº 45.266, de 23 de Setembro de 1963), não violava o princípio da igualdade. Eis a argumentação que a este respeito era desenvolvida:
«É que a exclusão da penhorabilidade das pensões pagas aos beneficiários do regime geral de previdência (regime que abrange, do ponto de vista numérico, a maior parte dos Portugueses) não decorre de um puro _capricho ou do arbítrio_ do legislador, reflectindo antes a preocupação de conferir uma garantia absoluta à percepção de um rendimento mínimo de subsistência. Tal solução é perfeitamente compatível [...] com a nossa Constituição e o quadro de valores nela acolhidos, nomeadamente a defesa do bem-estar e a qualidade de vida das classes sociais mais desfavorecidas, a protecção decorrente do estabelecimento de um mínimo de subsistência (salário mínimo ou pensão previdencial sucedânea), a protecção nas situações de infortúnio ou de menor aptidão para conseguir os meios de subsistência a que todos têm direito.
O facto de tal norma não ter sido ainda consagrada no regime previdencial de outros cidadãos não a torna obviamente arbitrária ou irrazoável. Como se disse no citado Acórdão nº 458, a 'esta Comissão não cabe propriamente formular um juízo - positivo - a respeito da questão: cabe-lhe apenas uma verificação - negativa -, que consiste em saber se o juízo do legislador é em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspectiva jurídico-constitucional, por não se encontrar para ele qualquer qualquer fundamento material'.
Ora, já vimos, não é esse o caso dos presentes autos. Não ocorre, assim, relativamente às normas desaplicadas, qualquer violação ao princípio constitucional da igualdade, já que não se verifica aí um caso de preceitos desprovidos de - justificação racional -, relativamente aos quais se pudesse encontrar uma desproporção ou inadequação no tratamento da situação fáctica a que vão aplicar-se, isto para utilizar fórmulas aplicadas em outra ocasiões pela Comissão».
5. O Tribunal Constitucional já considerou, e continua a considerar, esta conclusão como válida, no essencial, também em relação à norma do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, desde que, como se disse no Acórdão nº
349/91 (Diário da República, II série, de 2 de Dezembro de 1991), 'a pensão auferida pelo beneficiário da segurança social, tendo em conta o seu montante, reportado a um determinado momento histórico, cumpra efectivamente a função inilidível de garantia de uma - sobrevivência minimamente condigna -, do pensionista'.
A Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito à segurança social, garantido por um sistema ou conjunto de medidas que visam protegê-los na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho - artigo 63º, n.os 1 e 4, da Constituição.
As bases em que assenta esse sistema de segurança social acham-se definidas na Lei nº 28/84, que consagra dois regimes de segurança social: o regime geral e o regime não contributivo. Um e outro concretizam-se em prestações garantidas como direitos - artigo 10º, nº 1, daquela lei.
O regime geral refere-se às prestações a atribuir nas eventualidades de doença, maternidade, acidente de trabalho e doença profissional, desemprego, invalidez, velhice, morte, encargos familiares e outros previstos na lei. Estão por ele abrangidos os trabalhadores independentes e os trabalhadores por conta de outrem - artigo 19º, nº 1, e artigo 18º. O montante das prestações substitutivas dos rendimentos do trabalho é determinado segundo um critério que assenta fundamentalmente no nível desses rendimentos, podendo, no entanto ser considerados o período das contribuições, os recursos do beneficiário ou do seu agregado familiar, o grau de incapacidade e os encargos familiares. Mas as pensões deste regime não podem ser inferiores ao montante mínimo estabelecido por lei, nem ao do regime não contributivo correspondente a idêntica eventualidade - artigo 26º.
O regime não contributivo refere-se apenas às prestações a atribuir para compensação de encargos familiares, e para protecção nas eventualidades de invalidez, velhice e morte. Estão por ele abrangidos os cidadãos nacionais em situações de carência económica e social não cobertas pelo regime geral (podendo ser extensivo a apátridas, refugiados e estrangeiros residentes em Portugal) - artigos 28º e 29º.
Fora daquele regime geral, a lei de bases deixou os regimes especiais de segurança social de certos trabalhadores, como os trabalhadores agrícolas, e principalmente os regimes de protecção social da função pública. Foi prevista a integração gradual daqueles regimes especiais no geral, e a unificação gradual das disposições que regulam as prestações correspondentes às diversas eventualidade no regime geral e no regime da função pública. Foi também prevista a integração, no regime geral, da protecção no desemprego e acidentes de trabalho - artigos 69º a 71º.
6. A impenhorabilidade das prestações atribuídas pelas instituições de segurança social representa um sacrifício do direito do credor, e portanto uma restrição ao direito à propriedade privada, garantido pelo artigo
62º, nº 1, da Constituição; todavia, este sacrifício será legítimo na medida em que for necessário para assegurar a sobrevivência condigna do devedor. Conforme se expôs no Acórdão nº 232/91 (Diário da República, II série, de 17 de Setembro de 1991), esta conclusão deve extrair-se do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º da Constituição; no entanto, na parte em que a pensão exceda o necessário e adequado para assegurar esse mínimo de sobrevivência condigna, já não será constitucionalmente legítimo o sacrifício do direito do credor.
Mas não será, em todo o caso, arbitrária a distinção estabelecida aqui entre as pensões pagas pelas instituições da segurança social, em que o credor se vê confrontado com a impenhorabilidade, e as pensões atribuídas por outras entidades, como a Caixa Geral de Aposentações, em que tal impenhorabilidade se não verifica?
Entende este Tribunal que não.
Na verdade, e como já por várias vezes o Tribunal Constitucional mostrou (v., por todos o Acórdão nº 186/90, Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1990), o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, não impede o legislador ordinário de distinguir situações, apenas proíbe o arbítrio legislativo, isto é, rejeita as distinções discriminatórias, sem um fundamento material bastante ou razoável.
Ora, como se ponderou no já citado Acórdão nº 349/91, 'a consagração, pelo legislador, de um regime de impenhorabilidade total, salvo em processos de execução especial por alimentos, das prestações devidas pelas instituições de segurança social, que pelo seu montante, devem ser objectivamente consideradas como instrumento de garantia de uma -sobrevivência minimamente digna - do pensionista, não é materialmente infundada, irrazoável ou arbitrária'. E, como também foi dito naquele Acórdão, se o legislador não estendeu o regime da impenhorabilidade às pensões atribuídas por instituições não pertencentes ao sistema da segurança social, bem poderá questionar-se se a inconstitucionalidade não estaria antes nas normas que não consagram o princípio da impenhorabilidade total para estas últimas, cujo montante se contenha dentro dos limites referidos.
Assim, e em conclusão, a norma em apreço será inconstitucional na medida - mas apenas na medida - em que consagra a impenhorabilidade de pensões cujo montante ultrapassa o mínimo necessário e adequado para garantir uma sobrevivência digna do pensionista. Nesta medida, ela consagra um privilégio materialmente infundado, face ao preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1, e 62º, nº 1, da Lei Fundamental.
7. Examinemos agora, a esta luz, a decisão do tribunal - a quo -
(fls. 182).
Nela, ordenou-se a penhora de 1/3 da pensão 'tendo em conta o montante indicado a fls. 181 [que era, em 1989, de 138.490$00], o disposto no artigo 13 da Constituição Política e no art. 823, nº 1 - e) e 2 do Código Civil'. Mais tarde, como vimos, o tribunal esclareceu que 'decorre de tal despacho o entendimento de que o preceito invocado é inconstitucional, por violação do artigo 13 da Constituição da República'.
Poderá aquele despacho ser interpretado de acordo com o entendimento do Tribunal Constitucional relativo à inconstitucionalidade apontada e ao âmbito desta?
Certamente que sim. O tribunal - a quo - teve em conta o montante da pensão, a norma do artigo 45, nº 1, da Lei nº 28/84 e as normas do Código de Processo Civil que estabelecem os critérios gerais de penhorabilidade de pensões; e, face à ponderação que fez dos elementos de facto, concluiu que a norma em causa, quando aplicada na concreta situação em apreço, violava o princípio constitucional da igualdade. Tal decisão respeita o critério de constitucionalidade aqui adoptado, e portanto não é passível de qualquer juízo de censura por parte do Tribunal Constitucional - ao qual falece a competência para apreciar os elementos de facto que a primeira instância teve em conta - ou, sequer, para apreciar a suficiência ou insuficiência de tais elementos nos autos.
Só há, pois, que confirmar essa decisão.
III - DECISÃO
Assim, e pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1, e 62º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto (Lei da Segurança Social), apenas na medida em que isenta de penhora a parte das prestações devidas pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna.
b) E, em consequência, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 29 de Junho de 1993
Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa