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Processo nº 559/92
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
Nos presentes autos de recurso vindos do Tribunal da Relação de Lisboa em que são recorrentes A. e mulher, B. e recorridos C. e mulher, D., pelas razões constantes da exposição do relator de fls. 169 e seguintes, formulada nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, que se dá aqui por inteiramente reproduzida para os devidos e legais efeitos, e que a resposta dos recorrentes, a fls. 179 e seguintes, ao considerar irrazoável, insólita e imprevisível a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 65º da Constituição da República (proporcionando uma situação anómala e excepcional, a merecer juízo de tempestividade quanto à arguida questão de constitucionalidade) não logra afastar, dado o que na mesma foi ponderado sobre a matéria, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4(quatro) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Março de 1993
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa
Exposição preliminar a que se refere o artigo
78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82
1.- C. e mulher, D., instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, contra A. e mulher, B., acção especial de despejo para denúncia do contrato de arrendamento de um andar de prédio urbano sito naquela localidade, do qual os primeiros são proprietários e os segundos locatários, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 1096º do Código Civil (hoje, alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Regime de Arrendamento Urbano - RAU - aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro).
Os réus contestaram e os autos prosseguiram a sua tramitação normal, culminando com a sentença de 21 de Dezembro de 1990 que julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo os réus do pedido.
Recorreram os autores para o Tribunal da Relação de Lisboa e este Tribunal, por acórdão de 25 de Fevereiro de 1992, concedeu provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida, julgou a acção procedente, condenando os réus a despejarem o arrendado no termo da renovação, observado o prazo mínimo de três meses fixado no artigo 70º do RAU.
Reagindo, os apelados arguiram a nulidade do acórdão, nos termos dos artigos 716º e 668º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, ao que responderam os apelantes, mas a Relação, por acórdão de 12 de Maio seguinte, indeferiu a arguição por entender não ter havido conhecimento de questões não suscitadas pelas partes mas tão só qualificação jurídica diversa relativa aos factos provados, nos termos do artigo 664º daquele Código, desse modo não se verificando a apontada nulidade por excesso de pronúncia.
Então, A. e mulher interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 25 de Fevereiro, 'ao abrigo dos artºs.
79º/1/b e 80º/3 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro' [terão pretendido escrever artigo 70º, nº 1, alínea b)], recurso esse 'restrito à questão da constitucionalidade do artigo 1096º/1/a do C.C. (preceito actualmente revogado, mas reproduzido, no que releva, no artigo 69º/1/a, do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Novembro) na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, que preencheu o conceito indeterminado daquela norma - 'necessidade do prédio' - através da interpretação do artigo 65º/1 da Constituição da República Portuguesa, considerando este preceito constitucional, e por isso aquele preceito legal, como constituindo fonte de direitos subjectivos que atribuem automaticamente ao proprietário e senhorio o direito de dispor de um quarto de dormir para cada filho'.
Para os ora recorrentes, semelhante interpretação é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 65º, nº 1 e 13º da Constituição da República, não tendo - dizem - suscitado tal questão de constitucionalidade em peça processual anterior, uma vez que só naquele acórdão recorrido, pela primeira vez e como seu único fundamento, se interpretou a norma citada nesse sentido.
2.- Constitui jurisprudência reiterada e pacífica deste Tribunal que o pressuposto de admissibilidade do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, respeitante à suscitação 'durante o processo' da questão de inconstitucionalidade, deve ser entendido não num sentido puramente formal - tal que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até à extinção da instância - mas num sentido funcional, tal que essa invocação deva ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda da questão possa conhecer.
Por outras palavras, haverá de suscitar-se a questão de inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que respeita, entendimento este que decorre do facto de se estar perante um recurso para o Tribunal Constitucional o que, obviamente, pressupõe uma anterior decisão do tribunal recorrido sobre a questão objecto do recurso.
São inúmeros os Acórdãos que se têm pronunciado nesse sentido, como o ilustram, por todos, os nºs. 94/88, 439/91, 41/92 e 61/92, todos publicados no Diário da República, II Série, de 22/8/88, 24/4/92, 20/5/92 e 18/8/92, respectivamente, e os ainda inéditos nºs. 118/92 e 270/92.
Uma vez que o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e dado que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade de decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, o mesmo se dizendo quando o que está em causa é a interpretação normativa, há-de, ainda, entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade, como salientou o citado Acórdão nº 94/88, apoiado, de resto, em larga jurisprudência que cita e se reafirmou recentemente no Acórdão, ainda não publicado, nº 153/92.
Só assim não será se, por hipótese, excepcional e anómala, o interessado não teve oportunidade processual para, antes da decisão, equacionar a questão, como os mesmos arestos, reconhecem.
3.- No caso concreto, a suscitação de inconstitucionalidade é posterior à decisão recorrida, colocando--se, assim, o problema da sua tempestividade.
