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Processo n.º 641/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por despacho de 20 de julho de 2011 proferido no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, julgou-se inconstitucional, por violação dos artigos 202.º, 203.º, 209.º n.º 1 alínea a), 210.º n.º 3, 211º n.º 2 da Constituição (CRP), a norma do n.º 2 do artigo 384.º do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei n.º 26/2010 de 30 de agosto, na medida em que atribui ao juiz do tribunal de instrução criminal competência reservada ao juiz do tribunal de pequena instância criminal. Diz o despacho:
Nos termos do processo sumário, arts. 381º a 383º do CPP o arguido é apresentado para julgamento.
E dispõe o art. 384º do CPP, com as alterações introduzidas pela lei nº 26/2010 de 30 de agosto:
nº 1 - É correspondentemente aplicável em processo sumário o disposto nos artigos 280º, 281º e 282º, até ao início da audiência, por iniciativa do tribunal ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou do assistente, devendo o juiz pronunciar-se no prazo de cinco dias.
nº 2 - Se, para efeitos do disposto no número anterior, não for obtida a concordância do juiz de instrução, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem ... a julgamento.
Determina e impõe pois esta norma a competência para conhecer do pedido de suspensão provisória do processo no âmbito do processo sumário que corre termos pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal não o juiz titular desse órgão de soberania, mas o juiz do Tribunal de Instrução Criminal.
O que constitui uma violação da Constituição, art. 18º, nº 2 e 102º da LOFT e arts. 202º, 203º, 209º, nº1, al. a), 210.º, nº3 e 211º, nº 2 da CRP.
Na verdade, dispõe o art. 211º, nº 2 da CRP que “na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas”.
É nos termos deste normativo constitucional que se encontram criados e instalados nesta Comarca do Porto, os Tribunais de Instrução Criminal, de competência especializada, e os Tribunais de Pequena Instância Criminal, de competência específica, cabendo àqueles exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, e a estes preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, no que ora importa reportar, arts. 79º, nº 1 e 102º, nº 1, da LOFT.
E nos termos do nº 3 do art. 210.º da CRP estes tribunais são equiparados a tribunais de primeira instância, isto é, são uma categoria de tribunal, art. 209.º, n.º 1, al. a) da CRP, e assim, nos termos do art. 202º da Constituição, órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
É assim matéria específica da competência do TPIC preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, nos termos dos arts. 211.º, n º2, 209º, n.º 1, al. a), 210º, nº 3 e 202º da Constituição e da norma do art. 102º da lei de organização e funcionamento dos tribunais.
No dizer de Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, em anotação ao referido artigo, “Da asserção qualificadora dos tribunais como órgãos de soberania resulta que cada tribunal consubstancia um órgão de soberania” ...“todos e cada um dos tribunais são órgãos de soberania” pág. 13 e 14. E mais à frente, pág. 15, “a legitimidade dos juízes resulta, nesta perspetiva, do exercício de uma competência que lhes é atribuída por normas organizativas do sistema “. E ainda: “pode invocar-se o modelo constitucional de organização dos tribunais, com claros afloramentos na própria composição de tribunais
Nem a independência dos tribunais se esgota na independência externa. Merece individualização a autonomia de cada tribunal em face dos demais, divulgadamente dita independência interna..., Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, pág. 38 e 41.
E é a circunstância de a definição da competência dos tribunais judiciais se processar de acordo com critérios objectivos pré-estabelecidos pela lei ordinária que põe a especialização a salvo da censura da inconstitucionalidade, autores e ob. cit., pág. 138.
Nos termos da constituição são o TIC e o TPIC, cada um deles, um órgão de soberania, independente e com reserva da função jurisdicional atribuída em proveito do tribunal.
Como referem os autores supra referidos, págs. 13, a 15, ob. cit.:
“Todos e cada um dos tribunais são órgãos de soberania.
“A legitimidade dos juízes resulta, nesta perspectiva, do exercício de uma competência que lhes é atribuída por normas organizativas do sistema ...“, pág. 13, 14 e 15, autores e ob. cit..
“O principal alcance do nº 1 do art. 202º da Constituição analisa-se no estabelecimento de reserva da competência para o exercício da função jurisdicional em proveito exclusivo dos tribunais. Não são os tribunais – sustenta-se – a saírem definidos pela função jurisdicional. É também esta – prossegue-se – a resultar definida por aqueles”, Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 24, item VI.
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Mas esta subordinação à lei deve ser entendida como subordinação não apenas ao bloco de legalidade estrito, mas também à Constituição – autores e ob. cit., pág.
A independência dos tribunais não se esgota na independência externa. Merece individualização a autonomia de cada tribunal em face dos demais, divulgadamente dita independência interna..., Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, pág. 41.
Nos termos do art. 204º da Constituição “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”, o que é o caso, na medida em que o art. 384.º n.º 2 do CPP, com a redacção dada pela lei nº 26/2010 de 30 de Agosto, determina e atribui ao Juiz deste Tribunal de Instrução Criminal a competência reservada ao Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal, O que viola quer o disposto na Constituição, art.s 202º, 203º, 209º, nº 1, al. a), 210.º n.º 3 e 211º, n.º 2, quer os seus princípios.
Consequentemente, pela inconstitucionalidade do normativo art. 384.º, n.º 2 do CPP, com a redacção dada pela lei n.º 26/2010 de 30 de Agosto, não o aplicou nos termos do art. 204º da Constituição.
2. O Ministério Público interpôs recurso deste despacho, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), invocando que na decisão recorrida se recusara aplicar – com fundamento expresso em inconstitucionalidade da norma – o artigo 384º n.º 2 do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto, segundo o qual é o juiz de instrução o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é apresentado para julgamento em processo sumário.
O recurso foi admitido e o Ministério Público apresentou a sua alegação que, por manifesto interesse processual, integralmente se reproduz:
1. Delimitação do objecto do recurso
1.1. A fim de ser julgado em processo sumário no dia que lhe havia sido indicado pelas autoridades policiais que tinham procedido à sua detenção, o arguido apresentou-se ao Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto.
1.2. Os factos indiciavam a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (taxa de álcool no sangue de 1,26g/l), previsto e punido nos termos dos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
1.3. O Ministério Público, em despacho fundamentado e obtida a concordância do arguido, determinou, nos termos dos artigos 384.º e 281.º do CPP, a suspensão provisória do processo pelo período de oito meses impondo algumas injunções/regras de conduta e ordenou a remessa do expediente ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, para, eventualmente, ser proferido, pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal despacho de concordância.
1.4. O Senhor Juiz de Instrução Criminal, após mandar autuar e registar o expediente como processo Sumário, proferiu decisão na qual recusou a aplicação com fundamento em inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 384.º do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto “enquanto determina e atribui ao Juiz deste Tribunal de Instrução Criminal a competência reservada ao Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal”.
1.5. É desta decisão que, pelo Ministério Público vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que a decisão recorrida “recusou aplicar o artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 26/2010, de 30 de agosto, segundo a qual é o Juiz de instrução o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é apresentado para julgamento em processo sumário”.
1.6. A decisão recorrida é idêntica às proferidas, no mesmo tribunal, em processos onde foram proferidas as doutas Decisões Sumárias n.º 223/2011 (da Exm.º Senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral), n.º 235/2011 (do Exm.º Senhor Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha) e 241/2011 (da Exm.º Senhora Conselheira Maria João Antunes).
As Decisões Sumárias referidas não conheceram do objeto do recurso, considerando que não se estava perante uma “verdadeira” recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Efectivamente, após chegar á conclusão, pela interpretação do direito ordinário, que não era competente, o Senhor Juiz afirma que a solução contrária “constituiria até um desaforamento” o que ofenderia o princípio do juiz natural.
Ou seja, a inconstitucionalidade surgia apenas como reforço de argumentação ou elemento adicional de interpretação.
A decisão, ora recorrida, embora idêntica, como se disse, é diferente da que constava dos processos onde foram proferidas as Decisões Sumárias referidas.
De referir ainda que, para além dos processos que finalizaram com a prolação de Decisão Sumária, em três casos foi ordenada a produção de alegações. No entanto, nesses processos, foram proferidos Acórdãos a não conhecer do objeto do recurso (Acórdãos nºs 325/2011, 326/2011 e 364/2011).
1.7. Posteriormente, oriundos do mesmo tribunal e sobre a mesma questão, foram recebidos neste Tribunal Constitucional diversos processo em que a decisão recorrida era de conteúdo idêntico àquelas que anteriormente referimos (1.6.)
Assim ocorreu, por exemplo, nos Processos nºs 333/11 e 334/11, da 3ª Secção e Processos nºs 329/11 e 335/11, da 1ª Secção. Nesses processos foram proferidas as Decisões Sumária nºs 299/1, 300/11, 330/11 e 331/11, respectivamente, que não conheceram do objecto do recurso com base na argumentação que já constava das anteriores Decisões Sumárias.
Foi ainda mandado alegar em dois processos, nos quais foram proferidos os Acórdãos nºs 433/2011 e 473/2011, que não conheceram do objecto do recurso.
1.8. A decisão ora recorrida constitui, pois, a “terceira versão”, oriunda do mesmo tribunal, sobre a questão de inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 384.º do CPP, na redacção actual.
2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. Sobre a questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do recurso, foram, por nós, produzidas alegações nos processos em que foi mandado alegar e aos quais atrás fizemos referência. São essas alegações que, no essencial, iremos, seguidamente, reproduzir.
2.2. O artigo 384.º do CPP, tinha a seguinte redacção:
“É correspondentemente aplicável em processo sumário o disposto nos artigos 280.º, 281.º e 282.º”.
Os artigos 281.º e 282.º - os relevantes para o caso dos autos - fixam o regime do instituto da suspensão provisória do processo.
Com a Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, a redacção passou a ser a seguinte:
“1 – É correspondentemente aplicável em processo sumário o disposto nos artigos 280.º, 281.º e 282.º , até ao início da audiência, por iniciativa do tribunal ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou do assistente, devendo o juiz pronunciar-se no prazo de cinco dias.
2 – Se, para efeitos do disposto no número anterior, não for obtida a concordância do juiz, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem numa data compreendida nos 15 dias posteriores à detenção para apresentação a julgamento em processo sumário, advertindo o arguido de que aquele se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado pelo defensor.
3 – Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 282.º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação.”
2.3. Aplicando-se a suspensão provisória do processo em processo sumário, a alteração introduzida veio concretizar a tramitação do processo e definir com maior clareza as diversas competências
Na verdade, a redacção anterior ao limitar-se a remeter para os artigos 281.º e 282.º levou ao surgimento de diversos problemas e divergências jurisprudenciais, quanto à questão de saber qual o juiz competente para apreciar a decisão do Ministério Público de suspender provisoriamente o processo, dada a natureza do instituto, a fase e a natureza do processo em que surgia, tendo ainda em atenção o disposto no artigo 40.º, alínea e) do CPP, que estabelece que o juiz está impedido de intervir no julgamento, num processo em que tenha recusado a suspensão provisória do processo.
2.4. Todas estas questões, como o objectivo visado pelo legislador com a alteração, foram abundantemente tratadas na decisão proferida, em 21 de Março de 2011, na Relação do Porto (Proc. n.º 1178/10.0ptprt-A.P1).
Passamos, pois, a transcrever o que se diz naquela decisão:
(…)
O entendimento do Ex.mo juiz do TPIC, para negar a sua competência que atribui ao T1C, apoia-se na letra do art.º 384.º n.º 2 do CPP, que expressamente refere “juiz de instrução”.
O Ex.mo Juiz do TIC afasta a solução legal expressa com base nos seguintes argumentos:
a) O actual n.º 2 do art.º 384.º do CPP, padece de lapso de escrita facilmente determinável [na parte em que atribui competência ao juiz de instrução];
b) A declaração de concordância ou discordância a que se refere o art..º 384.º do CPP não pode ser proferida pelo JIC, pois tal matéria está fora da sua competência, conforme resulta dos arts. 79.º e 102.º n.º 1 da LOFTJ e 17.º do CPP; a competência do JIC limita-se à fase de inquérito e no caso do art..º 384.º CPP, os autos não estão na fase de inquérito; a decisão judicial do art.º 384.º CPP insere-se na preparação das causas a que corresponda processo sumário.
c) A atribuição de competência ao TIC constituiria desaforamento.
A – Em tema de alegado “lapso de escrita”, por parte do legislador, cabe liminarmente referir que o mesmo se não verifica, pelo seguinte:
A génese da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, que alterou o Código de Processo Penal é conhecida e pode ser consultada em: [...]
Dessa consulta resulta que durante o processo legislativo o legislador teve oportunidade de ouvir, entre outras entidades, a ASJP e o SMMP.
A ASJP referiu no seu Parecer o seguinte:
Art..º 384.º: Os novos n.ºs 2 e 3 do art.º 384.º assumem a regulamentação do arquivamento por dispensa de pena e suspensão provisória do processo em processo sumário, procurando resolver as dificuldades suscitadas pelo impedimento do juiz de julgamento que recuse aquelas medidas (art.º 40.º al. e)), ao atribuírem expressamente competência ao juiz de instrução (a usar, em vez de juiz de instrução criminal, para manter uniformidade terminológica no CPP) para a concordância a que se referem os art.ºs 280.º e 281.º. Não é, porém, solução isenta de novas dificuldades, pois sobretudo nas comarcas em que se encontrem instalados tribunais de instrução criminal, a decisão do Ministério Público implica a remessa dos autos para esses mesmos tribunais para que o Juiz se pronuncie e, no caso de recusa, o regresso dos autos ao tribunal originário, o que dificilmente poderá ter lugar com respeito do prazo de 15 dias previsto no novo n.º2 do art.º 384.º.
Por outro lado, a atribuição de competência ao Jl (em vez do juiz de julgamento a quem foi distribuído o processo sumário) revela-se igualmente mais desfavorável, do ponto de vista da economia e celeridade processuais, nos casos em que o Jl concorde mas o arguido não dê autorização, obviando deste modo ao arquivamento ou à suspensão provisória do processo. Se o processo permanecesse no tribunal com competência para julgamento sumário, podia realizar-se o mesmo de imediato, sem impedimento do juiz de julgamento. Na redacção agora proposta suscitam-se os mesmos problemas de respeito do prazo. A hipótese alternativa de atribuir competência ao juiz de julgamento para manifestar a sua concordância apenas implica a intervenção do juiz substituto nos casos de discordância do juiz natural, ganhando-se em economia e celeridade, pelo que nos aprece ser de ponderar a sua adopção.
E depois, aquando da audição na AR3 , adiantou que:
“Os novos n.ºs 2 e 3 do art.º 384.º assumem a regulamentação do arquivamento por dispensa de pena e suspensão provisória do processo em processo sumário, que até aqui se limitava a remeter para as disposições gerais que as prevêem. Ao atribuírem expressamente competência ao juiz de instrução para a concordância a que se referem os art.ºs 280.º e 281.º, parece-nos que se procura esclarecer dúvidas reveladas pela jurisprudência (..)”. Não é porém, solução isenta de novas dificuldades (...). A hipótese alternativa de atribuir competência ao juiz do julgamento para manifestar a sua concordância apenas implica a intervenção do juiz substituto nos casos de discordância do juiz natural, ganhando-se em economia e celeridade, pelo que nos parece ser de ponderar sua adoção.
Por sua vez o SMMP disse o seguinte:
(...) Artigo 384.º (...) O n.º 2 proposto é desnecessário e vai criar grandes problemas práticos onde existem Tribunais de Pequena Instância Criminal: Ainda que não exista esta norma, se não for possível obter a concordância não só do juiz., mas também do próprio arguido, o Ministério Público sempre poderá não só notificar o arguido para comparecer nos 15 dias posteriores à detenção, como apresentá-lo de imediato a julgamento (é isso que já se passa hoje, sem existir esta norma); erradamente, a norma parece querer vedar a possibilidade de apresentação imediata (se a lei distingue,..); Ao afastar a suspensão provisória do processo do julgamento, atribuindo a competência jurisdicional para a concordância ao juiz de instrução, criam-se grandes problemas práticos onde há Tribunais de Pequena Instância Criminal, pois o magistrado do Ministério Público que terá o inquérito (e convém não esquecer é de um inquérito que se trata) estará no edifício desse tribunal e, em muitos casos1 o juiz de instrução estará noutro edifício, por vezes a grande distância (por exemplo, pensemos no Porto ou em Loures). Aquilo que deveria ser feito com celeridade transformar-se--á num “vai-e-vem” de processos: o Ministério Público junto ao TPIC a quem o processo foi presente e a quem o arguido se apresentou fará a sua proposta de suspensão provisória do processo; apresenta-a ao arguido que está junto de si; concordando este, tem de remeter o processo ao juiz de instrução, noutro edifício; concordando este, o processo terá de voltar ao edifício do TPIC; após, o magistrado do Ministério Público fará o despacho de suspensão provisória do processo; finalmente, notificá-lo-á ao arguido. Aquilo que poderia ser feito em menos de uma hora demorará dias...
O n.º 2, do atual art.º 384.º do Código de Processo Penal, corresponde à redacção da proposta de Lei n.º 12/XI (GOV) , tendo sido eliminado apenas o inciso “criminal”, para manter uniformidade terminológica no Código de Processo Penal, caso dos artigos 280.º, 281.º, como, v.g., foi referido pela ASJP.
Conclui-se do exposto que carece em absoluto de fundamento a tese sustentada pelo Ex.mo Juiz do TIC de que a “referência ao JIC na norma do n.º 2 da art.º 384 do Código de Processo Penal é um lapso de escrita”. Como resulta evidente da resenha da história legislativa do preceito, é infundado afirmar a existência de “lapso” na atribuição de competência ao Jl, bem pelo contrário, como demonstramos acima, essa foi uma opção consciente e querida pelo legislador.
A clareza da solução era tal, já na proposta, que nem à ASJP, nem ao SMMP, surgiu dúvida quanto ao sentido da solução normativa. Essas entidades apenas alertaram, conforme deixamos realçado, que em casos pontuais, a diversa localização geográfica dos TICs e TPICs. podia ser um fator de perturbação na aplicação da lei. Apesar destas chamadas de atenção, que não podia deixar de ponderar, o legislador reafirmou e fez lei a solução da proposta, o que aliás diga-se em abono da coerência é mais conforme com o princípio acusatório consagrado na Constituição e encaixa melhor com o figurino acusatório desenhado no Código de Processo Penal. Depois o inconveniente da diversa localização geográfica deixará de constituir óbice com a tramitação electrónica.
Importa lembrar que a “alteração legislativa” é muito peculiar – no essencial o legislador deitando mão de técnica legislativa diversa, passou a dizer expressamente no art.º 384, n.º 2 do CPP, o que já antes dizia por remissão para os artºs 280.º, 281.º e 282.º – e a novidade tem em vista concretamente “o momento do processo sumário”. E não aconteceu por mero acaso. Já na vigência da anterior redacção formaram-se duas correntes de entendimento a nível jurisprudencial: uns entendiam que a concordância com a suspensão provisória competia ao juiz do julgamento outros que competia ao Jl . Parece-nos que foram estas aporias que o legislador quis ultrapassar avivando o traço no desenho acusatório do CPP.
Face à actual redacção do n.º 2 do artigo 384.º do Código de Processo Penal deixa de haver qualquer margem de dúvida sobre qual o juiz competente para, nesse momento processual, produzir a declaração de concordância [ou não concordância]: é sempre o juiz de instrução [criminal] . Da possibilidade de a iniciativa poder agora partir do tribunal, n.º 1, do art.º 384º, não se pode retirar que seja esse tribunal — o do julgamento — o competente para produzir a declaração de concordância. Esta solução constituiria entorse aos princípios pois a concordância é materialmente um ato do Jl. Parece-nos que o legislador não engrossou o elenco do art.º 268.º do CPP por uma dupla ordem de razões, por redundante, face à cláusula aberta constante do n.º 1 al.) f); para não criar mais um factor de perturbação ou ruído, pois discute-se a natureza do processo enquanto permanece no “limbo”: julgamento em processo sumário; suspensão do processo.
Em sentido crítico a esta solução poderá argumentar-se, então, que o legislador se esqueceu de alterar correspondentemente o art.º 40.º al. e) do Código de Processo Penal, cuja manutenção nessa parte, ficaria agora sem sentido. Sem razão tal crítica. É que, tal como acontece com a aplicação da medida de coação, com o debate instrutório, também no que respeita não concordância com a suspensão, o juiz que intervém nesses atos como Jl, pode, em momento posterior, mas em veste diferente, v.g. em virtude de movimento para outro tribunal, ser o competente para os termos subsequentes do processo. Por tal motivo a manutenção do impedimento tem todo o sentido.
Conclui-se assim que é infundado o argumento de que o actual n.º 2 do art.º 384.º do CPP padece de lapso de escrita”.
B) A segunda linha argumentativa parte do pressuposto que esta matéria está fora da competência do Jl, conforme resulta dos art.ºs 79.º e 102.º n.º1 da LOFTJ e 17. do CPP; que a competência do Jl está limitada à fase de inquérito e a decisão judicial do art.º 384 do CPP, insere-se na preparação das causas a que corresponda processo sumário.
O artigo 79.º da LOFTJ diz que compete aos tribunais de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito; o artigo 102.º que compete aos juízos de pequena instância criminal preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo.
Salvo o devido respeito a argumentação retirada da LOFTJ está votada ao insucesso. Em matéria de competência material e funcional está legalmente definida uma hierarquia clara.
Diz o art.º 10.º do Código de Processo Penal que a competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária. No confronte entre LOFTJ e CPP quanto a matéria de competência e em caso de conflito prevalece o CPP, como expressamente resulta do art.º 10.º do CPP. Esta norma processual é uma norma especial logo prevalece sobre as disposições da LOFTJ: lex specialis derogat legi generali.
O mesmo raciocínio vale e tem de ser chamado para ultrapassar as aporias dentro do Código de Processo Penal. Elas existem, não se podem varrer para debaixo do tapete, e só com o recurso regras de interpretação, aos princípios e à constituição podem ser ultrapassadas ou ao menos remediadas.
O primeiro caso é o artº 17.º do CPP. Temos de ter a percepção que essa norma disciplina genericamente a competência do JIC, pois está sistematicamente inserida naquilo que podemos chamar com propriedade a “parte geral” do CPP. Ora o art.º 17.º do CPP no confronto com a norma “especialíssima” do art.º 384.º do CPP, tem de ceder, prevalecendo esta última. Foi o mesmo legislador – o legislador com a mesma legitimidade constitucional – quem erigiu uma e outra norma. A norma especial prevalece sobre a norma geral. Mais; a norma especial resulta da manifestação mais recente da vontade legislativa, o que a torna depositária de um valor reforçado .
Incidentalmente referimos as aporias e dissemos que elas existem. É uma verdade incontornável. São conhecidas as razões para algum desencontro terminológico ou mesmo desconforto ou ruído interpretativo nesta matéria da suspensão do processo . Na versão original do CPP a suspensão provisória do processo estava no âmbito de competência exclusiva do MP, não sendo necessário consentimento do juiz. O TC, no Ac. 7/87, aquando da fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma entendeu que os originários n.ºs 1 e 2 do art.º 281.º eram inconstitucionais. À última hora, o legislador acabou por introduzir a exigência da concordância do juiz. Faltou a “afinação” com outras normas, nomeadamente com o “nosso” art.º 384.º do CPP, e assim nasceu algum ruído interpretativo, que diga-se em abono da verdade, facilmente se ultrapassa com o apelo a boas regras de interpretação.
Do exposto resulta que o juiz competente para proferir o despacho a que alude o art.º 384.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal é o juiz de instrução.
C – Resta o desaforamento. O desaforamento, a verificar-se, ofende o princípio do juiz natural que tem consagração constitucional, art.º32.º n.º9 da Constituição.
Uma primeira observação para recordar o que já acima dissemos: que já na vigência da lei anterior os tribunais quando chamados a decidir a questão da competência optaram, em muitas decisões, por aquela que já na época nos parecia a melhor leitura do art.º 384.º do Código de Processo Penal. Mais do que inovar e atribuir competência ao JIC o legislador terá querido dissipar dúvidas, limar arestas, para que o meio de realizar o direito material — o processo — não se tornasse um empecilho na celeridade processual.
Hipotizando que o legislador alterou a competência e portanto inovou, não se põe sequer a questão da violação do princípio do juiz natural, porquanto o procedimento se iniciou após o início de vigência da atual redação. De qualquer modo, como diz FIGUEIREDO DIAS, no clássico mas sempre atual estudo, (...) o princípio do juiz legal ou natural esgota o seu conteúdo de sentido material na proibição da criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certo causa penal. Se bem seja certo que, deste modo, cabe no princípio uma qualquer ideia de anterioridade da fixação da competência relativamente ao facto que vai ser apreciado, não se trata nele tanto (diferentemente do que sucede com o princípio do “nullum crimen, nulla poena sine lege”) de erigir uma proibição geral e absoluta de “retroactividade”, quanto sobretudo de impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em suma, que compreensivamente se pode designar pela raison d´Etat – conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado-deDireito. (...) O princípio tem a ver com a preservação da independência dos tribunais perante o poder político e com a proibição de criação ou de determinação de uma competência ad hoc, de excepção, de um certo tribunal para uma certa causa .
Ora, no nosso caso, nada há de parecido com a criação ad hoc, ou a apreciação de uma certa causa penal. A alteração determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para legislativa não teve motivações de ordem política ou análoga — aquilo, em suma, que compreensivamente se pode designar pela raison d’Etat — que conduza a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado-de-Direito; a alteração não mexe com a independência dos tribunais perante o poder político e com a proibição de criação ou de determinação de uma competência ad hoc, de excepção, de um certo tribunal para uma certa causa. Assim não ocorre qualquer violação do princípio do juiz natural.
Uma última nota para dar notícia, que se julga relevante, que este entendimento quanto ao sentido da resolução do conflito de competência é comum a todos os presidentes das secções criminais deste Tribunal da Relação do Porto.
Decisão:
Julga-se competente para proferir o despacho a que se refere o art.º 384.º do Código de Processo Penal o senhor juiz do TIC do Porto.”
Entre muitos outros, poderíamos ainda citar no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 21 de Dezembro de 2010 (Proc. n.º 858/10.5ELSB.L1-3, in www.dgsi.pt).
Aliás, desconhecemos qualquer jurisprudência dos tribunais superiores que seja em sentido contrário.
2.5. Concordamos inteiramente com o sentido e os fundamentos da decisão da Relação do Porto, atrás transcrita.
O princípio do juiz natural ou do juiz legal tem expressa consagração no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.
O Tribunal Constitucional já por diversas ocasiões foi chamado a pronunciar-se sobre o verdadeiro alcance e sentido de tal princípio.
Foi, no entanto, no Acórdão n.º 614/2003 que o Tribunal tratou de forma exaustiva tal matéria, recorrendo à doutrina e jurisprudência constitucional, quer nacional, quer estrangeira.
Do aí afirmado podem retirar-se as seguintes conclusões:
– É ao conjunto de regras, gerais e abstractas mas suficientemente precisas (embora possivelmente com emprego de conceitos indeterminados), que permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo, que se refere a garantia do “juiz natural”, pois é esse o alcance que é requerido pela sua razão de ser, de evitar a arbitrariedade ou discricionariedade na atribuição de um concreto processo a determinado juiz ou a determinados juízes.
– Para além desta dimensão positiva, incluindo o aspecto da organização interna dos tribunais, o princípio tem, igualmente, uma vertente negativa, consistente na proibição de afastamento de regras referidas, num caso individual – o que configuraria uma determinação ad hoc do tribunal.
Podemos ainda acrescentar que, a nível processual, o princípio “representa uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal, tendo a ver com a independência dos tribunais perante o poder político e proibição e criação (ou determinação) de uma competência ad hoc (de excepção) de um certo tribunal para uma certa causa – em suma, tribunais ad hoc” (Acórdão n.º 25/94).
Violará a norma que constitui objeto do recurso, aquele princípio constitucional?
A resposta é negativa.
Efectivamente, estabelecendo a lei qual é, nestes casos, o tribunal (juiz) competente para proferir despacho de concordância ou discordância com a decisão do Ministério Público, não vemos como pode estar a ser violado o princípio do juiz natural.
Mesmo que a actual redacção do artigo 384º, nº 2, do CPP, constituísse clara e inequivocamente, uma inovação em relação ao regime anterior (o que, como se viu, não é liquido), tal apenas poderia significar uma alteração de competência, introduzida pelo legislador competente para tal (artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição)
Aliás, tendo em atenção a natureza do instituto da suspensão provisório do processo e as competências que o juiz de instrução detém na estrutura do nosso processo penal, parece-nos que atribuição daquela competência é a posição mais coerente com o sistema.
Convém, no entanto, precisar um aspecto.
O n.º 1 do artigo 385.º prevê que a iniciativa de suspender provisoriamente o processo pode ocorrer até ao início da audiência, podendo inclusivamente, partir do próprio tribunal.
É evidente que, nestes casos, outros problemas se poderão levantar - quanto a saber qual o juiz competente –, problemas de que a decisão do Tribunal da Relação do Porto nos dá conta, em larga medida.
É natural também que, nesta matéria, se levantem “novas” questões de inconstitucionalidade.
Acontece, porém, que todas estas questões, por pertinentes que sejam, mesmo do ponto de vista da sua constitucionalidade, não têm de ser tratadas ou sequer abordadas na apreciação do mérito do presente recurso.
Efectivamente, a situação que ocorreu nos presentes autos – e que necessariamente modela a dimensão normativa -, foi a seguinte: a iniciativa pertenceu ao Ministério Público logo que o arguido lhe foi apresentado, teve a concordância deste e foram os autos remetidos ao Senhor Juiz de Instrução para decidir a final.
2.6. Diremos ainda que, no caso dos autos, a estranha decisão de um Senhor Juiz de Instrução mandar autuar o expediente como processo sumário, não tem qualquer relevância para a apreciação da questão de constitucionalidade que vem colocada.
2.7. Não sendo a norma do nº 2 do artigo 384º do CPP, violadora do princípio do juiz natural, não vislumbramos minimamente como pode ela violar os preceitos agora indicados na decisão recorrida (os artigos 202.º, 203.º, 209º, nº 1, alínea a), 210.º, n.º 3, e 211.º, n.º 2), da Constituição).
3. Conclusão
1. Tendo a iniciativa de suspender provisoriamente o processo partido do Ministério Público logo que o arguido se apresentou para ser julgado em processo sumário, a norma do nº 2 do artigo 384º do CPP, na redação dada pela Lei nº 26/2010, de 30 de agosto, enquanto determina que é o juiz de instrução o competente para concordar ou discordar daquela decisão do Ministério Público (artigo 281º, nº 1, do CPP), não viola o princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32º, nº 9, da Constituição, nem qualquer outro preceito constitucional, designadamente os artigos 202.º, 203.º, 209º, nº 1, alínea a), 210.º, n.º 3, e 211.º, n.º 2, não sendo, por isso, inconstitucional.
2. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso.
3. Corridos os vistos, importa decidir.
O Tribunal conheceu de questão em tudo idêntica no Acórdão n.º 7/12; e tal como nesse aresto se sublinhou, também agora se afigura ser previamente de ponderar se deve ou não conhecer-se do objeto do recurso, atendendo à jurisprudência que, nas sua alegações, o Ministério Público lembrou a propósito da questão da atribuição de competência pela norma do n.º 2 do artigo 384.º do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 26/2010. Na verdade, a fundamentação dos despachos sucessivamente produzidos no mesmo tribunal vai apresentando variações no manifesto intuito de provocar, por via do recurso previsto na dita alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, uma decisão do Tribunal Constitucional que substancialmente aprecie a questão da conformidade constitucional da norma 'desaplicada'.
Mas o fundamento expresso no caso em presença afasta-se do juízo de ilegalidade assente na violação das regras atributivas de competência consagradas nos artigos 18.º, n.º 2, 79.º e 102.º da LOTJ, normas às quais não é reconhecido valor paramétrico ou de prevalência sobre as normas processuais penais. Entende-se agora que o n.º 2 do artigo 384.º do CPP, ao afastar a competência de um determinado tribunal, violaria normas ou princípios constitucionais relativos à organização dos tribunais, razão pela qual terá sido desaplicada.
É, assim, de conhecer do recurso.
4. Já se afirmou que o Tribunal conheceu desta matéria no Acórdão n.º 7/12, cuja fundamentação é transponível para o caso em presença. Diz o aresto:
«[...] Está, pois, em causa a norma do n.º 2 do artigo 384.º do CPP interpretado no sentido de que compete ao juiz de instrução criminal proferir despacho sobre a suspensão provisória do processo quando o arguido tenha sido apresentado para julgamento em processo sumário e o Ministério Público entenda, com a concordância do arguido, que se justifica essa suspensão.
4. A decisão recorrida considera inconstitucional a norma em causa por violação dos artigos 202.º (função jurisdicional), 203.º (independência dos tribunais), 210.º, n.º 2 e 211.º, n.º 2 (competência e especialização dos tribunais judiciais) e 32.º, n.º 9 (princípio do juiz natural) da Constituição. Vislumbra todas estas desconformidades com a Constituição a partir de um comum pressuposto: o de que a norma recusada permite subtrair ao tribunal competente para o julgamento em processo sumário uma causa que já lhe estava afeta.
Ora, este pressuposto é insubsistente. Na dimensão normativa em apreciação – como adverte o Ministério Público, outras situações com as correspondentes hipóteses normativas são configuráveis, colocando problemas específicos que aqui não cumpre apreciar – o processo encontra-se na chamada “fase pré-judicial” do processo sumário, em que o Ministério Público exerce importantes poderes processuais, aliás reforçados pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto e pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. Actualizada, pág. 992).
Com efeito, o arguido detido que deva ser julgado em processo sumário é apresentado (ou apresenta-se, quando tenha sido previamente libertado com essa notificação) ao Ministério Público (n.º 1 do artigo 382.º do CPP). O Ministério Público, depois de interrogar o arguido se o julgar conveniente, apresenta-o ao juiz para sujeição a julgamento em processo sumário, acompanhado de um ato acusatório formal ou equivalente (n.º 2 do artigo 382.º do CPP). Mas também pode, sem contar com a faculdade de realização de diligências essenciais à descoberta da verdade, introduzida pela Lei n.º 26/2010, optar pelo arquivamento imediato ou diferido dos autos ou pela tramitação sob a forma de processo comum ou abreviada, se não estiverem reunidos os pressupostos para julgamento em processo sumário ou se justificar a dispensa de pena ou a suspensão provisória do processo (P. Pinto de Albuquerque, loc cit., pag 993).
Assim, como quer se classifique esta fase do procedimento, enquanto o Ministério Público não promover o julgamento em processo sumário, não pode dizer-se que a causa já estava afeta a um determinado tribunal, de modo a que corresponda a um discurso jurídico razoável convocar os princípios constitucionais relativos à organização e independência dos tribunais e a garantia inerente ao princípio do juiz natural pelo facto de o juiz chamado a intervir não ser o juiz que seria competente para o julgamento. Na verdade, para que tivesse sentido colocar uma questão de violação da independência dos tribunais ou de subtracção da causa ao juiz designado por lei, seria, antes do mais, necessário que a pretensão punitiva já tivesse sido transmitida pelo Ministério Público ao juiz do tribunal competente para julgamento em processo sumário, de tal modo que viesse a ser privado desse concreto poder judicativo ou da inerente autonomia decisória por virtude da atribuição da competência em causa a um outro juiz. A circunstância de o processo ter dado entrada nos serviços administrativos do tribunal de pequena instância criminal – sejam eles da secretaria do Ministério Público ou na secretaria judicial desse tribunal – é, para este efeito, irrelevante. Poderá gerar dificuldades burocráticas quanto à competência para o processamento, mas não passa disso mesmo, de uma questão organizatória dos serviços de secretaria. Se o feito não chega a ser introduzido em juízo, não há risco de desconsideração da competência ou da independência do juiz respectivo. E os problemas que pode levantar a intervenção do juiz de instrução nas circunstâncias da hipótese normativa sujeita a apreciação são os mesmos que essa competência para o despacho de concordância com a suspensão provisória do processo em geral suscita e que não estão aqui em discussão.
5. Mas, mesmo que se entenda que não basta esta falência do pressuposto básico em que assenta a retórica argumentativa do despacho recorrido e se considere necessário analisar a relação da norma em causa com cada um dos princípios constitucionais invocados, ainda assim a improcedência dessa fundamentação é manifesta.
5.1. O artigo 203.º da Constituição dispõe que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Sendo independentes em relação aos demais poderes do Estado, os tribunais também são independentes entre si, salvo as relações de hierarquia ou supra ordenação dentro de cada categoria de tribunais (artigos 210.º, 212.º e 221.º da CRP). No caso, o atentado que o despacho recorrido vê ao princípio da independência dos tribunais resultaria de a lei conduzir a que um tribunal se imiscua na prática de actos num processo que, segundo as regras gerais de organização judiciária, seria da competência de um outro tribunal.
A independência dos tribunais materializa-se ou afere-se substancialmente pela independência dos respectivos juízes. Na vertente que pode ser relevante, traduz-se no dever de julgar apenas segundo a Constituição e a lei, sem sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores. Como dizem G. Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., Coimbra, 2010, pág. 514, a independência dos tribunais e respectivos juízes “convoca várias dimensões densificadoras da liberdade à independência no julgar: (i) liberdade contra injunções ou instruções de quaisquer autoridades; (ii) liberdade de decisão perante coações ou pressões destinadas a influenciar a actividade de jurisdictio; (iii) liberdade de acção perante condicionamento incidente sob a actuação processual; (iiii) liberdade de responsabilidade, pois só ao juiz cabe extrinsecar o direito a obter a solução justa do feito submetido à sua apreciação”.
Ora, é manifesto que a circunstância de a competência para proferir despacho relativamente a determinada matéria, numa causa penal que não chegou a ser submetida ao juiz de julgamento pertencer a outro juiz é indiferente ao poder (ou ao dever) de o tribunal supostamente privado da competência julgar sem sujeição a qualquer ordens ou instruções. O juiz de instrução, ao dar ou negar a sua concordância à suspensão provisória do processo, não dá qualquer ordem nem afecta ou influi em qualquer julgamento que, no caso concreto, o juiz do tribunal de pequena instância criminal devesse proferir. Não pode, pois, considerar-se violados os artigos 202.º e 203.º da Constituição.
5.2. Igualmente ostensiva é a improcedência da argumentação desenvolvida com base no artigo 211.º da Constituição.
O n.º 2 do artigo 211.º permite que na primeira instância dos tribunais judiciais haja tribunais com competência específica e tribunais especializados para julgamento de matérias determinadas. Independentemente do sentido que deva conferir-se a esta distinção e que não interessa dilucidar, esta previsão não confere valor constitucional às normas de organização judiciária que, ao seu abrigo, tenham repartido a competência entre os diversos tribunais judiciais. E, por outro lado, também não reserva esse conteúdo para as leis especificas de organização judiciária, proibindo que as leis de processo se ocupem da matéria, porventura derrogando pontualmente o que daquelas resultaria.
Deste modo, independentemente do mérito da solução adoptada pelo n.º 2 do artigo 384.º do CPP, não é possível retirar desta norma constitucional qualquer vinculação do legislador quanto a saber se a concordância com a suspensão provisória do processo deve competir ao juiz de instrução ou ao tribunal do julgamento ou que proíba a lei de processo de se ocupar ela própria dessa matéria.
5.3. Finalmente, também não procede a argumentação de que a norma em causa viola o princípio do “juiz legal” ou do “juiz natural”, consagrado no n.º 9 do artigo 32.º da Constituição.
Como se disse no Acórdão n.º 614/03, “o princípio do “juiz natural”, ou do “juiz legal”, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.º da Constituição). Designadamente, a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto. A garantia do “juiz natural” tem, assim, um âmbito de proteção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente – isto é, pelas regras de determinação do juiz “natural”, ou “legal” (assim G. Britz, ob. cit, pág. 574, Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14ª ed., Heidelberg, 1998, pág. 269). E, independentemente da distinção no princípio do juiz legal de um verdadeiro direito fundamental subjectivo de dimensões objectivas de garantia, pode reconhecer se nesse princípio, desde logo, uma dimensão positiva, consistente no dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstractas”.
Ora (e prescindindo da referência a outros problemas que para a hipótese em apreciação não relevam e que são versados no referido acórdão), nenhum risco para este princípio assim entendido comporta uma norma como a do n.º 2 do artigo 384.º do CPP na dimensão a que foi recusada interpretação. A competência para o despacho em causa encontra-se predeterminada por lei geral e abstracta. É competente o tribunal de instrução que, segundo os factores de conexão relevantes, o seria para proferir despacho da mesma natureza e conteúdo em qualquer outro tipo de processo, sem possibilidade de actuação de qualquer dos sujeitos processuais ou de terceiros que conduza à manipulação ou determinação discricionária do tribunal ou tribunais que hão de intervir no processo. Para que se considere observado o princípio do “juiz natural” é suficiente a existência de regras que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstractas, sendo indiferente que essa norma opte pelo “tribunal de instrução” ou pelo tribunal que seria competente para o julgamento se o processo houvesse de chegar a tal extremo. [...]»
É esta a doutrina que aqui se reafirma.
5. Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 9 de fevereiro de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.