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Proc. nº 407/91
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No 14º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, A., B., C. e D., propuseram acção com processo ordinário contra E., F., G.
(anteriormente com a designação H.), I., J., L., M., N., O. e P., pedindo, além do mais, a sua condenação no pagamento da quantia total global de 75.122.971$00.
Aquando da apresentação da réplica, os autores ampliaram o pedido e a causa de pedir, alterando o valor da acção para
579.761.949$80 e requereram o apoio judiciário 'na modalidade de dispensa de pagamento prévio de preparos e custas, o que, por ser apenas uma dispensa provisória, não se traduz em qualquer lesão do Estado, traduzindo antes um reequilíbrio das armas dos litigantes, considerando o grande poder económico dos R.R., sobretudo Sociedades'.
Os réus M., N., O. e P. contestaram o pedido de apoio judiciário (os dois primeiros a fls. 551v. e 552, e os dois últimos a fls.
559 a 661), e as rés E., e F., ofereceram, quanto a tal matéria, 'o merecimento dos autos' (fls. 537 e 538 e 541 e 542, respectivamente).
O senhor juiz determinou então que os autos fossem com vista ao Ministério Público 'a fim da se pronunciar sobre o pedido de apoio judiciário'.
Na sequência deste despacho foi emitido pelo Ministério Público, a fls. 720v., parecer com o seguinte teor:
'Os rendimentos indiciados pelos A.A. a fls. 501 verso e outros que não indicam são suficientes para afastar a presunção da insuficiência económica. Aliás, os interesses que conflituam nos presentes autos são um bom sinal da capacidade económica dos A.A.
Deste modo, ao abrigo dos arts. 19º, 20º, nºs 1 e 2, 23º e 28º do DL
387-B/87, de 29.12, promovo se indefira o apoio judiciário e sejam notificados os AA para efectuarem os competentes preparos'.
Havendo entretanto sido juntos aos autos mais elementos de prova relativos ao incidente do apoio judiciário, de novo se determinou a vista do processo ao Ministério Público que, integralmente manteve o sentido da sua anterior promoção.
E, por despacho de 17 de Abril de 1990, (a fls.
730v.), o pedido de apoio judiciário foi recusado com base no seguinte quadro de razões:
'Antes de mais, diga-se que o instituto do apoio judiciário existe para pessoas carenciadas de meios económicos, que por esse motivo não podem recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos.
Ora os Autores para além dos rendimentos que possuem e já atrás referidos, receberam no ano de 1988 importâncias que ascenderam a várias dezenas de milhares de contos, conforme consta dos autos, veja-se arts. 12º e seguintes da petição inicial.
Face ao exposto, e sem necessidade de mais considerandos, indefiro o pedido dos Autores, não lhe concedendo o benefício do apoio judiciário'.
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2 - Desta decisão levaram os autores recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, peticionando, em primeiro lugar, a revogação do despacho agravado e a concessão do apoio judiciário na modalidade requerida.
Das respectivas alegações importa aqui destacar algumas das conclusões formuladas. Assim:
'A) A intervenção do Mº.Pº. imediatamente anterior à decisão constitui intolerável atentado ao princípio da igualdade de armas em processo civil e meio de pressão sobre o poder judicial, exercida pelo Estado, interessado em limitar as despesas públicas com o instituto do Apoio Judiciário.
B) Essa intervenção colide com a norma do §1º do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e com o artº 8º da Constituição.
C) Igualmente colide com essa norma, e ainda com o artº 16º (nº 2) da Constituição e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
D) Ofende o princípio do contraditório o facto de não ter sido dado conhecimento aos requerentes dos docs. juntos a fls. 722 e 729, do parecer de fls 720 verso, o que se traduz em nulidade susceptível de afectar os direitos da parte.
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F) Também não é verdade que a função do instituto de Apoio Judiciário seja a de assegurar o acesso à Justiça barata, ou o acesso a tribunal apenas das pessoas carecidas economicamente.
G) Mesmo as pessoas não carecidas economicamente em termos absolutos, terão direito ao Apoio Judiciário, se tal se justificar em face do elevado valor da causa e da inexegibilidade dos sacrifícios implícitos no acesso ao Tribunal no caso concreto.
H) O Apoio Judiciário não deve garantir apenas o acesso aos Tribunais dos mais pobres, mas o acesso de todos os cidadãos em condições equitativas, por forma a respeitar as normas dos artigos 13º e 20º da Constituição.
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MM) Confundindo a situação de todos os Autores, abstraindo da estrutura de relação obrigacional de custas, da natureza do litígio, omitindo a produção de prova da matéria do artº. 12º da Réplica, adoptando uma visão limitada da função do instituto do Apoio Judiciário e não sanando nem sancionando as nulidades cometidas que ofendem os princípios da equidade e do contraditório, violou a decisão recorrida os artigos 8º, 13º, 16º (2º) e 20º da Constituição, o §1º do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os artigos 1º, 2º e 15º do Dec.Lei nº 387-B/87'.
O senhor relator começou por ordenar que os autos fossem com vista ao Ministério Público, havendo sido emitido parecer defendendo-se, de um lado, a inteira adequação legal da intervenção do Ministério Público no incidente do apoio judiciário, e sustentando-se, de outro lado, que a situação económica da autora C., menos consistente que a dos seus co-autores, é susceptível de justificar a concessão do benefício requerido, donde, aceitar-se, a procedência parcial do recurso.
Por acórdão de 2 de Maio de 1991, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a decisão impugnada, não só relativamente à autora C., como aos demais autores.
Para tanto, e no que aqui importa, ateve-se no essencial, à seguinte linha argumentativa:
'A faculdade que a lei concede ao Mº.Pº. de ter vista no processo, no artº
28º do DL nº 387-B/87 ao estatuir que `se não for o requerente o ministério público terá vista do processo, a fim de se pronunciar sobre o pedido de apoio judiciário', - não coloca esta entidade ao lado do autor ou do réu, ou contra aquele.
Aqui falha o pressuposto de que partem os autores, para esgrimir contra o Ministério Público, porque as armas com que este combate são aquelas que os autores e réus trazem aos autos, indistintamente, joeirando os factos para se pronunciar sobre o mérito do pedido.
De forma alguma constitui intolerável atentado ao princípio da igualdade das armas a intervenção do Ministério Público, imediatamente anterior à decisão.
Por outro lado, jamais poderia constituir em processo civil como meio de pressão sobre o poder judicial, exercido pelo Estado, interessado em limitar as despesas públicas com o Instituto de Apoio Judiciário.
O Mº.Pº. não tem procuração do Estado para esse efeito, nem a comunidade dos contribuintes lha passou, antes como defensor da legalidade, concita a observância de normas vinculantes da Constituição.
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Consagrado na lei o princípio da legalidade no exercício da função jurisdicional, as regras do jogo, quanto ao instituto do Apoio Judiciário, colocam na extremidade da relação jurídica, os requerentes do apoio e os requeridos, na dupla função dialéctica - defesa-ataque - ou acção e contradição, na defesa dos pretensos direitos, - de forma alguma intervindo o Ministério Público em actos em que as partes não possam intervir, por forma a impedir um julgamento equitativo ou intervir com armas desiguais.
Com o artº 28º do DL 387-B/87, o Mº.Pº. tem vista do processo antes da decisão, para se pronunciar sobre o apoio, não lhe cabendo (não sendo requerente, apresentar provas) mas requerer ao tribunal quaisquer diligências nesse sentido, detendo o juiz o poder oficioso de ordenar as diligências que lhe pareçam indispensáveis, artº 29º do mesmo diploma.
O Ministério Público para emitir o seu parecer não veio com provas suas, nem as requereu, por lhe parecerem suficientes os elementos constantes do processo. Emitindo o seu douto parecer limitou-se a constatar as provas fornecidas pelas partes - uma vez que houve oposição franca dos requeridos, - não precisava de defender direitos de modo particular, por forma a limitar as despesas públicas ou exercer pressão sobre o poder judicial, de cuja isenção e imparcialidade se disse o suficiente.
Prevista na lei, a obrigação de dar `vista' no processo, com isso, não é ofendido qualquer direito de igualdade das partes, pois que como estas, goza do direito de recurso, no caso de a sentença lhes desagradar, nº 2 do artº 680º do Código de Processo Civil.
Também com isso não foram desrespeitadas as normas dos artigos 13º e 20º da Constituição e os direitos e garantias consignados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou na Declaração Universal dos Direitos do Homem, respectivamente, §1º do artº 6º daquela Convenção e artº 8º da nossa Constituição ou o seu artº 16º, com os artigos 1º, 2º, 7º, 8º e 9º da Declaração Universal'.
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3 - Deste acórdão, apenas a autora C. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, em ordem à fiscalização concreta da constitucionalidade das questões que, no seu entendimento, suscitou durante o processo.
Nas alegações que entretanto produziu formulou o seguinte quadro conclusivo:
a) O recurso está bem fundado na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro;
b) As Instâncias, na interpretação dada ao artigo 28º do D. Lei 387-B/87, ao darem vista ao Mº.Pº. para se pronunciar sobre o pedido de Apoio Judiciário antes da decisão, ofenderam o artigo 8º da Constituição, na medida em que violada foi a norma do artº 6º (nº 1) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois foi desrespeitada a independência dos tribunais e o princípio da igualdade de armas;
c) Decidindo a questão do Apoio Judiciário à recorrente sem ter em conta a responsabilidade solidária pelos preparos e custas totais dos compartes, as Instâncias denegaram Justiça à recorrente, extraindo dos preceitos dos artigos
1º, 2º. 15º, 16º e 17º do D.Lei 387-B/87 a noção de um direito de acesso à Justiça proporcional;
d) Ora, o direito de acesso à Justiça é pessoal;
e) A recorrente, uma vez que não ficou definida a sua responsabilidade, nem dos seus compartes, é responsável pela totalidade dos preparos e custas;
f) A norma extraída pelas Instâncias dos citados preceitos do D.Lei
387-B/87, ofende o artigo 20º da Constituição;
g) E, devendo esta norma afastar qualquer discriminação em razão da situação económica dos cidadãos, neste caso as Instâncias fizeram interpretação dos citados preceitos do D.Lei 387-B/87 por forma a deles extrair normas que também colidem com o artigo 13º da Constituição.
Nestes termos, deve o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso e decidir que das decisões das Instâncias resultou interpretação dos preceitos dos artigos 1º, 2º, 15º, 16º, 17º e 28º do D.Lei 387-B/87, que se traduzem em normas inconstitucionais por violadores dos artigos 8º, 13º e 20º da Constituição.
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4 - Na contra-alegação a seguir oferecida pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, concluiu-se do modo que segue:
1º Não deve conhecer-se do objecto do recurso quanto à questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, 2º, 15º, 16º e 17º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, por tal questão não ter sido - podendo sê-lo - suscitada 'durante o processo' e por tais normas não terem sido aplicadas pelo acórdão recorrido;
2º Caso assim se não entenda, devem julgar-se não inconstitucionais as normas referidas na conclusão anterior;
3º Deve julgar-se não inconstitucional a norma do artigo 28º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro.
Notificada a recorrente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 704º do Código de Processo Civil, face à questão prévia do não conhecimento parcial do recurso suscitada pelo Ministério Público, não veio depois a apresentar qualquer resposta.
Na sequência do exposto cabe, liminarmente, definir qual o exacto objecto do recurso, o que vale por decidir a questão prévia posta na contra-alegação do Ministério Público.
Vejamos então.
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II - A questão prévia
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos
280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Este específico tipo de fiscalização concreta de constitucionalidade - aquele, aliás, que vem invocado pela recorrente - exige, além do mais, que a questão da constitucionalidade da norma ou normas em controvérsia haja sido suscitada durante o processo, acrescendo ainda que a decisão recorrida venha depois, dela ou delas a fazer aplicação como fundamento normativo do seu próprio conteúdo.
O exacto significado da locução 'durante o processo', deverá apreender-se a partir de um sentido não puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas antes de um sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de constitucionalidade) que é o objecto do mesmo recurso.
Mas, para que estes requisitos de admissibilidade do recurso - e são os que no caso em apreço interessa considerar - se possam ter por verificados, importa, por um lado, que a recorrente haja efectivamente suscitado a questão de constitucionalidade e o tenha feito de modo directo e perceptível, indicando a disposição legal suspeita de inconstitucionalidade ou, no caso de apenas questionar determinada interpretação que dela haja sido feita, enunciar qual o sentido ou a dimensão normativa que se tem por violadora do texto constitucional, e por outro lado, demonstrar que essa norma ou uma sua determinada interpretação, foram aplicadas na decisão recorrida como seu suporte normativo (cfr. sobre toda esta matéria a jurisprudência pacífica e uniforme do Tribunal Constitucional, indicando-se por todos os Acórdãos 62/85, 94/88 e
123/89, Diário da República, II série, respectivamente, de 31 de Maio de 1985,
22 de Agosto de 1988 e 29 de Abril de 1989).
Paralelamente, importa recordar que o legislador constituinte elegeu como elemento identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização da constitucionalidade
(cfr. os artigos 278º, 280º e 281º da Constituição), o conceito de norma jurídica pelo que apenas estas (e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas), podem ser objecto de sindicância nesta sede, na qual se incluem os processos de fiscalização concreta de constitucionalidade.
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2 - Segundo o entendimento perfilhado pelo Ministério Público na sustentação da questão prévia que agora se aprecia, a recorrente não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade das normas que se contêm nos artigos 1º, 2º, 15º, 16º e 17º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de
29 de Dezembro, apenas o havendo feito no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, inexistindo assim quanto a estas normas um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, o que haverá de ocasionar, na parte correlativa, o não conhecimento do seu objecto.
Os preceitos do Decreto-Lei nº 387-B/87, relativamente aos quais foi suscitada a questão do não conhecimento, dispõem assim:
Artigo 1º
1 - O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos.
2 - Para concretizar os objectivos referidos no número anterior desenvolver-se-ão acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica.
Artigo 2º
O acesso ao direito e aos tribunais constitui uma responsabilidade conjunta do Estado e das instituições representativas das profissões forenses, através de dispositivos de cooperação.
Artigo 15º
1 - O apoio judiciário compreende a dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas, ou o seu diferimento, assim como do pagamento dos serviços do advogado ou solicitador.
2 - A dispensa de pagamento, pelo utente, dos serviços do advogado ou solicitador deve ser expressamente requerida.
Artigo 16º
1 - O regime de apoio judiciário aplica-se em todos os tribunais, qualquer que seja a forma do processo.
2 - O regime de apoio judiciário aplica-se também, com as devidas adaptações, aos processos das contra-ordenações.
Artigo 17º
1 - O apoio judiciário é independente da posição processual que o requerente ocupe na causa e do facto de ter sido já concedido à parte contrária.
2 - O apoio judiciário pode ser requerido em qualquer estado da causa, mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre o mérito da causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar.
3 - Declarada a incompetência relativa do tribunal, mantém-se, todavia, a concessão do apoio judiciário, devendo a decisão definitiva ser notificada ao patrono para se pronunciar sobre a manutenção ou escusa do patrocínio.
4 - No caso de o processo ser desapensado por decisão com trânsito em julgado, o apoio concedido manter-se-á, juntando-se oficiosamente ao processo desapensado certidão da decisão que o concedeu, sem prejuízo do disposto na parte final do número anterior.
Será de conceder atendimento à questão assim posta pelo Ministério Público?
Vejamos.
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3 - À luz das considerações e dos princípios sumariamente expostos, há-de dizer-se que a recorrente não suscitou válida e adequadamente, isto é, em termos directos e operativos, a questão da constitucionalidade das normas dos artigos 1º, 2º, 15º, 16º e 17º do Decreto-Lei nº 387-B/87.
Com efeito, durante o processo, nas diversas peças processuais que produziu até à prolação do acórdão recorrido, nomeadamente na alegação do agravo para o Tribunal da Relação, não desencadeou qualquer actividade ou diligência susceptível de ser interpretada ou entendida como denúncia da inconstitucionalidade daquelas normas, em termos de, por essa forma, vir implicada a obrigatoriedade de pronúncia sobre tal questão por parte do tribunal recorrido, e de, simultâneamente, ficar aberta a via do acesso e do recurso a este Tribunal.
É certo que nas conclusões da alegação produzida perante o Tribunal da Relação, em concreto na conclusão MM, a recorrida assacou
à decisão impugnada a violação de diversos preceitos entre os quais se incluíam as normas do Decreto-Lei nº 387-B/87, aqui questionadas.
Simplesmente, de tal referência apenas se extrai que aquela decisão, para além de ofender normas da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também afrontaria as disposições relativas ao regime legal de acesso ao direito e aos tribunais, sem que, porém, estas mesmas disposições tivessem ali sido arguidas de inconstitucionalidade.
Ora, como é sabido a fiscalização da constitucionalidade acha-se limitada aos actos de carácter normativo, com exclusão dos actos de outra natureza, nomeadamente os actos judiciais em si mesmos considerados, do que decorre que os recursos de constitucionalidade só podem ter por objecto normas e não decisões dos tribunais (cfr. neste sentido a jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, citando-se por todos o Acórdão nº 125/90, Diário da República, II série, de 4 de Abril de 1990, bem como Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra,
1991, pp. 246 e ss.).
A recorrida impugnou directamente o acórdão recorrido que, segundo o seu entendimento, teria violado não só normas constitucionais mas também o disposto em alguns preceitos do Decreto-Lei nº
387-B/87, mas não suscitou de modo formal e substancialmente operativo e adequado a questão da constitucionalidade das normas deste diploma que agora se consideram.
E assim sendo, tem-se por seguro não existir quanto a estas normas e ao recurso de constitucionalidade que lhes respeita, um dos pressupostos indispensáveis ao conhecimento do seu objecto.
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4 - Mas, mesmo quando assim não houvesse de se concluir, o que agora se admite apenas em ordem ao desenvolvimento da linha expositiva subsequente, sempre se verificaria ausência dos pressupostos indispensáveis ao desenvolvimento do recurso.
Com efeito, o julgamento das questões de constitucionalidade no domínio dos processos de fiscalização concreta pressupõe a efectiva aplicação das normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada, como fundamento jurídico-normativo da decisão recorrida, como sua ratio decidendi.
Se determinada norma jurídica não for aplicável
(ou aplicada) ao caso sujeito a recurso, a sua conformidade ou desconformidade constitucional é irrelevante para a decisão da causa, não se justificando então a intervenção do Tribunal Constitucional.
Ora, o acórdão recorrido não fez aplicação das normas dos artigos 1º, 2º, 15º, 16º e 17º do Decreto-Lei nº 387-B/87, nem tão pouco formulou qualquer juízo sobre a sua eventual inconstitucionalidade.
Decorre assim do exposto que há-de conceder-se atendimento à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, não se tomando, consequentemente, conhecimento do objecto do recurso na parte agora sujeita a apreciação.
Aqui chegados, cabe passar à apreciação do mérito do recurso relativamente ao segmento do seu objecto susceptível de ser apreciado e decidido por este Tribunal, concretamente o que se reporta à norma do artigo
28º do Decreto-Lei nº 387-B/87.
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II - A fundamentação
1 - O sistema de acesso ao direito e aos tribunais instituído pelo Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, destina-se a promover que ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos (artigo 1º, nº 1).
Para concretizar estes objectivos serão desenvolvidas acções e mecanismos sistematizados de informação e protecção jurídica, constituindo o acesso ao direito e aos tribunais uma responsabilidade conjunta do Estado e das instituições representativas das profissões forenses, através de dispositivos de cooperação (artigos 1º, nº 2 e 2º).
A protecção jurídica reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário, compreendendo este último a dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas, ou o seu diferimento, assim como do pagamento dos serviços do advogado ou solicitador (artigos 6º e
15º, nº 1).
A concessão do apoio judiciário compete ao juiz da causa para a qual é solicitada, constituindo um incidente do respectivo processo e admitindo oposição da parte contrária (artigo 21º).
O pedido de apoio judiciário para a dispensa, total ou parcial, de preparos e de pagamento de custas deve ser formulado nos articulados da acção a que se destina ou em requerimento autónomo, quando for posterior aos articulados ou a causa os não admita, devendo o requerente alegar sumariamente os factos e as razões de direito que interessam ao pedido, oferecendo logo todas as provas (artigos 22º, nº 2 e 23º, nº 1).
Formulado o pedido de apoio judiciário, o juiz profere logo despacho liminar, mandando citar ou notificar a parte contrária para contestar, sempre que o pedido não seja logo indeferido (artigo 26º, nºs 1 e 3).
Com a contestação são oferecidas todas as provas
(artigo 27º, nº 2).
Se não for o requerente, o Ministério Público terá vista do processo, a fim da se pronunciar sobre o pedido de apoio judiciário (artigo 28º).
O juiz ordenará as diligências que lhe pareçam indispenáveis para decidir o incidente de apoio judiciário (artigo 29º).
No entendimento da recorrente, a norma do artigo
28º do Decreto-Lei nº 387-B/87, inscrita no processado do incidente do apoio judiciário, quando interpretada no sentido de autorizar a intervenção do Ministério Público para se pronunciar sobre o pedido sem que os seus requerentes conheçam o teor dessa intervenção - e assim aconteceu no acórdão sob recurso - ofende 'o artigo 8º da Constituição, na medida em que violada foi a norma do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois foi desrespeitada a independência dos tribunais e o princípio da igualdade de armas'.
Mas, antecipa-se desde já, não assiste razão à recorrente.
Vejamos porque.
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2 - Ao Ministério Público compete representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar, gozando para tanto de estatuto próprio e de autonomia nos termos da lei (artigo 221º, nº 1 e 2, da Constituição).
A autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directrizes, ordens e instruções previstas na sua lei orgânica (artigo 2º, nº 2, da Lei nº 47/86, de
15 de Outubro).
Ora, quando não figura como parte no processo como sucede no incidente do apoio judiciário de que não é requerente - é essa a situação verificada no processo em apreço - o Ministério Público não exerce ou actua então poderes de representação ou assistência, assumindo-se antes na qualidade de defensor da legalidade democrática e dos interesses que a lei lhe determina, isto é, a sua actuação sempre pautada por critérios de legalidade e objectividade há-de visar, em simultâneo, a defesa do acesso ao direito e aos tribunais constitucionalmente consagrado, bem como o funcionamento adequado do instituto do apoio judiciário através de uma aplicação fundada em elementos materiais rigorosos e em critérios definidos por lei.
Num contexto processual como aquele que se representa nos autos, a contraposição dialéctica suportada numa eventual relação argumentativa cruzada, não ocorre entre o requerente do apoio judiciário e o Ministério Público mas, como bem se evidencia da disciplina normativa reguladora do incidente (cfr. os artigos 21º, 26º nº 3 e 27º), entre o requerente e a parte contrária na causa para a qual o apoio judiciário foi peticionado.
Aliás, no domínio deste contraditório, sem prejuízo das diligências que o juiz do processo sempre poderá ordenar oficiosamente, o ónus da prova e da contra-prova impendem tão somente sobre o requerente e o requerido, as partes principais na acção, limitando-se o Ministério Público a emitir um parecer sobre os fundamentos e a procedência do pedido à luz de um quadro material por aqueles definido.
Não representando nem assistindo os interesses materiais sob discussão, o Ministério Público, ao pronunciar-se sobre o pedido do apoio judiciário, actua como órgão de justiça no exercício de uma actividade basicamente subordinada aos valores da verdade e da justiça e numa perspectiva de estrita legalidade e objectividade. (Aliás, é bem sintomático e significativo o facto de o magistrado do Ministério Público no Tribunal da Relação se haver pronunciado no sentido da concessão do apoio judiciário à recorrente).
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3 - Em conformidade com o disposto no artigo 8º, nº 2, da Constituição, as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
Deste modo, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro, havendo o respectivo instrumento de ratificação sido depositado em 2 de Novembro de 1978, vigora a partir de então na ordem jurídica nacional.
O artigo 6º, nº 1, desta Convenção, na parte que interessa reter, dispõe assim:
'Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer os direitos dela e obrigações civis, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (...)'.
O significado essencial deste preceito traduz-se em que qualquer pessoa tem direito a um processo equitativo, a um processo em que uma das partes não seja beneficiada ou tenha mais direitos do que a outra, em suma, a um processo em que as partes estejam entre si numa situação de igualdade.
Ora, independentemente do alcance que neste específico processo haja de ser dado às normas daquela Convenção, parece seguro que o quadro legal disciplinador do incidente do apoio judiciário no qual se integra a norma sob sindicância, estabelece uma adequada parificação entre as posições dos requerentes e dos requeridos, por forma a conceder a uns e outros oportunidades idênticas de apresentar as suas razões e os elementos probatórios de suporte material. Pode bem dizer-se não existir ali qualquer desrespeito pelo princípio do contraditório (entendido como a possibilidade de cada parte deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discutir sobre o valor e resultados de umas e outras - cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1974, p. 377).
Mas, como já se observou, a contraposição dialéctica postulada pelo contraditório estabelece-se no incidente do apoio judiciário entre os requerentes e os requeridos e não já entre aqueles e o Ministério Público cuja intervenção processual se situa num plano distinto do das partes e obedece a um outro programa normativo.
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4 - O princípio da igualdade de armas, o seu alcance e sentido, foram já objecto de diversas decisões deste Tribunal no domínio do processo penal (cfr. os Acórdãos nºs 150/87, 398/89, 495/89, 496/89 e
356/91, Diário da República, II série, de, respectivamente, 18 de Setembro de
1987, 14 de Setembro de 1989, 28 de Janeiro de 1991, 1 de Fevereiro de 1990 e 8 de Janeiro de 1992) e tem merecido amplo tratamento doutrinal (cfr. por todos, Figueiredo Dias, 'Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal' in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1988, III, nº 3, pp. 29 e 30 e Cunha Rodrigues, 'Recursos', nas citadas Jornadas, pp. 381 e ss.).
O primeiro destes autores, pronunciando-se a propósito daquele princípio no domínio do processo penal, teve ensejo de escrever:
'Este princípio - que, de um ponto de vista jurídico-positivo, a doutrina e a jurisprudência dos países do Conselho da Europa retiram do disposto no art. 6º-1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - não pode, sob pena de erro crasso, ser entendido como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade matemática ou sequer lógica. Fosse assim e teriam de ser fustigadas pela crítica numerosas normas com bom fundamento - e, na verdade, ainda maior número delas referentes a faculdades concedidas ao arguido do que ao ministério público!'.
E logo a seguir:
'Torna-se assim evidente que a reclamada 'igualdade' de armas processuais - uma ideia em si prezável e que merece ser mantida e aprofundada - só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica. Com a consequência de que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada, como violadora daquele princípio de igualdade, quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária, como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinado ou dos referentes axiólogicos que o comandam. Não se trata aqui, de resto, de coisa diferente da interpretação mais correcta que se faz do próprio princípio jurídico-constitucional da igualdade. E não será outra razão decerto, senão a plena consciência do que aqui fica dito, que está na base da jurisprudência extremamente prudente e parcimoniosa que, sobre o aludido princípio da igualdade de armas, tem sido estabelecida tanto pela Comissão como pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem'.
Esta retórica argumentativa, pese embora a diferente natureza do tipo processual aqui em causa, serve ainda para iluminar o sentido último que se contém naquele princípio e evidenciar o relativismo da sua incidência.
Mas, como quer que seja, revestindo a actuação do Ministério Público nos incidentes de apoio judiciário em que não figura como requerente, a natureza de um órgão de justiça, estabelecendo-se o contraditório entre os requerentes e requeridos, e não entre os requerentes e o Ministério Público, que ocupa um plano diverso daquele, há-de dizer-se não poder legitimamente convocar-se aqui, a propósito da pronúncia emitida ao abrigo do artigo 28º do Decreto-Lei nº 387-B/87, uma qualquer violação do princípio da igualdade de armas, do mesmo modo que um qualquer afrontamento à independência dos tribunais.
Aliás, a propósito deste último princípio consagrado no artigo 206º da Constituição, não se vê que o juiz da causa ao apreciar e julgar o incidente de apoio judiciário, seja minimamente cerceado ou limitado no exercício da plenitude da função de julgar, nem em que medida ao parecer emitido pelo Ministério Público possa ser imputado tal efeito.
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III - A decisão
Face ao exposto decide-se:
a) Conceder atendimento à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, não tomando, consequentemente, conhecimento do objecto do recurso no que toca à questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, 2º, 15º,
16º e 17º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 28º do mesmo diploma legal, negando assim provimento ao recurso e confirmando, na parte impugnada, o acórdão recorrido.
Lisboa, 30 de Março de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa