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Procº nº 683/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. O Representante do Ministério Público junto do Departamento de Investigação e Acção Penal da Procuradoria da República da comarca de Lisboa solicitou o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, de A., imputando-lhe o cometimento de determinados factos que subsumiu à prática de dois crimes de emissão de cheque sem provisão previstos e puníveis pelos artigos 23º e 24º - este último na redacção introduzida pela alínea c) do nº 2 do artº 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 10 de Setembro - ambos do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927.
2. Distribuídos os autos ao 3º Juízo Correccional do Tribunal Criminal da comarca de Lisboa, o respectivo Juiz, por despacho de 7 de Abril de 1992, ponderando:
que o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, revogou tacitamente as disposições legais incriminadoras do arguido;
que, actualmente, o crime de emissão de cheque sem provisão exige, confrontadamente com aquelas disposições, mais um requisito, qual seja da existência de um prejuízo patrimonial,
e que na acusação em causa não constavam factos de onde se extraísse tal prejuízo,
declarou extinto o procedimento criminal do arguido tendo em atenção o disposto no nº 2 do artº 2º do Código Penal.
3. Não se conformando com o assim decidido, recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa.
4. O Representante daquela magistratura ali em funções emitiu parecer propugnando por dever ser dado provimento ao recurso, nessa peça processual, a dado passo, escrevendo:
'............................................. I - Contendo tal preceito [referia-se ao artº 11º do D.L. nº 454/91] a disciplina legal de um crime, nos termos do artº 168º., nº. 1, al. c) da C.R.P., tal matéria é da competência exclusiva da Assembleia da República. II - E, por tal razão, o Governo pediu à A.R. a competente autorização legislativa para legislar sobre tal matéria, através da Proposta de Lei nº
201/v, de 23.05.91, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série, de
29.05.91, com a redacção do seu Artº. 3º. - nº. 1 - Fica igualmente o Governo autorizado a considerar como autor de crime de emissão de cheque sem provisão quem:
a) - Emitir e entregar a outra pessoa cheque de montante superior a
5.000$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque;
b) - Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral.
c) - Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue, com isso causando prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro
(sublinhado nosso) e a punir este tipo de crime com as formas previstas no Código Penal para o crime de burla, de acordo com as circunstâncias (fls. 1240). III - No decorrer da 'discussão' de tal 'Proposta de Lei', que teve lugar na A.R., na Reunião Plenária de 06.06.91, publicada no Diário da Assembleia da República, I Série - número 89, de 07.06.91, com intervenções publicadas a fls.
2954 a 2961, nenhuma intervenção existe à cerca do referido elemento integrante da al. e) - causando prejuízo patrimonial a terceiros.
E, assim, foi tal 'Proposta de Lei' aprovada na generalidade e especialidade, com a redacção que consta de fls. 2963 desse mesmo 'Diário da Assembleia da República', em que o mesmo só consta da al. c). IV - E, assim, na Lei nº. 30/91, de 20.07, publicada no D.R. I Série-A da mesma data, o elemento típico a que nos referimos - causando prejuízo patrimonial - apenas consta da referida al. c). V - Só que, o Governo, ao legislar sobre tal matéria, no uso de tal autorização legislativa, fá-lo, no referido D.L. nº 454/91, de 28/ /12, com a redacção que consta do Artº. 11º.- nº. 1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral da punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial (sublinhado nosso):
a) - Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º. que não for integralmente pago por falta de provisão verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
b) - Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao pagamento integral.
