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Proc. nº 474/88
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No 5º Juízo Cível da comarca do Porto, a A., instaurou acção de despejo contra B., alegando que a esta deu de arrendamento o andar de um imóvel sito na cidade do Porto, com destino à prática de actividades de litografia, publicidade, representação e centro de estudos com aulas e seus derivados, vindo porém o local arrendado a ser utilizado para fim diverso daquele a que contratualmente se achava destinado, o que constitui motivo legal de resolução do arrendamento, em conformidade com o disposto no artigo 1093º, nº 1, alínea b), do Código Civil.
Peticionou o decretamento da resolução do contrato de arrendamento e a condenação da ré no despejo imediato das dependências locadas.
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2 - Por sentença de 14 de Julho de 1987, foi julgada procedente a excepção de caducidade invocada pela ré relativamente ao exercício do direito, nos termos do artigo 1094º do Código Civil e do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1984, vindo esta, consequentemente, a ser absolvida do pedido.
Apelou a autora para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando, além do mais, a inconstitucionalidade daquele assento e pedindo a revogação da sentença recorrida e o decretamento da resolução do arrendamento em causa.
Por acórdão de 23 de Junho de 1988, depois de se ponderar que o 'assento que interpretou o artigo 1094º do Código Civil tem de ser respeitado, com o valor atribuído no artigo 2º do mesmo diploma' negou-se provimento ao recurso e confirmou-se a sentença apelada.
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3 - Não conformada com o assim decidido, trouxe a autora recurso ao Tribunal Constitucional sob a invocação do disposto nos artigos 69º, 70º, nº 1, alínea b) e 78º, nº 4, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Nas alegações depois oferecidas, sustentou-se que a aplicação do assento de 3 de Julho de 1984, há-de reputar-se inadmissível, porquanto não constitui fonte de direito como se infere do disposto no artigo
115º, nº 5, da Constituição, cuja doutrina representa um corolário do princípio da separação de poderes estabelecido no artigo 114º, e que, obviamente, 'inibe os tribunais de se imiscuirem no campo do legislativo e vice-versa'.
Deste modo, o acórdão recorrido, ao lançar mão do assento aplicou norma inconstitucional, com ofensa do preceituado nos artigos
114º, 115º, nº 5, 207º e 277º, nº 1, todos da Constituição.
Por ser turno, a recorrida, em contra-alegação, depois de defender a inexistência de qualquer inconstitucionalidade, pronunciou-se no sentido da confirmação do acórdão impugnado.
Os autos correram os vistos e, antes de se iniciar o julgamento, foram objecto de nova distribuição por força da alteração da composição do elenco dos juízes do Tribunal Constitucional, que teve lugar em Agosto de 1989.
E, com base no disposto no artigo 79º-A, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, por despacho do Presidente do Tribunal, de 21 de Março de 1990, foi determinado que o respectivo julgamento se fizesse com a intervenção do plenário do Tribunal.
Passados os vistos de todos os juízes e apresentado um memorando, iniciou-se o julgamento do processo verificando-se depois, por vencimento, substituição do relator.
Cumpre agora, na sequência do exposto, apreciar e decidir.
E apreciar e decidir, concretamente, se os assentos, tal como na actualidade se configuram no nosso ordenamento jurídico, dispõem de legitimidade constitucional.
*///* II - O instituto dos 'assentos' e algumas vicissitudes da sua história
1 - Com os assentos que os Supremos Tribunais funcionando em tribunal pleno, podem emitir para resolver um 'conflito de jurisprudência' oferece-nos o nosso direito, no entendimento de Castanheira Neves, O Instituto dos 'Assentos' e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, 1983, p. 2, um instituto jurídico original e dificilmente compreensível.
Para este Autor, o nosso pensamento jurídico 'tem efectivamente pressentido nos assentos um instituto pertubadoramente problemático, como desde logo o comprova o tipo de atenção, e mesmo a preocupação, de que tem sido objecto, e que não pode dizer-se comum à generalidade dos institutos jurídicos que, como este nosso, apresentam a natureza de um simples instrumento técnico dirigido à resolução de um problema estritamente jurídico. Basta dizer que, para além do extenso debate que suscitou nos trabalhos legislativos da sua instituição definitiva e da particular consideração que nunca deixou de merecer à preparação de todas as reformas do nosso direito processual, desde 1926, e a acrescentar ainda aos numerosos estudos doutrinários que o tiveram por tema, já em reflexão crítica, já em análise simplesmente dogmática, foram inclusivamente os assentos convocados às instituições políticas, ao ocupar-se a Assembleia Nacional expressamente deles com a apresentação e a discussão de um aviso prévio, em
1951. Com o que pode dizer-se terem sido projectados a um plano que ultrapassa o do domínio apenas técnico-jurídico, denunciando-se talvez já assim que afinal o instituto tem a ver com algo mais do que como simples juridismo da especializada dogmática dos juristas, e que antes nele vão implicados valores jurídicos fundamentais. Só que, não obstante tudo isto, cremos não ser temerário reafirmar que o verdadeiro sentido dos assentos continua por esclarecer em pontos decisivos, uma vez que o nosso pensamento jurídico, dirigindo-se-lhes em termos hesitantes, quando não mesmo com objectivos contraditórios, e sobretudo sem a atitude metodologicamente mais adequada, não logrou ainda compreender a sua exacta natureza e significado, os quais na verdade lhe têm escapado' (cfr. ob. cit., pp. 22 e ss).
Na verdade, a tarefa de afirmar qual seja a verdadeira natureza e o exacto sentido e alcance deste instituto apresenta-se como algo de particularmente complexo, ao que acresce a circunstância de ao longo do seu percurso histórico os assentos terem conhecido e apresentado fisionomias diversas, fruto do influxo das vicissitudes de várias ordens que atravessaram os quadros jurídico-normativos em que se foram inserindo.
Assim, tem-se como imprescindível à compreensão dos valores jurídicos que vão implicados nos assentos e ao modo como concretamente os assume e se propõe realizá-los, empreender uma abordagem prévia do seu devir histórico, desde as suas primícias até à estrutura normativa actualmente em vigor.
Vejamos então.
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2 - Alguns têm reconduzido a ancestralidade dos assentos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso para o tribunal pleno, aos antigos assentos da Casa da Suplicação, já conhecidos na Segunda Ordenação, e tratados depois com desenvolvimento nas Ordenações Filipinas e em diversa legislação extravagante.
De facto, no § 5º, do título V, do livro 1º, destas Ordenações, a propósito dos desembargadores daquela casa, dispunha-se assim:
'E havemos por bem, que quando os Desembargadores, que forem no despacho de algum feito, todos, ou alguns deles tiverem alguma dúvida em alguma nossa Ordenação do entendimento dela, vão com a dúvida ao Regedor; o qual na Mesa Grande com os Desembargadores, que lhe bem parecer a determinará, e segundo o que aí for determinado, se porá a sentença. E a determinação, que sobre o entendimento da dita Ordenação se tomar, mandará o Regedor escrever no livro da Relação, para depois não vir em dúvida' (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol., VI, Coimbra, 1981, p. 234).
Esta atribuição veio a ser confirmada e reforçada pela Lei de 18 de Agosto de 1769, denominada de Lei da Boa Razão 'porque refugou as Leis Romanas, que em Boa Razão não forem fundadas' a qual visava precaver
'com sabias providências as interpretações abusivas, que offendem a magestade das Leis, desauttorizão a reputação dos Magistrados e tem preplexa a justiça dos litigantes, de sorte que no direito, e domínio dos bens dos vassallos não possa haver aquella provável certeza, que só póde conservar entre elles o publico socego', procurando evitar-se através da acção uniformizadora e correctiva dos assentos as injustas demandas 'a que muitas vezes são animadas por frívolos pretextos tirados das extravagantes subtilezas, com que aquelles, que as aconselhão, e promovem, querem temerariamente entender as Leis mais claras, e menos susceptíveis de intelligências, que ordinariamente são oppostas ao espírito dellas, e que nellas se acha litteralmente significado por palavras exclusivas de tão sediciosas, e prejudiciaes cavillacões' (Corrêa Telles, Comentario Crítico à Lei da Boa Razão, Auxiliar Jurídico, Apêndice às Ordenações Filipinas, vol. II, 1985, p. 445).
Com o advento do liberalismo e da Constituição de
1822, o sistema político e juridico-normativo em que se estruturava a monarquia absolutista foi profundamente alterado, não deixando o novo ideário sobre a filosofia do Estado de se repercutir no sistema judiciário e, como inevitável consequência, no instituto dos assentos, talqualmente este então se configurava.
A Constituição de 1822 previa no seu artigo 191º, a existência, em Lisboa, de um Supremo Tribunal de Justiça, composto de Juízes letrados, nomeados pelo Rei, mas, por força das convulsões políticas e militares que atravessaram a instalação e consolidação do regime liberal e do monarquismo constitucional, aquele Tribunal só veio a ser criado e estruturado pelos decretos de 16 e 19 de Maio de 1832, sendo instalado, em substituição da Casa da Suplicação, em 23 de Setembro de 1833, sob a presidência de José da Silva Carvalho, figura emérita da Revolução de 1820 e primeiro Ministro da Justiça do sistema político então instituído.
Sob o influxo das ideias liberais e da doutrina da separação dos poderes do Estado a que a Revolução Francesa e a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte haviam dado curso universal, a Casa da Suplicação, em 28 de Março de 1822, já em pleno período liberal, mas em data anterior à promulgação da Constituição de 1822, por 'deliberação tomada em Mesa', considerou 'não poder esta, depois da nova ordem de cousas, tomar Assentos sobre a intelligência de qualquer Lei, sem huma nova Delegação do Poder Legislativo', pois que, 'os Assentos contém decisões legaes, e constituem parte da nova Legislação' e por isso pertencem 'à competência privativa e própria do Poder Legislativo' que na vigência da Ordenação residia nos reis, mas, porque,
'as cousas estão mudadas' e tal poder foi reassumido pela Nação em toda a sua plenitude e integridade, deixou a Casa da Suplicação de dispôr de competência para 'tomar Assentos', devendo 'as Partes e os Juízes nos casos duvidosos recorrer ao mesmo Poder' (cfr. Auxiliar Jurídico, cit., vol I, pp. 317 e 318).
Mas, não obstante esta deliberação, no período compreendido entre 24 de Fevereiro de 1824 e 30 de Agosto de 1832 (data esta em que foi tirado o seu último assento), a Casa da Suplicação proferiu ainda 13 assentos, pois que a pertubação e instabilidade política e social instaladas no País conduziram, na sequência da Vilafrancada, à revogação da Constituição de
1822 e à restauração do regime absoluto, havendo a Lei de 4 de Junho de 1824 declarado em pleno vigor as leis tradicionais do reino, que, não obstante a primeira vigência da Carta Constitucional entre 1826 e 1828, foram repostas nesta última data, que corresponde à proclamação como rei de D. Miguel, e com ele do regime absoluto.
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3 - Com a desaparição da Casa da Suplicação e a entrada em funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça, cessou a aplicação e operatividade do instituto dos assentos, não contendo os diversos diplomas que entretanto vieram a ser publicados no âmbito do direito judiciário em ordem a revogar e substituir o sistema do antigo regime - Reforma Judiciária de 1832, Nova Reforma Judiciária de 1836 e Novíssima Reforma Judiciária de 1841 - assim como o Código de Processo Civil de 1876, qualquer previsão relativa à competência daquele Tribunal para proferir assentos, nem se instituindo sequer um qualquer instrumento processual destinado a assegurar a uniformização da jurisprudência.
'Partia-se do pressuposto de que, colocando no ponto mais alto da hierarquia judicial um órgão destinado a conhecer somente de questões de direito, dada a supremacia e autoridade desse órgão se chegaria, pouco a pouco, à uniformização da jurisprudência. O Supremo diria, a propósito de cada caso particular, em que sentido devia a lei ser interpretada e aplicada; os tribunais inferiores teriam de acatar as determinações do Supremo em relação ao caso em litígio; e era natural e presumível que também as seguissem em casos semelhantes que de futuro se apresentassem. Obter-se-ia, assim, pela acção espontânea do mecanismo judiciário, a desejada uniformidade de jurisprudência' (cfr. Alberto dos Reis, ob. cit., p. 235).
Mas, a breve trecho se veio a verificar que, em lugar da desejável jurisprudência uniforme, existia uma jurisprudência variável, flutuante e incerta, alimentada pela tendência individualista da liberdade de opinião dos magistrados judiciais, pouco atreitos a uma apertada disciplina de colegialidade interpretativa das leis.
E porque se considerou que a incerteza da jurisprudência representava um mal grave, traduzido na incerteza do direito, foram ensaiadas diversas medidas tendentes a modificar ou atenuar tal estado de coisas, vindo porém, todas elas, a revelar-se infrutíferas ou de vida efémera
(Portaria de 27 de Outubro de 1898; Lei nº 706, de 16 de Junho de 1917; Decreto nº 4620, de 13 de Julho de 1918).
Cumpre porém destacar, no quadro das soluções propostas com o fito de se lograr uma certa unidade jurisprudencial, o Decreto nº 4620, publicado durante o Consulado Sidonista, que instituiu um regime diverso daquele que viria a ser consagrado sob a orientação de Alberto dos Reis mas que, segundo o entendimento de Castanheira Neves, era 'bem mais avisado do que o instituto dos assentos' (cfr. ob. cit., p. 192).
No preâmbulo deste diploma, obra do Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça Alberto Osório de Castro, então exercendo as funções de Secretário de Estado da Justiça, começava por se assinalar ser propósito do legislador 'assegurar a unidade da jurisprudência, sem a condenar a uma fixidez que lhe tire todas as condições da acomodação a novas necessidades, tendências e correntes de ideias', para logo a seguir se afirmar que 'o sistema, que aliás nunca adquiriu grande eficácia dos Assentos da Casa da Suplicação, mal se acomodaria ao actual regime de divisão de poderes. A dificuldade de distinguir praticamente até onde vai a interpretação e onde começa a revogação da lei e a legislação nova, e também a falta de sanção eficaz para qualquer distinção que a esse respeito se faça, aconselham se reserve a função de interpretar autenticamente as leis para o Poder a quem incumba estabelecê-las e revogá-las'. E depois de se considerar 'inaceitável o sistema que dá competência para estabelecer a interpretação autêntica a um Tribunal superior' concluía-se naquele relatório 'que o melhor meio de se conseguir a unidade progressiva da jurisprudência consiste em se assegurar a manutenção da jurisprudência do Supremo Tribunal, enquanto ele não a puser de parte por via de decisão proferida em Tribunal Pleno. Assim, sem se fazer sair o Poder Judicial das funções que lhe são próprias, evitar-se-á a instabilidade da doutrina dos Tribunais com todas as suas consequências perturbadoras'.
E nesta linha de entendimento, o diploma prescrevia que, em princípio, as Relações e o Supremo Tribunal de Justiça se achavam vinculados à 'última jurisprudência estabelecida' por este último tribunal, para o qual haveria sempre recurso das decisões que tanto aquelas como o próprio Supremo Tribunal - salvo quanto ás decisões por este tiradas em tribunal pleno e com vista de todos os juízes - proferissem em sentido contrário a tal jurisprudência (artigos 1º e 2º).
O Supremo Tribunal de Justiça, pelo tribunal pleno, julgava tais recursos podendo 'afastar-se da última jurisprudência que haja estabelecido' (artigo 3º).
Deste modo, através da intervenção qualificada do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência da instituição do recurso obrigatório para defesa da 'última jurisprudência estabelecida' intentava-se garantir a uniformidade da jurisprudência sem pôr em causa a sua 'unidade progressiva'.
Mas, como faz notar Castanheira Neves (ob. cit., p.
193), este 'sábio regime a que só faltou a devida compreensão por parte do nosso pensamento jurídico para que pudesse ter obtido o êxito que merecia' foi revogado pelo Decreto nº 5644, de 10 de Maio de 1919, logo após a morte de Sidónio Pais.
Entretanto, a Ditadura Militar instaurada após o 28 de Maio de 1926, confiou a Alberto dos Reis a tarefa de reformar o direito processual civil, havendo na sequência da apresentação do respectivo projecto, sido aprovado o Decreto nº 12353, de 22 de Setembro de 1926, em cujo relatório preambular se escreveu assim:
'(...) tornou-se sempre definitivo o julgamento do Supremo Tribunal de Justiça, e finalmente adoptaram-se providências no sentido de se assegurar a uniformização da jurisprudência, declarando-se obrigatória a doutrina dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidas em tribunal pleno'.
Com efeito, o artigo 66º daquele diploma veio instituir um sistema de recurso inominado que, visando contribuir para a uniformização da jurisprudência, intentava evitar os dois perigos com que aquele objectivo se pode confrontar: o da imobilização e o da instabilidade. E, em conformidade com aquele relatório, 'o decreto procurou evitar esses dois escolhos; procurou dar estabilidade à jurisprudência sem cair no defeito da estagnação e da imutabilidade'.
Nas palavras do Autor do projecto o sistema então instituído poderia caracterizar-se do seguinte modo:
'Perante um conflito de jurisprudência, criado por soluções opostas da mesma questão de direito por parte do Supremo, o litigante vencido no acórdão ainda não transitado em julgado tem o direito de interpôr recurso, fundado na oposição de acórdãos. Este recurso há-de ser julgado em tribunal pleno; e a jurisprudência que em tal julgamento for estabelecida fica revestida, para o futuro, de força obrigatória tanto para os tribunais inferiores, como para o próprio Supremo, enquanto não for modificado por outra, igualmente emitida em tribunal pleno' (cfr. Alberto dos Reis, ob. cit., pp. 237 e 238 e Breve estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial, 2ª ed., Coimbra, 1929, pp. 687 e ss.).
A circunstância de os acórdãos tirados pelo tribunal pleno poderem ser alterados pelo tribunal deles emitente, não retirando a necessária estabilidade à uniformidade jurisprudencial que se intentava alcançar, afastava o perigo da sua estagnação e imutabilidade.
Esta autoreversibilidade mantida no Código de Processo Civil de 1939, serviu de suporte à posição sempre mantida por Alberto dos Reis no sentido de que 'jurisprudência uniforme não quer dizer jurisprudência imutável', já que 'com a formulação de assentos investidos de força obrigatória a jurisprudência não se asfixia nem se imobiliza (...) porque os assentos podem ser revistos e alterados, quando se reconheça que deixaram de corresponder às necessidades e interesses da ordem jurídica' (cfr. A função do Supremo Tribunal de Justiça, Studi in onore de Redenti, vol. 1º, pp. 401 e 402 e Anotado, cit., p. 240).
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4 - Com as alterações introduzidas pelos Decretos nºs
13379, de 25 de Junho de 1927, 18109, de 20 de Março de 1930 e 21287, de 26 de Maio de 1932 (este último deu nova redacção ao artigo 1176º do Código de Processo Civil de 1876) o regime instituído pele Reforma de 1926, veio a transitar quase integralmente para o Código de Processo Civil de 1939.
E, muito embora em nenhum daqueles diplomas se fizesse qualquer referência aos assentos como denominação específica de tais decisões, ali unicamente apelidadas de 'acórdãos proferidos em tribunal pleno'
(cfr. artigos 66º, §2º do Decreto nº 12353 e 1176º, §§6º e 7º do Código de Processo Civil de 1876, na redacção dada pelo Decreto nº 21287), o certo é que, a partir de 1927, concretamente, de 16 de Dezembro de 1927, o Supremo Tribunal de Justiça passou a proferir assentos, levando tal data o primeiro assento tirado por este Tribunal (cfr. A. Simões Correia, Assentos do Supremo Tribunal de Justiça, Lisboa, 1964).
Semelhante procedimento foi contestado por Fernando Martins de Carvalho, (cfr. 'Algumas tendências dos nossos tribunais - os chamados `assentos' do Supremo', O Direito, Ano 68º, nºs 1 e 2, Janeiro e Fevereiro de 1936, pp. 3 e ss. e 34 e ss.), que, a respeito desta matéria, discorreu assim:
'Certas veleidades legislativas de pequena parte da nossa jurisprudência influiram, sem dúvida nenhuma, no espírito do ilustre Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, que propôs se desse a denominação de assentos aos acórdãos proferidos pelo tribunal pleno nos termos do novo texto do art. 1176 do Código de Processo Civil. Foi a designação, condescendente ou distraidamente, aceita pelos seus ilustres colegas, e assim tem vingado um pseudo-sistema, que ou desnatura completamente o alcance dos antigos assentos da Casa da Suplicação, ou pelo contrário, desvirtua de todo o significado dos acórdãos do tribunal pleno.
Os velhos assentos eram interpretação autêntica, legislativa, e tinham, como tais, força de lei.
Lavravam-se para o caso, depois, `não vir em dúvida' (Ord. Fil., I, Tit. 3,
§ 5º; Ord. Man., I. V., Tit. 58, § 1º). Não julgavam `o direito das partes no particular de cada uma delas, mas, sim, a inteligência geral e perpétua de Lei em comum benefício' (Lei de 18 de Agosto de 1769, § 2º). `Constituiam leis inalteráveis para sempre se observarem como tais debaixo das penas ... estabelecidas, (citada lei, § 4º). Seriam observados como leis (§5º).
Os acórdãos do tribunal pleno, nos termos do citado art. 1176, não têm força de lei, não são de modo nenhum interpretação autêntica ou legislativa. A diferença entre estes acórdãos e os velhos assentos, é portanto, capital; confundi-los é desconhecer de todo em todo o papel da Casa da Suplicação'.
E mais adiante:
'Ao passo que os assentos da Casa da Suplicação tinham força legislativa, os acórdãos do Tribunal Supremo são somente obrigatórios para os tribunais, constituem o que podemos chamar jurisprudência qualificada que aliás o Supremo Tribunal pode em certas condições alterar. Não são obrigatórios senão para os tribunais, e somente de certo modo e dentro de certos limites. Este carácter de jurisprudência qualificada têm-no, porém, de alguma maneira também os outros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, pois a oposição, que se lhes faça em novo acórdão, dá lugar ao recurso especial, que o citado artigo 1176 regula.
O Supremo Tribunal obedece aos acórdãos do Tribunal pleno, enquanto não resolva alterá-los. Os outros tribunais devem também obedecer-lhes mas, quando não o façam, bem podem as decisões ser-lhes confirmadas pelo Supremo, se este resolver alterar a jurisprudência estabelecida pelo tribunal pleno. Teoricamente, pode este tribunal alterar constantemente as suas decisões. E, se
é tão frágil a obrigatoriedade a respeito das decisões do tribunal pleno, ainda no campo restrito dos tribunais, fora dêstes não são de modo nenhum obrigatórios. As companhias de seguros podem, por exemplo, deixar de obedecer ao acórdão do tribunal pleno sobre o valor das minutas como apólices: na maior parte dos casos, nem sequer se levantarão sobre o assunto questões, que sejam levadas aos tribunais, e quando lá sejam propostas, bem pode o Supremo alterar o acórdão primitivo do tribunal pleno. Notários, conservadores do registo predial ou do registo comercial, podem desatender os acórdãos do Pleno, e, neste caso, ou não chegam a intervir os tribunais, ou, intervindo, podem vir a ser alteradas as decisões de semelhantes julgados.
A faculdade dada ao tribunal pleno de alterar a jurisprudência de um acórdão proferido por ele próprio mostra claramente não se tratar de interpretação autêntica. Esta teria força de lei; e revogar uma lei, embora interpretativa, envolveria para o Supremo papel legislativo da mais inverosímil amplitude'.
E por fim:
'Tal é a força dos hábitos que o projecto do Código de Processo Civil do eminente jurisconsulto, professor dr. José Alberto dos Reis, com injustificada condescendência, acolheu a costumeira de se chamarem assentos aos acórdãos do tribunal supremo (artigo 786 e 787).
Tudo indica a conveniência de se acabar com esta confusão'.
É certo que, já anteriormente ao início da vigência do Código de Processo Civil de 1939, o artigo 6º, nº 9, do Decreto nº 22257, de
25 de Fevereiro de 1933, que cometera ao Tribunal de Contas competência para
'fixar jurisprudência quando haja um acórdão ou decisão que esteja em oposição com um acórdão ou decisão sobre o mesmo ponto de direito' prescrevia que 'o respectivo assento' haveria de ser publicado no Diário do Governo.
Simplesmente, como assinala Martins de Carvalho (ob. cit., p. 143) - para quem a utilização do vocábulo se deve filiar na costumeira estabelecida com respeito aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -, o diploma relativo ao Tribunal de Contas, para além de não regular minimamente a forma e o processo a que há-de obedecer tal decisão, não fala em estabelecer interpretação autêntica, mas sim em fixar jurisprudência, o que pode traduzir realidades bem diversas.
Aliás, o Código de Processo Penal de 1929, prevendo embora nos artigos 668º e 669º, por visível influência da Reforma de 1926, um recurso para o tribunal pleno em ordem à uniformização da jurisprudência, não utilizava o designativo de assento para as decisões assim tiradas.
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5 - Como quer que seja, o Código de Processo Civil de
1939, a partir do recurso de uniformização de jurisprudência criado pelo artigo
66º do Decreto nº 12353, instituiu nos artigos 763º a 770º, com idêntica finalidade, um recurso que denominou de recurso para o tribunal pleno e recuperou na sua expressão nominativa o velho instituto da Casa da Suplicação.
A interposição deste recurso estava condicionada pela verificação de diversos requisitos: (a) existência de oposição entre acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão de direito; (b) tal oposição haveria de verificar-se no domínio da mesma legislação; (c) os acórdãos opostos deveriam ter sido proferidos em processos diferentes ou em incidentes diferentes do mesmo processo; (d) o acórdão anterior invocado como fundamento do recurso já deveria ter transitado em julgado (artigo 763º).
Admitido o recurso, o recorrente apresentaria alegação tendente a demonstrar que entre o acórdão recorrido e o acórdão anterior mencionado no requerimento existia a oposição exigida por lei (artigo
765º).
Decidida a questão preliminar no sentido da existência de oposição entre os acórdãos, os autos seguiam para alegações das partes, vista do Ministério Público e vistos dos juízes (artigo 767º).
Sobre o julgamento do conflito e a força do assento regia o artigo 768º, e sobre a alteração do assento dispunha o artigo 769º.
Estes normativos, cuja formulação importa reter, prescreviam assim:
Artigo 768º
(Julgamento do conflito. Força do assento)
No julgamento do recurso intervirão, pelo menos, quatro quintos dos magistrados que compõem as secções do tribunal.
Sendo vários os fundamentos do recurso, o tribunal conhecerá sempre de todos os pontos em que haja oposição de julgados. O Presidente terá voto de desempate.
A doutrina assente pelo acórdão que resolver o conflito de jurisprudência será obrigatória para todos os tribunais enquanto não for alterada por outro acórdão proferido nos termos do artigo seguinte.
§ 1º Desde que haja conflito de jurisprudência, deve o tribunal resolvê-lo e lavrar assento, ainda que a resolução do conflito não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litígio por ter de subsistir a decisão do acórdão recorrido qualquer que seja a doutrina do assento.
§ 2º O acórdão que resolver o conflito será publicado imediatamente na 1ª série do Diário do Governo e na Coleção Oficial. O Presidente enviará ao Ministro da Justiça uma cópia desse acórdão, acompanhada da resposta do Ministério Público, dos acórdãos anteriores invocados como fundamento do recurso e de quaisquer considerações que entenda dever fazer.
Artigo 769º
(Alteração do assento)
Quando em julgamentos posteriores do Supremo Tribunal de Justiça a maioria dos juízes que intervierem na decisão se pronunciar pela alteração da jurisprudência fixada pelo tribunal pleno, o processo será concluso a outros juízes até se vencer, por sete votos, a observância da jurisprudência estabelecida ou a necessidade da alteração.
Neste último caso o Presidente ordenará que o processo seja continuado com vista aos restantes juízes e a questão será depois decidida em tribunal pleno. Se a final prevalecer a alteração da jurisprudência, lavrar-se-á novo assento, a que é aplicável o disposto no artigo anterior e seus parágrafos.
Como informa Alberto dos Reis (cfr. Anotado, cit., pp
240 e ss), o sistema de uniformização da jurisprudência proposto no texto do projecto e inspirado no artigo 66º do Decreto nº 12353, foi objecto de viva e larga discussão na Comissão Revisora.
Desenharam-se ali três correntes: (1ª) eliminação do recurso para o Tribunal Pleno, tal como o admitia o Decreto nº 12353 e constava do projecto; (2ª) manutenção do recurso, nos termos do projecto; (3ª) admissão do recurso, mas suspensão da força obrigatória do assento enquanto este não fosse ratificado pela Assembleia Nacional.
A terceira corrente, apresentada e defendida pelo Prof. Barbosa de Magalhães, foi a que obteve a maioria dos sufrágios, só não logrando cumprimento por via da consideração de que, não dispondo a Assembleia Nacional de competência para conceder ou negar ratificação aos assentos, como igualmente a Câmara Corporativa para sobre eles emitir parecer, a norma que viesse a traduzir tal competência não deixaria de sofrer de inconstitucionalidade.
Assim, apesar de Alberto dos Reis ter considerado 'a sugestão de se sujeitar o Assento à ratificação da Assembleia Nacional como interessante' (cfr. Anotado, cit., p. 244), a comunicação ao Parlamento para efeitos de ratificação, acabou por ser substituída pela remessa ao Ministro da Justiça, por parte do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, da cópia do acórdão que resolver o conflito de jurisprudência, bem como de outros elementos documentais e de 'quaisquer considerações que entenda dever fazer'.
Acabou assim por se adoptar um regime substancialmente idêntico ao que já vigorava, assumindo-se porém de forma expressa, a designação de assento para identificar a doutrina estabelecida pelo acórdão que resolver o conflito de jurisprudência.
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6 - O Código de Processo Civil de 1961, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961, e ainda hoje em vigor, relativamente ao recurso para o tribunal pleno e à uniformização da jurisprudência, na parte que aqui importa considerar, manteve, na sua quase globalidade, o sistema instituído pelo Código de Processo Civil de 1939, apenas merecendo ressalva a eliminação da faculdade concedida ao Supremo Tribunal de Justiça de alterar a doutrina fixada nos seus assentos.
Muito embora a Comissão encarregada de proceder à revisão do Código de 1939, se tenha pronunciado no sentido de dever subsistir uma norma que permitisse a alteração dos assentos, se bem que dentro de um quadro processual diverso do ali previsto no artigo 769º (cfr. Projectos de Revisão do Código de Processo Civil, II, Recursos ordinários e recursos para o Tribunal Pleno, Edição Oficial, 1958, pp. 74 e ss.), o certo é que tal norma, por haver sido rejeitada por Antunes Varela, então Ministro da Justiça, não veio a figurar na versão final.
Nas 'Observações Ministeriais ao Projecto de Revisão do Código de Processo Civil', Boletim do Ministério da Justiça, nº 123, p. 198, em nota ao futuro artigo 769º, então subordinado à epígrafe (publicidade e força do assento), pode colher-se o seguinte comentário:
'A disposição que permite a alteração dos assentos (antigo art. 769º) continuou, como o autor do projecto do Código já tinha previsto, a ser praticamente letra morta. E não vale a pena mantê-la.
Se o Supremo, o Ministério Público, o Ministério da Justiça ou a Assembleia Nacional entenderem que convém rectificar a doutrina do assento, o que devem é suscitar a publicação de nova disposição legislativa através da qual consigam o resultado pretendido.
O que estava no art. 769º não funcionava, como era fácil de prever'.
Deste modo, e com base na sumária justificação assim aduzida, eliminou-se a faculdade de modificação dos assentos, destruindo-se concomitantemente a possibilidade de se atingir uma 'unidade progressiva da jurisprudência' ou, nas palavras de Alberto dos Reis, uma jurisprudência não imutável, em que os assentos possam ser revistos e alterados, 'quando se reconheça que deixaram de corresponder às necessidades e interesses da ordem jurídica'.
Com esta solução, no entendimento de outro Autor,
'deixou de se atender por meio jurisprudencial à actualização da ordem jurídica reflectida na lei, o que temos por muito de deplorar; e uma lei, uma vez declarada constitucional ou inconstitucional, não poderá ser objecto de diferente juízo de validade. Lavrar um assento será para o Supremo tecer uma malha, donde não poderá mais tarde sair' (cfr. Jorge Miranda, Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Lisboa, 1968, p. 200).
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7 - Veio entretanto a ser aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, o Código Civil ainda hoje em vigor, o qual dispõe no artigo 2º, do modo seguinte:
Artigo 2º
(Assentos)
Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral.
Em face da disposição genérica que, relativamente aos assentos, neste preceito se contém, tornou-se inútil, por redundante, o nº 2 do artigo 769º do Código de Processo Civil de 1961, que estabelecia a obrigatoriedade dos assentos em relação a todos os tribunais, e daí que houvesse sido eliminado na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
47690, de 11 de Maio de 1967.
A primeira formulação deste preceito, concebida por Manuel de Andrade, era diferente da que veio a prevalecer. Rezava assim: 'Nos casos e termos declarados na lei, podem os tribunais fixar doutrina cuja força obrigatória não seja circunscrita à espécie vertida'.
E o seu autor, justificava este texto, nos seguintes termos: 'Com o disposto no art. 2º quis-se ressalvar os Assentos do S.T.J. e a possibilidade de outras decisões judiciais com eficácia análoga, principalmente em consequência da admissão de quaisquer formas de processo colectivo (cfr. Fontes de Direito - Vigência, interpretação e aplicação da Lei, Boletim do Ministério da Justiça, nº 102, pp. 141 e ss.).
A norma do artigo 2º do Código Civil veio resolver uma das questões mais controvertidas pela doutrina quanto aos assentos - a sua eficácia ou concreto valor jurídico face à única norma que então regia esta matéria (artigo 769º, nº 2, do Código de Processo Civil) - em termos de consagrar a sua obrigatoriedade jurídica geral e não apenas uma obrigatoriedade reconduzida a todos os tribunais.
E por esta forma, de modo claro e expresso, o legislador veio atribuir aos assentos uma obrigatoriedade jurídica-geral, uma
'vinculação normativo-jurídica própria das normas gerais do sistema jurídico'.
No entendimento de Jorge Miranda (cfr. ob. cit., p.
201), 'afigura-se cristalino que outro, [senão a dilatação da sua eficácia], não foi o propósito do legislador, colocando o assento ao lado dos usos (artigo 3º) e da equidade (artigo 4º) entre as fontes mediatas de Direito, em face da lei e das normas corporativas, que são as fontes imediatas (artigo 1º) e eliminando o nº 2 do artigo 769º do Código de Processo Civil, que, como já dissemos, falava em doutrina obrigatória para todos os tribunais'
Aqui chegados, e encerrando o percurso seguido pelo instituto dos assentos na sua longa sobrevivência secular, é tempo de ensaiar, uma síntese conclusiva que faça avultar os pontos mais marcantes do seu desenvolvimento histórico.
O perfil de tal síntese poderá ser assim delineado:
(a) Os assentos da Casa da Suplicação constituíam interpretação autêntica das leis e tinham força legislativa; (b) Desde a sua instituição em 1832, até à entrada em vigor do Decreto nº 12353, de 22 de Setembro de 1926, o Supremo Tribunal de Justiça não dispunha de competência para proferir assentos, mas tão somente para uniformizar a jurisprudência, através da interpretação e aplicação da lei nos casos concretos que lhe eram submetidos; (c) O artigo 66º deste
último diploma instituiu um recurso inominado de uniformização de jurisprudência para o pleno do Supremo Tribunal de Justiça; (d) A jurisprudência estabelecida por estes acórdãos era obrigatória para os tribunais inferiores e para o Supremo Tribunal de Justiça enquanto não fosse alterada por outro acórdão da mesma proveniência; (e) Apesar de o Decreto nº 12353 não atribuir, explícita ou implícitamente, a estes acórdãos a designação de assentos, o Supremo Tribunal de Justiça assim passou a chamá-los a partir de Dezembro de 1927; (f) O Código de Processo Civil de 1939 consagrou a denominação de assentos para os acórdãos proferidos pelo pleno do Supremo Tribunal de Justiça, mantendo no mais o regime do Decreto nº 12353; (g) O Código de Processo Civil de 1961, eliminou a faculdade de alteração dos assentos pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça;
(h) O artigo 2º do Código Civil de 1967, veio atribuir à doutrina fixada pelos assentos força obrigatória geral; (i) O Decreto-Lei nº 47690, de 11 de Maio de
1967, na redacção dada ao artigo 769º nº 2, do Código de Processo Civil, eliminou a referência que ali se fazia a respeito da eficácia dos assentos.
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III - A controvérsia doutrinal sobre a caracterização jurídico-dogmática dos assentos.
1 - À inteira compreensão da matéria em apreço importa, para além do visionamento histórico dos assentos, conhecer também a disputa doutrinal que o instituto ao longo dos anos tem suscitado.
É o que, embora sumariamente, se vai procurar expôr.
A querela travada à volta da exacta natureza jurídica dos assentos vem já de longe, bem podendo dizer-se que remonta a data anterior à da sua instituição (ou reinstituição), na nossa ordem jurídica mais recente, operada pelo Código de Processo Civil de 1939 (Cfr. Caetano Gonçalves, Supremo Tribunal de Justiça, Coimbra, 1932, pp. 8 e ss e Martins de Carvalho, ob. e loc. cit.), pois que se desencadeou logo após a publicação dos primeiros diplomas respeitantes à reforma do processo civil iniciada em 1926, com a edição do Decreto nº 12353.
Não obstante a sua já longa duração, não logrou ainda alcançar-se em tal debate uma communis opinio, como bem revelam, muito recentemente, as anotações feitas por Gomes Canotilho a um acórdão do Tribunal Constitucional e por Antunes Varela a um outro do Supremo Tribunal de Justiça, publicadas na Revista de Legislação e de Jurisprudência, respectivamente, nº
3811, de 1 de Fevereiro de 1992 e nºs 3813 e 3814, de 1 de Abril e de 1 de Maio de 1992, nas quais se sustentam, embora numa especial perspectiva de análise da sua legitimação constitucional, entendimentos divergentes no que toca à qualificação dos assentos no quadro das categorias jurídicas.
Os autores têm-se dividido, essencialmente, entre aqueles que caracterizam o instituto como mera expressão de jurisdictio e aqueles que lhe atribuem dimensões inequívocas de legislatio, se bem que alguns outros hajam proposto vias intermédias para tal definição conceitual.
Como é sabido, com base no instituto dos assentos, ao Supremo Tribunal de Justiça, confrontado com um conflito de jurisprudência que respeite os requisitos processualmente definidos, é imposta a obrigação de o resolver definitivamente através da enunciação de uma prescrição jurídica que, tendo embora resultado da solução dada aquele conflito ou sendo a síntese dessa solução, passa a valer para o futuro como preceito normativo geral e abstracto e dotado de força obrigatória geral.
Castanheira Neves considera que são três os tópicos principais a ter em conta na caracterização da verdadeira índole dogmático-jurídica destes preceitos-assentos: (a) o órgão emitente é um tribunal ou um órgão integrado na função judicial geral e, portanto, a quem compete em princípio o desempenho da tarefa jurídica própria dessa função - muito embora seja esse tribunal o tribunal supremo e a funcionar de um modo particularmente qualificado (tribunal pleno), da respectiva hierarquia judicial; (b) e órgão judicial que, como tal, é solicitado a ocupar-se do conflito de jurisprudência mediante a interposição de um recurso que apreciará, resolvendo aquele conflito, através de uma actividade jurisdicional - ponderação e decisão jurídica de um caso concreto, aquele que tenha determinado uma anterior decisão conflituante;
(c) mas que acaba por ultrapassar o carácter estrito dessa actividade ou que, pelo menos, não se limita a cumprir a função que à natureza da actividade jurisdicional unicamente corresponde - a decisão jurídica de um caso concreto -, enquanto vem a prescrever uma norma jurídica (assento) destinada não já à solução daquele caso concreto mas a uma aplicação geral e futura.
E aquele Autor, na sequência da enunciação destes tópicos, acrescenta que através deles logo se alcança o que 'há de complexo, mesmo contraditório, e decerto anómalo' no instituto dos assentos, do que 'não se estranhará que sejam bastante díspares, nem sempre claras e bem longe de concludentes' as posições sobre esta matéria tomadas pela doutrina, podendo mesmo dizer-se que 'cada uma dessas posições tem na base a preferência dada a um daqueles três tópicos, com abstracção dos outros dois, em termos de inferir sem mais do tópico caracterizador preferido a conclusão dogmática que sustenta'
(cfr. ob. cit., pp. 274 e 275).
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2 - Lançando um rápido conspecto sobre a forma como se tem concretizado a respeito desta questão o nosso pensamento jurídico, poderá dizer-se que a favor da qualificação dos assentos como actos de natureza jurisdicional se pronunciaram, além de outros, Martins de Carvalho, ob. cit. pp
39 e ss.; Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, pp.
386 e ss., Fernando Olavo, Gazeta da Relação de Lisboa, ano 47º, p. 81; Ernesto de Castro Leal, O Problema da Aplicação da Jurisprudência no Tempo, Revista da Ordem dos Advogados, ano 1º, p. 536; J. Alberto dos Reis, Anotado, cit., vol. VI, pp. 233 e ss.; Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Lisboa,
1973, Tomo I, pp. 122 e ss., e Jorge Miranda, ob. loc. cit., sendo certo que para alguns destes autores (Fernando Olavo e José Alberto dos Reis) o assento, apesar de não se assumir como lei interpretativa, contém interpretação autêntica, enquanto para Marcello Caetano os assentos correspondem na ordem jurisdicional, à interpretação por via de instruções ou ordens de serviço na ordem administrativa ou burocrática, e contendo embora uma norma interpretativa
(como premissa maior de qualquer sentença), norma que constitui a condenação ou formulação expressa da praxe jurisdicional adoptada, não se apresentam como lei interpretativa.
Contrariamente, uma outra corrente doutrinal confere aos assentos a natureza de uma norma jurídica no seu sentido geral, como qualquer outra do sistema, ou mesmo os reconduz a puros actos de natureza legislativa.
Entre os que perfilham o primeiro entendimento figuram, além de outros, Ferrer Correia, Disposições a favor de terceiros em convenções antenupciais, pp. 51 e ss.; Pires de Lima - Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1965; Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, p. 253.
Sufragam a teoria que equipara os assentos a disposições legislativas, nomeadamente, Paulo Cunha, anotação de jurisprudência em O Direito, ano 68º, pp. 15 e 16; Barbosa de Magalhães, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, I, Coimbra, 1947, p. 234; Manuel Rodrigues, As questões de direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça, Revista da Ordem dos Advogados, ano 1º, p. 119; Fezas Vital, Hierarquia das fontes de direito, Boletim Oficial do Ministério da Justiça, III, nº 15, pp. 13 e ss; Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, Coimbra, 2ª ed., 1954, I, pp. 120 e ss.; Luis Pinto Coelho, Introdução ao Estudo do Direito, apontamento das Lições, 1954-59, A.A.F.D.L., pp. 94 e 95 e Adelino da Palma Carlos, Direito Processual Civil - Dos Recursos, Lições policopiadas, 1962-1963, A.A.F.D.L., pp.
106 e 222 e 223.
Entre os autores que atribuem aos assentos a natureza de norma jurídica, importa ainda fazer uma distinção entre os que não distinguem o carácter interpretativo do carácter inovador das suas disposições, os que só lhe atribuem carácter interpretativo (Paulo Cunha, Manuel Rodrigues, Barbosa de Magalhães e Palma Carlos) ou em princípio apenas interpretativo mas sem excluir a sua natureza excepcionalmente inovadora (Cabral de Moncada) e os que lhes reconhecem as duas possibilidades (Pires de Lima - Antunes Varela).
Avaliando as múltiplas posições e respectivos sentidos particulares que a doutrina vem escogitando na dilucidação do problema da natureza jurídica dos assentos, Castanheira Neves não deixa de concluir que estes, em verdade, representam um instituto de perplexidade. E num imediato juízo de ponderação crítica sobre tão plural e polifacetado entendimento doutrinal, escreveu assim: 'ordem ou instrução (normativa) de serviço afirmada na ordem jurisdicional; interpretação autêntica a imputar-se a um acto jurisdicional; lei interpretativa como possibilidade reconhecida a um tribunal! Tudo isto autênticas heterodoxias dogmáticas que se têm defendido, não decerto qualquer delas com total ou absoluta ausência de fundamento (...), mas a denunciarem, na verdade, a estrutura paradoxal do nosso instituto' (cfr. ob. cit., p. 285).
Tomando posição no âmbito da controvérsia, este Autor define o sentido dogmático dos assentos em termos de uma prescrição jurídica
(imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstracta, proposta à pré-determinação normativa de uma aplicação futura, susceptível de garantir a segurança e a igualdade jurídicas, e que não só se impõe com a força ou eficácia de uma vinculação normativa universal como se reconhece legalmente com o carácter de fonte de direito, com o que assumem a natureza de uma disposição legislativa (cfr. ob. cit., p. 315).
Na decorrência do trabalho que Castanheira Neves dedicou ao estudo do problema dos assentos e à função jurídica dos supremos tribunais, e intentando contraditar as principais conclusões ali alcançadas, Barbosa de Melo, Sobre o problema da competência para assentar, Coimbra, 1988, veio retomar a corrente doutrinal que confere aos assentos natureza jurisprudencial, aduzindo para tanto, como ponto prévio, que os conceitos das funções materiais do Estado são 'conceitos tipológicos' (tipos) e não 'conceitos definitórios' (definições classificatórias), para depois enunciar diversas características de distinção entre os assentos e as leis: (a) quanto à liberdade constitutiva, a legislação está, em princípio, na total dependência de um juízo de oportunidade atribuido ao titular da respectiva competência (relativa ao an da lei), enquanto a emissão dos assentos é juridicamente obrigatória desde que se verifiquem objectivamente os pressupostos legalmente estabelecidos; (b) a norma legislada pode ser (e é-o tipicamente) uma prescrição inicial, emergente, de ruptura, um novum na ordem jurídica positiva, ao passo que a norma
'inventada' pelo assento há-de ser uma norma intralegal, isto é, deve corresponder a uma das variantes do sentido da respectiva lei; (c) sob o ponto de vista da omnivalência ou plurifuncionalidade, ambas as figuras podem incidir
'sobre todas as matérias', só que os assentos, movendo-se no espaço intralegal, são sempre secundários ou subordinados em relação à lei; (d) os assentos carecem da característica da autoreversibilidade que faz parte do tipo da actividade legislativa, aspirando, como decisões jurisprudenciais que são, à definitividade e à irretractibilidade.
Ora, na estrutura constitucional vigente, segundo este Autor, 'as características `existenciais' dos assentos não apontam, no seu conjunto, no sentido da sua inclusão no domínio constitucional da função legislativa', pois que, verdadeiramente, 'se limitam sem grande novidade, a escolher uma de várias interpretações judiciais da lei possíveis e praticadas já, e a impô-la como interpretação autêntica da mesma lei' (cfr. ob. cit., pp.
49).
Aqui chegados, e registada uma visão, necessariamente genérica, sobre a controvérsia doutrinal relativa à caracterização jurídico-dogmática dos assentos, é tempo de, em jeito de reflexão, formular já algumas conclusões.
Vejamos.
O Tribunal Constitucional, sem nunca haver considerado expressamente o tema da validade constitucional do instituto em apreço, e embora com o único fito de avaliar da sua adequação ao conceito de norma, como pressuposto de sujeição a um juízo de constitucionalidade, teve ensejo de definir que 'a fixação de doutrina com força obrigatória geral operada através dos assentos, traduz a existência de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, em termos de, quanto a ela, ser possível o accionamento do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade' (cfr. Acórdãos nºs
8/87 e 359/91, Diário da República, I série, de, respectivamente, 9 de Fevereiro de 1987 e 15 de Outubro de 1991).
Esta mesma caracterização dos assentos como actos normativos foi também assumida, nomeadamente, nos Acórdãos nºs 40/84, 68/86 e
104/86, Diário da República, II série, de, respectivamente, 7 de Julho de 1984,
7 de Junho e 4 de Agosto de 1986, havendo-se escrito no primeiro destes arestos, nomeadamente: 'o carácter normativo dos assentos é, na verdade, irrecusável, face ao disposto no artigo 2º do Código Civil, segundo o qual os tribunais podem fixar `doutrina com força obrigatória geral'. Os assentos interpretativos - espécie de assentos sobre os quais se centrará doravante a nossa atenção - fixam o sentido juridicamente relevante de um preceito preexistente e com ele a partir daí se confundem (...). A norma a que se dirige tal tipo de assento, de norma de interpretação variável evolui, por força da valoração jurídica sobreposta que aquele consequencia, a norma de interpretação estável ou, pelo menos, mais estável (o assento, como norma jurídica, também é susceptível de interpretação). A norma visada sofre, por via do assento interpretativo, profunda recomposição: é uma nova norma, deste modo recomposta, que passa a existir no direito positivo. Há pois como que uma fusão entre a norma atingida e a norma do assento que a modula'.
Com efeito, nesta linha de entendimento e à luz de tudo quanto vem de se expor, há-de afirmar-se que os assentos se apresentam com carácter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de
'quaisquer outras normas do sistema', revestidas de carácter imperativo e força obrigatória geral, isto é, obrigando não apenas os tribunais, mas todas as restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão global.
No dizer denso e impressivo de Castanheira Neves, constituem os assentos 'uma prescrição jurídica (imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstracta, proposta à pré-determinação normativa de uma aplicação futura, susceptível de garantir a segurança e a igualdade jurídicas, e que não só se impõe com a força ou a eficácia de uma vinculação normativa universal como se reconhece legalmente com o carácter de fonte de direito'.
Posto isto, é tempo agora de averiguar, no âmbito próprio da cognição deste Tribunal e no quadro específico do processo de fiscalização concreta de constitucionalidade em apreço, se um instituto assim concebido se acha em conformidade com as normas e princípios constitucionais vigentes.
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IV - O instituto dos assentos e a sua validade jurídico-constitucional
1 - No domínio da Constituição de 1933, com salvaguarda do exaustivo estudo de Castanheira Neves, foram muito escassas as contribuições da doutrina e da jurisprudência para a dilucidação da eventual desconformidade daquele instituto com o texto constitucional.
Mesmo os autores que extensamente trataram da matéria dos assentos limitaram-se a aflorar, em jeito de obiter dictum, a questão da sua constitucionalidade para, invariavelmente, lhes concederem, a este respeito, um bill de indemnidade.
Impõe-se contudo, até pelo distanciamento que revela em relação aos demais entendimentos doutrinais, registar a posição defendida por Marcello Caetano no sentido de recusar que a lei ordinária pudesse conferir 'à resolução de um tribunal, por mais alto, força obrigatória geral, isto é, valor legislativo'.
É que, sustenta, 'existindo uma hierarquia de tribunais, admite-se que a decisão do superior possa ser tornada obrigatória para os que dele dependem, exactamente como as instruções na hierarquia administrativa. Mas para atribuir força obrigatória a essa decisão de maneira a vincular todos os tribunais, sejam ou não da ordem judicial, todas as autoridades e todos os cidadãos do País, é preciso considerar o Supremo Tribunal que a profere como órgão legislativo'.
Ora, dispondo a Constituição que os tribunais estão limitados à função judicial, isto é, à actividade de julgamento de casos concretos segundo as formas processuais tendentes à aplicação do direito constituído (artigo 116º), e que a função de fazer leis e interpretá-las pertence à Assembleia Nacional (artigo 91º, nº 2) e ao Governo (artigo 109º, nº
2), a atribuição cometida por lei ordinária a um tribunal de função legislativa é inconstitucional (cfr. ob. loc. cit.).
Assinale-se, aliás, que Marcello Caetano apenas passou a tratar da questão da constitucionalidade dos assentos no Manual de Direito Administrativo, a partir da 8ª edição que corresponde ao ano de 1968, bem podendo filiar-se tal facto na circunstância de entretanto ter começado a vigorar a norma do artigo 2º do Código Civil de 1967, e com ela, a vinculação obrigatória geral devida à doutrina fixada nos assentos.
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2 - A Constituição de 1976, na sua versão originária, tratava da matéria correspondente aos tribunais e à função jurisdicional, nos artigos 205º a 223º, não fazendo qualquer referência explícita ou implícita ao instituto dos assentos como elemento integrativo da função jurisdicional e da competência do Supremo Tribunal de Justiça.
Todavia, não pode afirmar-se que o legislador constituinte tenha pura e simplesmente ignorado a problemática dos assentos e a larga controvérsia suscitada na doutrina à volta da sua natureza jurídica e, especialmente a partir de 1973, da sua própria legitimidade constitucional.
Com efeito, como se extrai dos trabalhos da Assembleia Constituinte, o texto do artigo 8º (Supremo Tribunal de Justiça) proposto pela 6ª Comissão (Tribunais) dispunha da seguinte redacção: 'O Supremo Tribunal de Justiça é o órgão máximo da hierarquia dos tribunais judiciais e têm competência para proceder à uniformização da jurisprudência'.
Todavia, os Deputados A. e B. apresentaram relativamente a este preceito uma proposta de eliminação parcial, em termos de ser suprimida a sua última parte que se referia à competência para proceder à uniformização de jurisprudência, procurando assim obstar a que, através dessa competência, aquele tribunal pudesse vir a exercer uma função legislativa, embora já não se excluíssem outras formas (não legislativas) de alcançar semelhante desiderato.
No entendimento do deputado A. a proposta de eliminação daquele segmento normativo 'é precisamente para obviar de algum modo a que se fixe à situação dos assentos e às decisões do Supremo Tribunal de Justiça um carácter vinculativo, tal como tem sido usado e abusado através de todo o tempo (...). E isto por esta razão soberana: é que todo aquele aparelho e sobretudo as doutrinações feitas eram no sentido de coarctar de algum modo todo o aparelho judicial, submetendo-o ao Poder executivo. Era um processo indirecto de manipular e subjugar o aparelho judicial ao Poder Executivo. Precisamente por isso, dado o sentido de independência que nós pretendemos e desejamos consagrar na Constituição ao Poder Judicial, entendemos que até aí (...) nós deveremos fazê-lo com a total independência'.
De seu lado, o Deputado C., intervindo no debate, considerou que 'O Supremo Tribunal de Justiça, embora nós queiramos que ele seja um órgão independente e prestigiado, não podemos entender que ele seja um órgão legislativo. E, nesse sentido, a eliminação da parte final do artigo 8º vai, claramente, ao encontro da preocupação democrática que nos anima de reservar ao
órgão legislativo representativo, ao órgão proveniente de eleições livres, a tarefa de feitura de leis' (cfr. Diário da Assembleia Constituinte, nº 97, de 18 de Dezembro de 1975, pp. 3146 e ss.).
Mas, apesar daquela proposta de eliminação ter sido aprovado por unanimidade, o texto constitucional veio a prever no artigo 122º, nº 2, alínea g), a propósito da 'publicidade dos actos', que seriam publicados no jornal oficial, Diário da República, 'as decisões dos tribunais a que a Constituição ou a lei confiram força obrigatória geral'.
E a partir desta norma, que alguns consideravam especialmente dirigida ao instituto dos assentos (cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, edição AAFDL, 1980, pp. 226 e ss.), procurou-se extrair a sua regularidade constitucional.
Mais adiante, quando se apreciar expressamente o alcance e sentido da norma do artigo 122º, nº 1, alínea g) da versão actual da Constituição, que também respeita à publicidade de certas decisões dos tribunais, retomar-se-á esta questão que, por agora, se deixa em suspenso.
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3 - Com a revisão constitucional de 1982, operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, a questão da constitucionalidade dos assentos 'deixou as controvérsias jurídico-dogmáticas para se colocar no terreno do direito constitucional positivo'.
Embora nenhum dos projectos de revisão constitucional
[cfr. projectos nº 2/II (PSD, CDS e PPM), nº 3/II (PCP), nº 4/II (PS, ASDI e UEDS) e 5/II (MDP/CDE), Diário da Assembleia da República, II série, nº 55, de
24 de Abril de 1981, pp. 2285-2311, nº 57, de 27 de Abril de 1981, pp.
2329-2356, nº 69, de 22 de Maio de 1981, pp. 2677-2688, e nº 70, de 23 de Maio de 1981, pp. 2690-2712 e 2712-2722, respectivamente. Uma versão corrigida do projecto nº 3/II (PCP), foi publicada no mesmo Diário, II série, suplemento ao nº 90, de 30 de Junho de 1981, pp. 3008(1)-3008(12)], tratasse especificamente da matéria dos assentos, no decurso dos trabalhos parlamentares foi proposto pela subcomissão de redacção o aditamento de um nº 2 ao artigo 206º (função jurisdicional), assim concebido: 'Aos tribunais incumbe igualmente fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral, em casos previstos na lei de processo'.
Todavia, esta proposta não logrou aceitação vindo a ser rejeitada por consenso na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
(CERC), não sem que alguns dos deputados que intervieram no debate tenham manifestado alguma hesitação sobre a matéria, [cfr. Diário da Assembleia da República, II série, suplemento ao nº 87, de 5 de Maio de 1982, pp. 1618 e 1619
(27)], como bem se colhe do teor das respectivas intervenções.
'Já hoje a alínea g) do nº 2 do artigo 122º, a propósito da publicidade dos actos, consagra que: `são publicados no Jornal Oficial as decisões a que a Constituição ou a lei confiram força obrigatória geral'. E isto é mais que suficiente para ficar aberta a porta aos assentos, chamemos-lhe assim.
Por outro lado, em sede de definição das funções dos tribunais, aparecer em pé de igualdade com as funções hoje constantes do artigo 206º, esta função de fixação de doutrina pode ter graves consequências sobre toda a vida jurídica, muitas das quais, neste momento, não podemos prever' (Deputado C.).
'Todas as razões de doutrina jogam contra a fixação de um preceito como este.
O facto de estar lá atrás, além de tudo o que já foi dito e que merece inteira concordância, deixa o assunto numa certa nebulosidade. As instituições vão funcionando, mas os assentos são uma figura híbrida e esquisita da nossa experiência jurídica, mas deixá-los estar. Agora dar-lhe uma roupa constitucional, parece-me um salto muito perigoso' (Deputado D.).
'Fala-se aqui em assentos, todos sabemos o que são e sabemos também que eles definem uma doutrina com força obrigatória geral. A preocupação de colocarmos aqui uma norma é a de saber se a sua inexistência não inconstitucionalizaria a prática dos assentos, hoje existente' (Deputado E.).
Deste modo, o texto constitucional saído da primeira revisão (como aliás acontece com a actual versão da Constituição) não dispunha de qualquer norma que directa e expressamente consagrasse a existência constitucional dos assentos, sendo seguro, como aliás decorre das considerações antecedentes e da própria génese histórica do preceito, não poder extrair-se da norma do artigo 206º (actualmente 205º, nº 2) relativo à função jurisdicional, qualquer título legitimador daquele instituto.
Simplesmente, foi então aditado ao texto da Constituição um novo artigo, concretamente o artigo 115º que, nos nºs 1 e 5, que aqui importa reter, dispunha (como aliás ainda hoje dispõe) do modo seguinte:
Artigo 115º
(Actos normativos)
1 - São actos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.
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5 - Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
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Independentemente das razões que terão determinado a aprovação deste preceito, aliás extensamente expostas e debatidas na CERC e no plenário da Assembleia da República (cfr. Diário da Assembleia da República, II série, suplemento ao nº 19, de 25 de Novembro de 1981, pp. 432 e I série, nº
115, p. 4775), pode dizer-se que, através dele, se visou coligir alguns princípios e soluções já existentes na versão originária mas não integrados de forma condensada e sistemática no articulado da Constituição, como ainda introduzir uma necessária e indispensável ordenação num domínio que vinha revelando uma prática normativa inteiramente anárquica.
Depois de se acolher o princípio da tipicidade das leis, individualizando-se quais os actos legislativos que como tais são previstos na Constituição - leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais - (artigo 115º, nº 1), proibiu-se a criação, por via legal, de outras categorias de actos legislativos (artigo 115º, nº 5, 1ª parte), assim como se tornou defeso que a lei possa conferir a actos de outra natureza, isto é, a actos não legislativos, o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
No entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira contêm-se na norma do nº 5 dois sentidos primordiais: (a) a aprovação do princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de lei; (b) a ideia de que as leis não podem autorizar que a sua própria interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação seja afectada por outro acto que não seja uma outra lei.
Mas, é evidente que a proibição de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis, não exclui todos os actos interpretativos ou integrativos com eficácia externa. A administração e os tribunais não podem deixar de interpretar e integrar as leis quando as aplicam. O que se pretende proibir é a interpretação (ou integração) autêntica das lei através de actos normativos não legislativos, seja de natureza administrativa
(regulamentos), seja de natureza jurisdicional (sentenças).
Segundo aqueles Autores 'daqui deriva, entre outras coisas, a inconstitucionalidade dos assentos em relação a normas legais, porque, independentemente da sua caracterização dogmática como legislatio ou jurisdictio, eles se arrogam ao direito de interpretação (ou integração) autêntica da lei, de forma vinculativa para terceiros; de resto, eles sempre estariam por natureza excluídos em matéria de reserva de lei, pois aí só a lei pode estabelecer normas' (cfr. ob. cit., p. 511).
Ao contrário, B. não retira qualquer virtualidade especial do preceito em causa - segunda parte do nº 5, do artigo 115º - para a dilucidação da questão da legitimidade constitucional dos assentos, porquanto esta norma terá visado apenas o fenómeno da autodegradação das leis, pretendendo excluir os regulamentos derrogatórios da lei.
E na linha deste entendimento, pondera, como já se observou, que aquele preceito 'nada tem a ver com os assentos, pois que estes se limitam, sem grande novidade, a escolher uma de várias interpretações judiciais da lei, possíveis e praticadas já, e a impô-la como interpretação autêntica da mesma lei' (cfr. ob. cit., pp. 48 e 49).
Posição semelhante a esta é a seguida por Antunes Varela na anotação à jurisprudência publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência cit. na qual, depois de se louvar no Parecer da Procuradoria Geral da República, nº 34/84, de 20 de Junho de 1984, Boletim do Ministério da Justiça, nº 341, pp. 96 e ss., se ajunta que 'o objectivo fundamental do preceito foi o de combater a prática da interpretação autêntica das leis através de actos normativos não legislativos, como os regulamentos, ou (o que ainda era mais grave e cada vez mais frequente) de puros actos administrativos, como os despachos, as directivas ou as instruções, mesmo quando previamente sancionadas na própria lei interpretada'.
A este respeito, cabe recordar que no parecer da Procuradoria-Geral da República referido por aquele Autor, como aliás também invocado em diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que sobre o tema dos assentos se têm pronunciado (cfr. por todos o acórdão de 9 de Maio de 1985, Boletim do Ministério da Justiça, nº 347, pp. 340 e ss.), muito embora se aduza expressamente que, com o preceito do artigo 115º, nº 5, da Constituição 'o que se pretendeu foi proibir a interpretação autêntica das leis através de actos normativos não legislativos (ex: os regulamentos), ou de actos administrativos
(ex: despachos, directivas, etc.)' logo se adverte ter-se entendido não abordar no parecer a eventual proibição da interpretação autêntica das leis através de actos jurisdicionais (ex: sentenças), 'que de algum modo se prende com a constitucionalidade dos assentos, questão que está, aliás, pendente de parecer nesta Procuradoria-Geral'.
E, não se tem conhecimento de que, até à presente data, a Procuradoria-Geral da República haja publicado qualquer parecer que, por forma directa, expressa e conclusiva, se tenha pronunciado sobre esta específica questão.
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4 - Como é consabido, os assentos não são os próprios acórdãos do tribunal pleno, mas estritamente as proposições normativas de estrutura geral e abstracta que se autonomizam, formal e normativamente, desses acórdãos. O assento é o 'preceito que coroa a decisão do caso concreto' com
'força genérica' (Antunes Varela, Do Projecto ao Código Civil, p. 18), não a própria decisão do caso concreto ou o conteúdo normativo causuístico dessa decisão.
Originados embora numa decisão jurisprudencial que deles constitui pressuposto jurídico, os assentos normativamente objectivam, para além dessa decisão, uma prescrição que fica a valer geral e abstractamente para o futuro, sendo assim equiparados a fontes de direito.
E tanto assim sucede nos casos em que o assento fixa uma das várias interpretações possíveis da lei (assentos interpretativos), como nos casos em que preenche uma lacuna do sistema e cria a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto (assentos integrativos).
Por via do assento interpretativo a norma visada sofre 'profunda recomposição: é uma nova norma, deste modo recomposta, que passa a existir no direito positivo' (acórdão nº 40/84, cit.) verificando-se como que uma fusão entre a norma interpretada e aquela que, a final, o assento acaba por modular e redifinir.
O assento integrativo não opera em termos de traduzir uma reconstrução entre uma norma existente e a norma que nele se institui, representando antes uma norma inteiramente original que preenche uma lacuna do sistema em conformidade com as regras gerais da integração da lei definidas no artigo 10º do Código Civil.
Deste modo, sendo função dos assentos interpretar ou integrar autenticamente as leis, a norma que lhes atribui força obrigatória geral, não pode deixar de incorrer em colisão com o artigo 115º, nº 5 da Constituição.
E contra esta conclusão não serve invocar o artigo
122º, nº 1, alínea g) da Constituição que manda publicar no jornal oficial, para além das decisões do Tribunal Constitucional, as 'dos outros tribunais a que a lei confira força obrigatória geral'.
Com efeito, esta disposição na qual alguma doutrina e jurisprudência tem descortinado uma indicação do direito constitucional positivo no sentido da legitimidade constitucional dos assentos (cfr. Oliveira Ascensão, Os acórdãos com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional como fonte de direito, Nos dez anos da Constituição, 1986, p. 262; Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 124, nº 3813, cit., Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 1986, Diário da República, de 17 de Maio de 1986) limita-se a prever a possibilidade de existirem decisões dos tribunais com força obrigatória geral, caso em que será exigida a sua publicação no Diário da República, como aliás sucede com as decisões de declaração de ilegalidade dos regulamentos tiradas pelo Supremo Tribunal Administrativo.
E assim sendo, não pode ver-se neste preceito a intenção de decidir do problema da validade constitucional dos assentos, pois que, em tal caso, para além de o legislador constituinte não se revelar
'razoável nem avisado', seria de todo 'aberrante que se tivesse querido tomar posição numa questão desta importância através de um preceito com um objectivo tão particular e mesmo de manifesta índole regulamentar' (cfr. Castanheira Neves, ob. cit., p. 408).
Não vale assim invocar em defesa da constitucionalidade dos assentos, a norma sobre a publicidade dos actos, já que nela não se contém qualquer ressalva relativa à proibição da interpretação ou integração dos actos legislativos por actos de outra natureza, como sucede, manifestamente, com os assentos, ao fixarem doutrina que, com força obrigatória geral, interpreta ou integra autenticamente as leis em sentido formal.
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V - A questão da constitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil
1 - Já se observou que o Decreto nº 4620, em data anterior aquela em que se iniciou o processo conducente a reconstituição dos assentos instituiu um regime destinado a promover a unidade e a uniformidade da jurisprudência no estrito âmbito da função jurisdicional e sem a condenar a uma fixidez que lhe tirasse todas as condições da acomodação a novas necessidades, tendências e correntes de ideias.
Porém, vicissitudes diversas impediram que o sistema assim idealizado pelo Conselheiro Osório de Castro se pudesse afirmar, desencandeando-se depois o processo de reinstituição dos assentos que, após um longo itinerário, culminou na formulação jurídica actual muito próxima do modelo prescrito nas leis tradicionais da monarquia absoluta.
No entender de Castanheira Neves (ob. cit., p. 626)
'os assentos actuais não têm de comum com os assentos da Casa da Suplicação apenas a designação', havendo 'entre eles uma inegável analogia, abstraída que seja a diversidade dos sistemas e processos em que uns e outros se inserem - a homologia não é, pois, só nominativa, é ainda teleológico-institucional'. O pensamento que conduziu à recuperação dos assentos 'revela o paradoxo, exactamente, de se ter restaurado uma instituição que estava na coerência e era produto de um sistema político-jurídico que se viu recusado pelo sistema político-jurídico ao serviço do qual se pretendeu pôr agora essa restauração!'.
Mas, quando a Reforma de 1926 instituiu os 'acórdãos proferidos em tribunal pleno', sem lhes conferir a designação de assentos, e mesmo quando o Código de Processo Civil de 1939, embora assumindo pela primeira vez aquele nomen, lhes delineou o quadro processual e definiu o seu sentido e alcance, ainda, em tal momento, se podia resistir em ver nos assentos uma restauração das decisões da Casa da Suplicação, querendo por isso recusar-lhes a natureza de prescrições normativas no modo de 'interpretação autêntica ou legislativa', para os ver apenas como 'simples jurisprudência', como
'jurisprudência estabelecida ou fixada'.
E isto porque, o assento que o tribunal haveria de lavrar no caso de um conflito de jurisprudência (artigo 768º, § 1º), poderia bem ser entendido em termos de traduzir um particular regime de precedente vinculante, não se equiparando a prescrição dos assentos a uma norma e não ultrapassando, seguramente, a natureza de 'normatividade jurisprudencial'.
Mas não foi esse o sentido de institucionalização adoptado que culminou, na sua forma actual, no artigo 2º do Código Civil.
Ultimamente, porém, com ou sem declarada e expressa assunção da inconstitucionalidade dos assentos, vêm sendo ensaiadas algumas tentativas no sentido de, com respeito pelos ditames constitucionais, preservar no nosso ordenamento aquele instituto enquanto instrumento de uniformização da jurisprudência e da unidade do direito.
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2 - Assim, e antes de todos, Castanheira Neves no fecho do seu estudo por diversas vezes citado, propôs um regime de substituição dos actuais assentos,, a que designou por regime de liberdade jurisdicional justificada - a orientar e a controlar pelo Supremo Tribunal de Justiça, através do seu tribunal pleno (cfr. pp. 671 e ss.).
Tal regime obedeceria, no que aqui importa destacar, ao esquema seguinte: (1) O recurso para tribunal pleno depois de conhecida a revista por qualquer das secções, podia ser interposto pela parte vencida ou pelo Ministério Público, quando tenha havido divergência entre a posição jurisprudencial da secção que decidiu a revista e a posição ou posições anteriores da mesma ou de outra secção. A secção recorrida apreciaria da oportunidade jurídica da intervenção do pleno. Neste caso, o pleno reunir-se-ia obrigatoriamente, mas poderia ainda ajuizar, nos termos gerais, da oportunidade de chamar a si a questão; (2) As instâncias e as secções do Supremo Tribunal não ficavam vinculadas às posições jurídicas que tenha assumido o tribunal pleno. Mas no caso de aqueles se afastarem destas posições verificar-se-ia o seguinte:
(a) A decisão contrária a essas posições deverá justificar especificamente a sua divergência; (b) Se a decisão contrária for de instâncias, haverá sempre recurso para o Supremo tribunal, a propor pela parte vencida ou pelo Ministério Público, embora tão só para a secção competente nos termos comuns; (c) Se a decisão contrária fôr da secção do Supremo, haverá recurso para o tribunal pleno.
Deste modo, no entendimento do seu Autor, logra-se um regime que afirma no Supremo Tribunal uma função exclusivamente jurisdicional, ao mesmo tempo que não deixa de atribuir, e mesmo particularmente lhe reconhece, uma intenção jurídica, a exercer como sua função específica e mediante certa modalidade institucional, que releva normativamente para além da decisão dos casos concretos com vista à unidade do direito.
O estudo de Castanheira Neves, as conclusões alcançadas no sentido da inconstitucionalidade do instituto dos assentos e as propostas apresentadas para sua substituição, tiveram eco em diversos domínios doutrinais e, nomeadamente, no âmbito dos trabalhos de reforma do Código de Processo Civil que, a partir de 1982-1983, têm sido publicados.
Assim no 4º Inquérito Acerca da Reforma do Código de Processo Civil, integrado nos trabalhos da reforma de 1982-1983, o Conselheiro Campos Costa, depois de afirmar que aquele estudo 'revela exuberantemente tanto os inconvenientes de ordem prática dos assentos, como a inconstitucionalidade da norma que reconhece aos tribunais o poder de fixar doutrina com força obrigatória geral', e visivelmente por ele inspirado, apresentou uma proposta de substituição do sistema actual.
Esta solução consistia em prever, no âmbito do recurso ordinário de revista, a possibilidade de serem proferidos acórdãos em secções cíveis reunidas que conteriam um assento 'doutrinário', isto é, uma decisão preceptiva a ser publicada no Boletim do Ministério da Justiça, devendo ser acatada, em princípio, pelos tribunais inferiores, a menos que estes decidissem afastar-se da doutrina do assento, fundamentando as razões da sua discordância. Neste último caso, o vencido poderia sempre interpor recurso de revista directamente para o Supremo, apenas sobre a questão jurídica a que respeitasse o assento das secções reunidas. Em caso de verificação da oposição, o Supremo poderia ordenar que o tribunal inferior aplicasse o anterior assento ou reanalizar a questão em secções reunidas e, eventualmente, proferir novo assento.
Também a Comissão de Reforma do Código de Processo Civil presidida por Antunes Varela, no anteprojecto publicado no Boletim do Ministério da Justiça, em 1988, previa a eliminação do recurso para o tribunal pleno, criando-se em sua substituição uma revista ampliada para uniformização de jurisprudência, diversa do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência que entretanto havia sido consagrado no Código de Processo Penal de 1987.
A revista ampliada é encarada como uma vicissitude da fase de julgamento do recurso ordinário de revista e visa a fixação da jurisprudência obrigatória para quaisquer tribunais através de assento (sem força obrigatória geral) susceptível de ser revogado pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça (cfr. sobre esta matéria, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, pp. 114 e ss.).
Ao propor a instituição do recurso de revista ampliada, nas palavras de Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 121, nº 3771, de 1 de Outubro de 1988, p. 163, 'não deixou a Comissão de mostrar-se sensível ao benefício transcendente da uniformização da jurisprudência, subjacente ao actual recurso para o tribunal pleno, sem embargo das críticas de que tem sido alvo e que num ou noutro ponto podem ser facilmente atendidas sem quebra do pensamento fundamental do instituto'.
Todos estes esforços criativos dirigidos à modificação ou substituição do instituto em apreço, independentemente das razões jurídicas que os animam e da amplitude e alcance que transportam nas soluções propostas, evidenciam a forte problematicidade que os assentos comportam na hora actual, sem embargo de em todas se revelar uma postura favorável à existência de um mecanismo processual tendente ao asseguramento da uniformização da jurisprudência e da unidade do direito.
E na verdade, 'a unidade progressiva da jurisprudência', ao invés da integral erradicação dos assentos, justifica a sua continuidade no ordenamento, devendo porém no quadro das exigências constitucionais, encontrar-se o ponto de equilíbrio que legitime a subsistência das irrecusáveis vantagens que nele se contêm.
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3 - Já se observou que a génese da colisão constitucional da norma do artigo 2º do Código Civil, radica no facto de os assentos se arrogarem o direito de interpretação ou integração autêntica da lei, com força obrigatória geral, assumindo assim a natureza de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis.
A disposição genérica contida naquela norma relativamente à força vinculativa geral dos assentos esteve na origem da eliminação do nº 2 do artigo 769º do Código de Processo Civil de 1961 que, numa linha de continuidade do artigo 768º do Código de Processo Civil de 1939, prescrevia que a doutrina assente pelo acórdão que resolvesse o conflito de jurisprudência seria 'obrigatória para todos os tribunais'.
E deste modo, a disputa que se vinha travando sobre o valor jurídico a atribuir aos assentos a partir daquele preceito (o único que contemplava tal matéria) - para uns, os assentos apenas vinculariam os tribunais hierarquicamente subordinados aquele que os houvesse emitido, enquanto para outros, dispunham de uma vinculação normativa idêntica às das normas gerais do sistema jurídico - veio a ser expressamente resolvida através da consagração do entendimento doutrinal que perfilhava a eficácia geral e incondicionada dos assentos, isto é, a vinculação normativa geral própria das fontes de direito.
Por outro lado, como também já se referiu, o Código de Processo Civil de 1961 suprimiu a possibilidade de modificação dos assentos constante do artigo 769º do Código de 1939, possibilidade essa já contemplada no artigo 66º do Decreto nº 12353 que, por seu turno, recebera inspiração no Decreto nº 4620.
A consagração de um tal sistema, rígido e imutável, para além de anquilosar e impedir a evolução da jurisprudência, necessariamente ditada pelo devir do direito e da sua adequada realização histórico-concreta, contraria manifestamente o sentido mais autêntico da função jurisprudencial.
Ora, tanto a eficácia jurídica universal atribuída à doutrina dos assentos, como o seu carácter de imutabilidade, não só se apresentam como atributos anómalos relativamente à forma inicial da sua instituição em 1939, mas também se configuram como formas de caracterização inadequada de um instituto que visa a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica.
E parece poder afirmar-se que, desprovida desta caracterização, isto é, sem força vinculativa geral e sujeita, em princípio, à contradita das partes e à modificação pelo próprio tribunal dela emitente, aquela doutrina perderá a natureza de acto normativo de interpretação e integração autêntica da lei.
Desde que a doutrina estabelecida no assento apenas obrigue os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados
àquele que o tenha emitido, e não já os tribunais das outras ordens nem a comunidade em geral, deixa de dispôr de força obrigatória geral o que representa, no entendimento de Marcello Caetano, a perda automática do valor que
é próprio dos actos legislativos (cfr. ob. loc. cit.).
Com efeito, desde que o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto pelas partes, disponha de competência para proceder à revisibilidade dos assentos - e não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre os pressupostos e a amplitude do esquema processual a seguir em ordem à concretização desse objectivo - a eficácia interna dos assentos, restringindo-se ao plano específico dos tribunais integrados na ordem dos tribunais judiciais de que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da respectiva hierarquia, perderá o carácter normativo para se situar no plano da mera eficácia jurisdicional e revestir a natureza de simples 'jurisprudência qualificada'.
E assim sendo, a norma do artigo 2º do Código Civil, entendida como significando que os tribunais podem fixar, por meio de assentos
'doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada', deixará de conflituar com a norma do artigo 115º, nº 5 da Constituição.
É que, com tal sentido, o assento não representa já um acto normativo não legislativo capaz de, com eficácia externa, fazer interpretação ou integração autêntica das leis.
Mas, neste quadro de caracterização normativo-processual do instituto, o facto de aos juízes dos tribunais integrados na ordem do tribunal emitente do assento, (até mesmo os deste tribunal enquanto não se operar a sua reversibilidade), ser imposta a aplicação da doutrina nele contida, não representará violação da sua independência decisória?
Tem-se por seguro que não.
Com efeito, não acompanhando embora o entendimento de Marcello Caetano no sentido de que 'existindo uma hierarquia de tribunais, admite-se que a decisão do superior possa ser tornada obrigatória para os que dele dependam, exactamente como as instruções na hierarquia administrativa'
(cfr. ob. loc. cit.), e tendo bem presente o princípio da independência dos tribunais consagrado no artigo 206º da Constituição, há-de ponderar-se que a definição jurisprudencial contida na decisão do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos propostos, não envolve prejuízo da autonomia da interpretação do direito que se compreende na independência dos tribunais.
Uma tal definição jurisprudencial, provinda do mais alto tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais (no presente processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, apenas importa considerar os assentos do Supremo Tribunal de Justiça) sem eficácia externa erga omnes, e susceptível, em princípio, de impugnação processual pelas partes interessadas na causa, há-de ter-se como adequado elemento integrativo da própria estrutura jurisdicional de que promana. A subordinação devida pelos tribunais àquela jurisprudência, tem algo de comum com a generalidade das decisões proferidas em via de recurso às quais é devido acatamento mesmo quando delas dissintam os juízes dos tribunais de instância.
Aliás, a própria Constituição, no artigo 281º, nº 3, regendo sobre a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, não impondo embora uma automática e obrigatória intervenção do Tribunal em tal sentido, instituiu um sistema cuja matriz também radica na unidade do direito e, de algum modo, na uniformidade da jurisprudência.
Este afloramento constitucional do valor da uniformização jurisprudencial há-de ser entendido em termos de, numa perspectiva global do funcionamento do sistema judiciário, justificar a subordinação de todos os tribunais judiciais à 'jurisprudência qualificada' do Supremo Tribunal de Justiça sem que, de tal subordinação, resulte comprometida a sua independência decisória.
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4 - Quais as consequências que o julgamento de inconstitucionalidade do segmento normativo do artigo 2º do Código Civil que se vem apreciando, fará repercutir na situação em apreço no presente processo?
Por um lado, o Tribunal da Relação do Porto integra-se na ordem própria dos tribunais judiciais e daí que a doutrina estabelecida no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1984, se tenha projectado, em termos de eficácia vinculativa, no âmbito específico dos tribunais judiciais, isto é, dos tribunais subordinados hierarquicamente ao tribunal emitente.
Por outro lado, tendo em atenção a natureza e o valor da acção, não cabia no respectivo processo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, inexistindo assim as condições processuais necessárias para que o recorrente pudesse impugnar a doutrina do assento junto daquele Tribunal.
E assim sendo, pese embora o facto de se julgar inconstitucional o último segmento da norma do artigo 2º do Código Civil, dadas as circunstâncias materiais e processuais da acção, este julgamento não aproveitará ao recorrente.
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VI - A decisão
Nestes termos decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da Constituição;
b) Não conceder, apesar da conclusão antecedente, provimento ao recurso, na medida em que, no caso concreto, a doutrina do Assento de 4 de Julho de 1984, apenas foi aplicada por tribunais judiciais, não cabendo no respectivo processo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Lisboa, 7 de Dezembro de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José de Sousa e Brito
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Luís Nunes de Almeida
Messias Bento
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
José Manuel Cardoso da Costa
Proc. nº 474/88
1ª Secção
Declaração de voto
1. No memorando que apresentei como primeira relatora, defendi a tese da inteira inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil, que determina que 'nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral'.
A tese vencedora julga inconstitucional um segmento da norma [o que contém a locução 'doutrina com força obrigatória geral'] que, no entanto, esgota todo o sentido do artigo 2º do Código Civil. Depois, num vai-vem entre direito constituído e direito constituendo, reiventa a norma-objecto, com apoio num mecanismo de revisibilidade dos assentos que o sistema não prevê e com o qual, por isso, o sentido remissivo da norma do artigo 2º do Código Civil não conta. E, em nome da unidade da ordem jurídica, propõe um sistema alternativo de uniformização de jurisprudência que rejeita um critério comum de reconhecimento da normatividade entre os juízes do Supremo Tribunal de Justiça e os juízes dos tribunais inferiores, por um lado, e entre os tribunais e a comunidade interpretativa geral, por outro lado. Ao mesmo tempo, põe em causa a liberdade dos juízes, que a Constituição diz que 'apenas estão sujeitos à lei' (C.R.P., artigo 206º).
2. A linha argumentativa central do acórdão dirige-se a contornar o problema da natureza legislativa dos assentos. Para isso amputa a norma do artigo 2º do Código Civil da expressão 'doutrina com força obrigatória geral'. O acórdão reconhece, pois, que os assentos são inconstitucionais se dispuserem de força obrigatória geral. Como não existe outro lugar do sistema jurídico onde se defina a força vinculativa dos assentos, o acórdão, ao conceder neste ponto, teria de conceder na tese da inteira inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil, que é uma norma lógica e significativamente incindível.
Mas em vez disso, no seu intuito de salvar aquele instituto, cria-lhe uma segunda natureza, de modo a compatibilizá-lo com a Constituição. Só que essa intencionalidade, mesmo se entendida em termos de uma 'teoria de conservação normativa', não pode significar a ablação de uma norma do seu conteúdo de significação fundamental e a integração pelo intérprete da lacuna criada como se de um legislador em sentido verdadeiro e próprio se tratasse.
'... Não pode, no decurso da interpretação, uma lei inequívoca segundo o teor literal e o sentido ser investida de um sentido contrário, nem o conteúdo normativo ser determinado de novo de modo fundamental, nem a meta legislativa defraudada num ponto de vista essencial' (BVerfGE 54, pág. 299).
É isto que o acórdão faz, ao destruir a norma do artigo 2º do Código Civil, que define em termos de 'força obrigatória geral' a força vinculativa dos assentos, a estes atribuindo depois, no seu intuito salvífico, uma força vinculativa confinada às instâncias inferiores do segmento da organização judiciária de que o Supremo Tribunal de Justiça é a instância de cúpula.
3. Com esta linha argumentativa, o acórdão contornaria o problema da natureza legislativa dos assentos... mas mergulharia numa questão não menos intrincada, ao atribuir-lhes uma natureza administrativa, quais 'directivas' com força obrigatória para a aplicação da lei pelos tribunais inferiores, à semelhança daquelas que existiam na estrutura judiciária de alguns países socialistas.
4. E, aqui, o Tribunal haveria de se confrontar com o problema da violação do princípio da independência decisória dos juízes consagrado no artigo
206º da Constituição.
Assimilou então a vinculação dos tribunais inferiores pelos assentos ao dever que têm de acatamento das decisões de recurso, como se de realidades próximas se tratasse. Mas não são realidades próximas. O sistema de recursos existe precisamente porque existe a liberdade de decidir. Ele seria praticamente inútil se o julgamento das instâncias estivesse desde o primeiro momento condicionado por directivas do Supremo Tribunal. 'A vinculação pelo assento' é vinculação a uma doutrina pré-definida. A 'vinculação pelo recurso' leva implicada, primeiro, a liberdade de decidir e depois, a transferência da decisão para o tribunal 'ad quem'.
5. Não se compreende, nem do ponto de vista lógico nem metodológico [estranha forma de 'interpretação conforme à Constituição !'...], como se pode reconduzir a locução 'doutrina com força obrigatória geral' ao sentido de 'doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada'.
A reconversão do sentido é determinada, está bem de ver, pelo princípio da tipicidade dos actos legislativos estabelecido no artigo 115º, nºs.
1 e 5, da Constituição, e pela proibição que aí se contém de a lei conferir a actos de outra natureza o poder de, 'com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar' qualquer dos seus preceitos. Ao restringir a força obrigatória geral aos 'tribunais integrados na ordem do tribunal emitente', o acórdão pretende contornar a expressão 'com eficácia externa'. Mas nem por isso o assento - na configuração 'contra legem' que o acórdão lhe pretende atribuir - deixará de ser uma prescrição normativa, quer dizer, a imposição de um critério jurídico para uma aplicação geral e futura. A restrição da força vinculativa dos assentos à jurisdição dos tribunais judiciais não implica que a sua eficácia seja interna e não externa: ainda aí, o critério interpretativo fixado com força obrigatória no 'assento' não é apenas uma injunção aos juízes dos tribunais inferiores para que interpretem ou apliquem o Direito desta ou daquela maneira, é também base de decisão para ajuizar das pretensões das partes. Depois, esse critério constitui doutrina obrigatória por um tempo e para um conjunto de casos indeterminados.
Procurando salvar a constitucionalidade dos assentos, a tese do acórdão determina-lhes, pois, uma eficácia que pretende meramente 'interna' impondo uma lógica de natureza administrativa à vinculatividade dos mesmos assentos. Estes converter-se-iam numa espécie de ordem ou instrução (normativa) de serviço, afirmada no domínio jurisdicional. Com isto haveria uma perda automática do valor que é próprio dos actos legislativos. Só que a eficácia interna é incompatível com a 'natureza da coisa' função jurisdicional.
6. Mas o acórdão reconhece que é insuficiente a limitação
'sectorial'. Por isso, à limitação 'sectorial' junta a limitação 'temporal'. O segundo requisito para obter uma 'interpretação conforme à Constituição' [no sentido peculiar do procedimento do acórdão] exprime-o nos seguintes termos '... desde que o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto pelas partes, disponha de competência para proceder à revisibilidade dos assentos'. Mas esta é, de jure condito, uma condição impossível. Que recurso ? Não vem previsto no Código de Processo Civil !... Com que fundamentos ? Não, decerto, invocando contradição entre a doutrina do assento e de acórdão anterior do Supremo Tribunal de Justiça, pois o assento foi tirado precisamente para resolver, de uma vez por todas, o conflito de jurisprudência... Junto de quem ? Do Tribunal Pleno, presume-se, pois instância mais elevada não há. A condição impossível torna impossível a sustentação da doutrina do acórdão ! Para salvar a
'norma' imaginou-se um ente que não pode almejar a existência nos quadros do Direito vigente !
7. Conjugadas as duas 'condições de constitucionalidade' [a limitação 'sectorial' e a limitação 'temporal'], o assento, segundo o acórdão,
'perderá o carácter normativo para se situar no plano da mera eficácia jurisdicional e revestir a natureza de jurisprudência qualificada'. Mas qual é o alcance de afirmar que, afinal, o assento não goza de carácter normativo e se situa 'no plano da mera eficácia jurisdicional' e reveste 'a natureza de jurisprudência qualificada' ? Só pode ser o de que o assento não possui uma verdadeira 'binding force', mas apenas uma 'autorité de fait', que é um mero
'precedente judicial' a favor do qual joga uma 'presunção de vinculatividade'
[präsuntive Verbandlichkeit der Präjudizien]. Ora, esse alcance não o atinge o acórdão.
O procedimento de 'constitucionalização' da figura dos assentos só seria, com efeito, conseguido se esta figura fosse reduzida à decisão, enquanto tal, do recurso para o Tribunal Pleno [recurso suscitado pela divergência de acórdãos a propósito de uma 'mesma questão fundamental de direito']. Mas já não se se persistir em entender como assento 'o preceito que formal e normativamente dele se autonomiza para impor em termos gerais e abstractos o sentido jurídico com que tenha sido solucionada a divergência jurisprudencial' (Castanheira Neves). O recurso para o Tribunal Pleno realiza, de facto, uma função de uniformização, mas em ordem ao cumprimento da norma constitucional do artigo 115º, nº 5, a 'binding force' da decisão do recurso para o Tribunal Pleno deveria restringir-se ao caso 'sub judice', gozando para os demais casos, como 'jurisprudência qualificada', de mera 'autorité de fait'.
A norma do artigo 2º do Código Civil seria conforme à Constituição, se em vez de afirmar a 'força obrigatória geral' da doutrina contida nos assentos, antes afirmasse a sua 'força persuasória geral'.
8. Depois de percorrer a história do instituto, o acórdão acaba por concluir que 'tanto a eficácia jurídica universal atribuída à doutrina dos assentos, como o seu carácter de imutabilidade não só se apresentam como anómalos relativamente à forma inicial da sua instituição em 1939, mas também se configuram como formas de caracterização inadequada de um instituto que visa a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica'. Só que o instituto evoluiu precisamente no sentido da imutabilidade e da eficácia jurídica universal. O problema não reside na contradição entre o instituto e a função [de 'assegurar a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica'] mas entre o instituto e a Constituição [artigo 115º, nºs. 1 e 5].
O acórdão procede a um desenho 'de jure condendo' de um instituto de uniformização do Direito, a que chama 'assento' e que já não coincide com aquele que existe hoje na ordem jurídica portuguesa. Ainda assim, esse outro assento - de que se mantém o 'nome', mas que já não corresponde ao 'ente' - seria desajustado ao desiderato de 'assegurar a unidade do Direito e a segurança da ordem jurídica'. A tese da limitação 'sectorial' conduziria não à unidade do Direito mas à 'feudalização' do Direito, conestando divergências de interpretação em resultado de diferenças de jurisdição e fazendo uma separação entre o 'sector oficial' e o 'sector privado' quanto aos critérios de validade do Direito (Hart).
9. A tese da limitação 'temporal' - a 'segunda condição de constitucionalidade' posta pelo acórdão - requereria a criação de um esquema processual próprio que assegurasse a revisibilidade dos assentos. Esse esquema não existe e o Tribunal não se aventurou a descrever-lhe os contornos, os fundamentos, a tramitação. Ainda destruiu por inconstitucional um 'segmento' da norma do artigo 2º do Código Civil, ainda manteve o nome 'assento' para designar um instituto 'visando assegurar a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica', ainda avançou 'contra legem' algumas das suas características. Mas acabou por confessar a impossibilidade do seu próprio objectivo.
10. O acórdão põe em causa a 'sistematicidade do Direito'
(Castanheira Neves) e o sentido de integração que lhe vai ligado. Constitui uma
'decisão programante' (Luhmann) própria da função legislativa. Já não está no domínio do sistema jurídico mas no círculo distinto do sistema político. Ensaiando uma certa possibilidade dos assentos, dilui ele mesmo a demarcação dos
âmbitos de poder com que a Constituição, no artigo 115º, nºs. 1 e 5, reservou a lei ao legislador.
Maria da Assunção Esteves