Nunca tendo equacionado problemas de constitucionalidade, os ora recorrentes só o fizeram posteriormente ao acórdão da Relação e isto porque, segundo afirmam, não o poderiam ter feito antes: é a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma do Código Civil pertinente que está em causa e, como semelhante interpretação só teve lugar na 2ª instância, não lhes era exigível outra actuação processual.
Resta saber se lhes assiste razão.
4.- Admita-se, por conveniência argumentativa, que, aos interessados, se deparou uma interpretação por parte da Relação que, por irrazoável, imprevisível ou insólita não lhes era legítimo prever.
Estar-se-ia, então - em princípio - perante um caso de todo anómalo e excepcional integrador de uma dessas situações de suscitação tardia mas relevante da questão de inconstitucionalidade.
A ser assim, no entanto, logo na primeira oportunidade - no incidente de arguição de nulidade - deveria ter sido colocada a questão, o que não sucedeu.
Com efeito, ao arguirem a nulidade do acórdão da Relação, pretendendo que se conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento - fundamento que, em conferência, a Relação afastou e que não é sindicável pelo Tribunal Constitucional - os apelados e ora recorrentes nada disseram a respeito de uma interpretação do preceito do Código Civil em causa eventualmente contrária à Constituição.
Só no último ponto da sua peça processual - o nº
5 - se diz algo que não pode sequer considerar-se como uma forma implícita de equacionar a questão, ao escrever-se:
'Nesta decisão está em causa um direito fundamental dos Apelados, muitas vezes já considerado 'um dos direitos sociais do cidadão e da sua família constitucionalmente consagrado'(págs, 120, 168) o que justifica a sua presente insistência na composição, que reputam justa, da lide'.
Trata-se de uma alusão críptica - nem sequer implícita - à norma do artigo 65º da CR (direito à habitação), sendo necessário acudir ao local citado da Revista de Legislação e de Jurisprudência para aí se retirar uma passagem de Antunes Varela, do seu estudo 'Emendas ao regime do contrato-promessa', onde se lê, a propósito, '[...] a habitação do promitente comprador que constitui um dos direitos sociais do cidadão e da sua família, solenemente garantido no artigo 65º da Constituição'.
Norma constitucional que, aliás, a Relação chamou à colação no acórdão revogatório da sentença da 1ª instância para justificar o direito dos apelantes, ora recorridos.
Observe-se que, de resto, só no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal surge clara alusão à interpretação inconstitucional do acórdão recorrido, invocando-se então, e de modo explícito, violação dos artigos 65º, nº 1, e 13º da Constituição.
5.- De qualquer modo, impendia sobre os ora recorrentes o ónus de avaliar as possíveis linhas de interpretação normativa susceptíveis de aplicação para resolver o caso submetido a julgamento - como se ponderou no já citado Acórdão nº 118/92 - actuando a seguir com o esquema de orientação processual mais adequado à defesa dos seus interesses.
Só a utilização de uma norma, ou de uma interpretação desta, de todo 'insólita' ou 'imprevisível' permitiria concluir pela irrazoabilidade de um juízo de prognose.
O que não se verifica.
Não só porque a Relação podia censurar, no recurso, a interpretação da lei efectuada na sentença e decidir em conformidade com o regime jurídico julgado adequado, com a independência que a lei outorga aos tribunais sobre indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - cfr., Código de Processo Civil, artigos 664º e 713º, nº 2 - e assim se entende jurisprudencialmente - e constitui exemplo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 1986, in - Boletim do Ministério da Justiça, nº 359, págs. 661 e segs. - mas ainda ao julgador incumbe resolver todas as questões suscitadas pelas partes sem que, para a solução adoptada, esteja vinculado às razões jurídicas por elas adiantadas, como se observou no acórdão da Relação de 12 de Maio último, citado, abonando-se em Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1981, págs. 56 e 58
(cfr., também, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 658).
A esta luz, revela-nos a leitura de arestos das Relações sobre a matéria, que a linha adoptada no acórdão recorrido não se pode qualificar de surpreendente, furtando-se a um juízo de prognose razoável, como o ilustram, entre outros, os acórdãos das Relações de Lisboa de 6 de Março de
1981, do Porto de 4 de Julho de 1978, 26 de Abril de 1979 e de 6 de Dezembro de
1983, e de Évora, de 13 de Outubro de 1983, publicados na Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, nos ano VI-tomo 2, pág. 162; ano III, tomo 4, pág. 1197; ano IV, tomo 2, pág. 479; ano VIII, tomo 5, pág. 223 e ano VIII, tomo 4, pág. 322.
6.- Emite-se, pelo exposto, parecer no sentido de não se admitir o presente recurso de constitucionalidade, por falta do requisito de a questão ter sido suscitada durante o processo [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82].
Ouçam-se as partes, nos termos e para os efeitos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Lisboa, 20 de Outubro de 1992
Alberto Tavares da Costa