c) - Proibir à instituição sacada o pagamento do cheque emitido e entregue. VI - Ora, da leitura do artº. 3º. da Lei da Autorização e do artº. 11º. do D.L. autorizado, no que respeita ao referido elemento típico do crime - causar prejuízo patrimonial - apura-se a existência de uma diferença nítida. Na 'Lei da Autorização' tal elemento típico é exclusivamente da al. c) e, no D.L. autorizado, sendo integrado no corpo do artº. 11º., passa a ser elemento típico das alíneas a) e b). O que significa que o legislador do D.L. autorizado, nas als. a) e b) introduziu um elemento típico de crime que não consta da 'Lei de autorização Legislativa' a Lei nº 30/ /91, de 20-07. VII - É certo que a questão acima posta foi levantada pelo Exmo. Senhor Presidente da República que, em sede de fiscalização preventiva - artº. 278º. da C.R.P. - a suscitou ao Tribunal Constitucional, que se pronunciou, no seu Acórdão nº. 371/91, de 10.10.91, no sentido da inexistência de tal inconstitucionalidade, referindo-se aí, em súmula, que (fls. 12.605):
'A omissão da referência ao «prejuízo patrimonial» quanto às alíneas a) e b) podem bem significar, em tese geral, que quanto a estas condutas ilícitas o legislador parlamentar entendeu que a sua criminalização já não deveria estar dependente do requisito de provocarem qualquer tipo de prejuízo patrimonial'. No entanto, mais adiante, refere-se: '... no caso vertente, o Governo tinha uma
«credencial parlamentar ampla» no sentido de considerar crime de emissão de cheque sem provisão as condutas previstas nas als. a) e b) quer elas causassem
«prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro» quer não o causassem'. E, seguindo esta linha de pensamento, concluiu-se pela inexistência de inconstitucionalidade, na questão posta, havendo, uma discordância com tal decisão, o 'Voto de Vencido' do Exmº. Sr. Juiz Conselheiro Mário de Brito, constante de fls. 12.610 do mesmo D.R.. VIII - É, no entanto, líquido, face às normas da Constituição que regulam a matéria da fiscalização concreta da constitucionalidade - artº. 280º. e segs.- que os Tribunais podem colocar tal questão. E, com todo o devido respeito que nos merece a decisão a que atrás nos referimos, entendemos estar de acordo com a 1ª. parte do Acórdão que atrás transcrevemos e também, portanto, com a posição de 'Voto de Vencido' do Exmo. Senhor Conselheiro Mário de Brito.
É que, sendo certo que as leis de autorização legislativa podem, no que respeita aos seus 'limites materiais' ter um conteúdo mais ou menos amplo, o certo é que J.J. Gomes Canotilho, no seu 'Direito Constitucional', 5ª. edição, referindo-se
à 'Natureza jurídico-constitucional das leis de autorização' refere a fls. 861
'... a autorização legislativa deve tornar previsível e transparente para o cidadão as hipóteses em que o Governo ou a assembleia legislativa regional farão uso da autorização e ainda o conteúdo (objecto, sentido, extensão, alcance) que, com fundamento na autorização, virão a ter as normas autorizadas'. Ora, se o legislador da lei de autorização do caso 'sub judice' só incluiu tal elemento típico - causar prejuízo patrimonial - na al. c) e não nas als. a) e b), tem de concluir-se, por interpretação de tal Lei, que não quis introduzi-lo em relação às als. a) e b). Aliás, esta interpretação está plenamente de acordo com o pedido feito pelo Governo à A.R.. Na verdade, conforme se vê da 'Proposta de Lei' nº 201/v, artº.
3º. o elemento típico 'prejuízo patrimonial' só consta da al. c). E, na
'discussão' a que se procedeu na A.R. ninguém levantou a hipótese de tal elemento típico integrar as condutas das als. A) e b). E, assim, tem de concluir-se que, conforme se vê da 'Proposta de Lei' e da 'Lei da Autorização', ao Governo foi concedido exactamente aquilo que pedira à A.R.. Parece-nos, assim, haver uma contradição nos seus próprios termos, considerar que ao Governo terá sido concedida uma autorização legislativa, com um alcance que excede aquilo que pediu. Só se pode conceder aquilo que é pedido. IX - Temos, assim, de concluir, que o Governo, integrando o crime do artº 11º., al. a) do D.L. nº. 454/91, de 28.12 - único que está em causa no caso 'sub judice' - com o elemento típico 'causando prejuízo patrimonial', excedeu a autorização legislativa que lhe foi concedida pela A.R., constante da Lei nº.
30/91, de 20.07, pelo que tal norma legal está ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artº. 168º., nº. 1, al. c) da Constituição da República Portuguesa.
LEGALIDADE: I - Nos termos do artº. 3º. nº. 3 da C.R.P., a validade das leis e dos demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição. E, nos termos do artº. 115º. nº.2, as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa. II - Àcerca destes pontos, A. Vitorino 'As autorizações legislativas na Constituição Portuguesa', refere na pág. 214 que o Governo tem de agir '... dentro dos limites fixados na lei de autorização' e, a seguir, que, nos termos do nº. 2 do artº. 168º. da C.R.P.,'... a lei de habilitação, tem de definir, como mínimo exigível, o objecto, o sentido, a extensão ... da autorização'
(sublinhados nossos). J. Canotilho 'Direito Constitucional', 4ª edição, pág. 638, escreve que 'este carácter subordinado dos decretos-leis no uso de autorização legislativa é hoje constitucionalmente indiscutível ...'. E o mesmo autor com Vital Moreira, in 'Fundamentos da Constituição', considerando a lei de autorização como - 'lei reforçada' - pág. 280 e 285 - referem que '... a Constituição ... também considerou como ilegalidade o desrespeito das leis de valor reforçado ...
(artºs. 115º. nº. 2 ...)'. III - Ora, do que acima fica exposto, resulta líquido que o Governo, ao legislar sobre o crime de emissão de cheque sem provisão, só o podia fazer em estrita obediência ao artº. 3º. da Lei nº. 30/91, de 20.07, e designadamente, em relação ao elemento típico 'causando prejuízo patrimonial'. Tal lei impunha-se-lhe e tinha de ser interpretada nos seus precisos termos. E, se tal elemento líquido só constava da al. c), só nela podia figurar. Ao integrá-lo no corpo do artigo, aplicando-o também às hipóteses das als. a) e b), está-se a fazer aplicação analógica, violando, assim, o disposto no artº. 1 . nº. 3 do C. Penal. IV - Pelo que temos que considerar que o disposto no artº. 11º., nº. 1 do Decreto-Lei nº. 454/91, de 28 de Dezembro face ao artº. 3º. da Lei nº 30/91, de
20.07, está ferido de ilegalidade, nos termos das disposições conjugadas dos artºs. 3º., nº. 3. 115º., nº. 2 e 280º. nº. 2, al. a), todos da C.R.P..'
5. Por acórdão de 6 de Outubro de 1992, a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, referindo, na sua parte final, que o elemento do crime - causar prejuízo patrimonial - definido no artº 11º, nº 1, do D.L. nº 454/91, 'está coberto pela extensão e pelo sentido do artº 3º, nº 1, da Lei de Autorização Legislativa - Lei nº 30/91, de 20.7 - '.
6. Esta decisão motivou a interposição de recurso, por banda do Ministério Público, para o Tribunal Constitucional, tendo o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto aqui em exercício produzido alegação, na qual propugna por se dever conceder provimento ao recurso, e em que concluiu:-
'1º - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República relativa à 'definição de crimes' (artigo 168º, nº 1, alínea c) da Constituição) abrange quer a definição de novos tipos de crimes, quer a modificação, degradação ou eliminação de tipos existentes;
2º - No nº 1 do artigo 3º da Lei nº 30/ /91, de 20 de Julho, a Assembleia da República define como sentido da autorização legislativa concedida ao Governo para definir as condutas integradoras do crime de emissão de cheque sem provisão uma diferenciação consistente em exigir a verificação do requisito da produção de prejuízo patrimonial a outrem para a incriminação da conduta descrita na alínea c), e em não exigir a verificação desse requisito para a incriminação das condutas descritas nas alíneas a) e b);
3º - Ao estender a exigência da verificação desses requisitos para a incriminação das condutas descritas nas correspondentes alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - e, assim, ao não criminalizar tais condutas nos casos em que não ocorra a produção de prejuízo patrimonial para o tomador do cheque ou para terceiro -, o Governo desrespeitou o sentido da autorização legislativa que para o efeito lhe havia sido concedida;
4º - É, assim, inconstitucional (ou ilegal, consoante a qualificação que se prefira para o vício consistente em o decreto--lei autorizado, não extravasando o objecto da autorização legislativa, lhe desrespeitar o sentido), por violação do artigo 115º, nº 2, da Constituição, a norma constante do corpo e da alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/89, na parte em que exige a verificação de prejuízo patrimonial para outrem para a incriminação da conduta prevista nessa alínea'.
II
1. A matéria sujeita à apreciação no presente recurso, ou seja, a da compatibilidade constitucional da norma ínsita no corpo e alínea a) do nº 1 do artº 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na parte em que exige a verificação do prejuízo patrimonial para outrem para que a conduta ali descrita seja incriminada, foi já objecto de análise por banda deste Tribunal por intermédio do seu Acórdão nº 349/93, tirado em plenário ao abrigo do artº 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aresto de que se junta cópia.
Aí se concluiu, sem divergência de opiniões por parte dos juízes que o subscreveram, que a indicada norma não padecia de vício de inconstitucionalidade.
2. Dá-se aqui, por razões de economia processual, por reproduzida toda a corte de razões carrreada para o juízo então formulado no dito Acórdão nº 349/93, pelo que igualmente se há-de concluir que a norma sub specie não enferma de desconformidade com a Lei Fundamental.
III
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se, desta arte, o acórdão recorrido na parte impugnada.
Lisboa, 29 de Junho de 1993
Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa