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Processo nº 238/91
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A., devidamente identificado nos autos, foi condenado no Tribunal do Círculo Judicial de Braga, por acórdão de 8 de Fevereiro de 1990, como autor de um crime de ofensas corporais com dolo de perigo, previsto e punido no artigo 144º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, na pena de dezoito meses de prisão, determinando-se que, transitada a decisão, a mesma fosse comunicada para os devidos efeitos à comissão do recenseamento eleitoral.
Recorreram o réu e o assistente constituído nos autos mas a Relação do Porto, por acórdão de 11 de Julho seguinte, negou provimento aos recursos e manteve o decidido no acórdão recorrido.
Interpôs então o mencionado réu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 6 de Março de 1991, confirmou a anterior decisão excepto no respeitante à comunicação à comissão de recenseamento, a propósito do que ponderou:
'3.- Verifica-se, porém, que no acórdão do tribunal colectivo foi ordenada a comunicação da condenação do réu à Comissão Recenseadora eleitoral, que foi mantida no acórdão recorrido da Relação do Porto.
Como vem sendo entendido neste Supremo Tribunal e no Tribunal Constitucional, são inconstitucionais as normas dos artigos 21º, nº 1,
29º e 31º da Lei nº 68/78, de 3 de Novembro, porquanto as comunicações à Comissão Recenseadora visam a eliminação do nome dos réus nos cadernos eleitorais, implicando a produção automática de perda de direitos civis e políticos por mero efeito da condenação (acórdãos do Supremo, de 16/11/90, no recurso nº 40.296; de 19/1/90, na Colectânea, XV, t. 1, pág. 6, e acórdão do Tribunal Constitucional, de 20/4/86, no Diário da República, I Série, de 3 de Julho).
Na verdade, como se apontou no acórdão de 24/1/90, no recurso nº 40.479, não é pelo simples facto da condenação, nomeadamente por crime de homicídio voluntário, que deve resultar a incapacidade eleitoral do agente, até porque ela pode prejudicar desnecessariamente a sua reinserção social.
Nestes termos, julgam o recurso improcedente e revogam o acórdão recorrido na parte em que manteve a comunicação à Comissão Recenseadora eleitoral'.
2.- Desta decisão foi interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, de natureza obrigatória posto que consubstancia uma recusa de aplicação de normas, com fundamento em inconstitucionalidade.
Para o efeito, considerou o magistrado recorrente
- e, nas alegações, reiterou o Senhor Procurador-Geral Adjunto - ter havido manifesto erro material na indicação constante do acórdão das normas desaplicadas, o que igualmente temos por líquido.
Na verdade, e como se salienta naquelas alegações, trata-se da Lei nº 69/78 e não da Lei nº 68/78, a primeira de 3 de Novembro, esta última de 16 de Outubro e respeitante à orgânica das empresas em autogestão, devendo-se certamente a lapso a referência ao nº 1 do artigo 21º uma vez que o artigo 21º da Lei nº 69/78 - tal como o preceito correspondente da Lei nº 68/78 - não tem números e cuida de matéria irrelevante para o caso
('Consideram-se novas inscrições no recenseamento as dos cidadãos que, não estando inscritos, possuam capacidade eleitoral').
Delimitado, desta forma, o âmbito normativo do recurso, tal como equacionado pelo Ministério Público, estão em causa as normas do nº 1 do artigo 29º e da alínea b) do nº 1 do artigo 31º da Lei do Recenseamento Eleitoral.
Corridos que foram os vistos legais, importa decidir.
II
1.- Dispõem os artigos 29º e 31º da Lei nº 69/78, na parte que interessa, preceitos que o acórdão recorrido recusou aplicar por os considerar inconstitucionais, nessa medida revogando a anterior decisão:
'ARTIGO 29º
(Informações relativas a interditos e condenados)
1.- Para efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo
31º, os juízos de direito e as auditorias dos tribunais militares no continente, nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e em Macau enviam mensalmente, por intermédio das respectivas secretarias, à comissão recenseadora da freguesia da naturalidade, relação contendo os elementos de identificação referidos no artigo anterior dos cidadãos que, tendo completado 18 anos de idade, hajam sido objecto de sentença com trânsito em julgado que implique privação da capacidade eleitoral nos termos da respectiva lei.
2.- A comissão recenseadora da freguesia da naturalidade ou o Secretariado Técnico dos Assuntos para o Processo Eleitoral, conforme os casos, enviam extracto da relação às comissões em que os mesmos se encontram recenseados'.
'ARTIGO 31º
(Eliminação de inscrições)
1.- Devem ser eliminadas dos cadernos de recenseamento:
-------------------------------
b) As inscrições de cidadãos abrangidos pelas incapacidades eleitorais previstas na lei;
------------------------------
2.- ------------------------------
3.- ------------------------------
4.- ------------------------------
5.- -----------------------------'
2.- As normas que delimitam o objecto do recurso, desaplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça - a do nº 1 do artigo 29º e a da alínea b) do nº 1 do artigo 31º da Lei nº 69/78, ora transcritas - impõem aos juízes o dever de, por intermédio das respectivas secretarias, enviarem mensalmente à comissão recenseadora da freguesia da naturalidade uma relação contendo os elementos de identificação dos cidadãos que, tendo completado 18 anos de idade, hajam sido objecto de sentença com trânsito em julgado que os condene em pena de prisão por crime doloso (ou por crime doloso infamante), com vista à sua eliminação dos cadernos de recenseamento por terem passado a estar abrangidos por incapacidade eleitoral activa.
Pretende-se, com a medida, dar execução ao que a legislação eleitoral dispõe em matéria de privação da capacidade eleitoral activa quanto a condenados a pena de prisão por crime doloso infamante, ou simples crime doloso, enquanto não hajam expiado a respectiva pena.
É o caso do disposto nos artigos 3º do Decreto-Lei nº 319-A/76, de 3 de Maio (Lei eleitoral do Presidente da República), 2º da Lei nº 14/79, de 16 de Maio (Lei eleitoral da Assembleia da República) e 3º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro (Lei eleitoral das Autarquias Locais).
Diz-nos, com efeito, o artigo 3º do Decreto-Lei nº
319-A/76, no passo que interessa:
'Não são cidadãos eleitores:
----------------------------------
c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso infamante, enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos'.
E o artigo 2º da Lei nº 14/79:
'1.- Não gozam de capacidade eleitoral activa:
-----------------------------------
c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso, enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos.'
E, finalmente, o artigo 3º do Decreto-Lei nº
701-B//76:
'Não são eleitores:
-----------------------------------
c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso infamante enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos.'
3.- Como se escreveu em recente acórdão desta Secção, que, dada a similitude de situações seguiremos de perto (Acórdão nº 238/92, de
30 de Junho, ainda inédito), a efectiva concretização, no plano das realidades concretas, das incapacidades eleitorais automáticas assim estabelecidas pelas leis eleitorais, só se apresenta como viável através do exacto e continuado conhecimento das decisões judiciais que delas são causa, e daí a obrigatoriedade imposta aos tribunais de prestar às comissões recenseadoras as correlativas informações.
No caso vertente - com mais evidência do que foi objecto do citado acórdão nº 238/92, apoiado numa desaplicação implícita das normas em causa - o Supremo foi explícito ao afastar, por inconstitucionalidade, as normas dos artigos 21º, 29º e 31º da Lei nº 69/78
(corrigido o lapso material mencionado) mas, como se viu, o quadro normativo deve, na verdade, circunscrever-se aos assinalados limites do objecto do recurso, sendo certo que aquele Tribunal teve presente os transcritos preceitos das leis eleitorais instituidores de incapacidades eleitorais automáticas pois, nomeadamente, baseou-se no facto de as comunicações às comissões recenseadoras implicarem a produção automática da perda de direitos civis e políticos por mero efeito de condenação.
Mais ainda, por força das regras delimitadoras do
âmbito de cognição deste Tribunal no domínio dos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, o objecto do recurso, como se ponderou no Acórdão nº 238/92, haverá de se circunscrever à questão da constitucionalidade da norma do artigo 29º, nº 1, da Lei nº 69/78, enquanto impõe aos juízes de direito o dever de comunicarem às comissões recenseadoras a identificação dos cidadãos abrangidos pelos normativos referidos com vista à sua eliminação dos cadernos de recenseamento.
Ou seja, só a norma do artigo 29º, nº 1, foi objecto de desaplicação directa e efectiva.
Decorre ainda que as várias normas que estabelecem incapacidades eleitorais não carecem, no plano da produção dos seus efeitos, de uma mediação judicial, operando directa e automaticamente e daí que, como se também escreveu no citado acórdão, 'não se possa afirmar ter existido quanto a elas uma aplicação 'funcionalmente adequada', isto é, uma aplicação susceptível de desencadear um juízo de constitucionalidade próprio e directo.'
A esta luz, a obrigatoriedade de participação por banda dos tribunais constituiu o meio mais simples encontrado para dar efectivação prática às disposições que estabelecem incapacidades eleitorais activas em consequência directa e automática da condenação definitiva em certos crimes.
Este efeito automático está associado tanto à natureza dos crimes praticados como à natureza da pena aplicada, substituindo a incapacidade enquanto durar a execução da pena.
A natureza da pena aplicada é, assim, determinante para a operatividade automática da perda de um direito político como é o do sufrágio.
Daí, o equacionar-se justificadamente a questão de saber se não estará em causa a norma do nº 4 do artigo 30º da Constituição da República (CR), segundo a qual:
'Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.'
4.- É ponto sobre o qual recaíram recentemente o aludido Acórdão nº 238/92, da 1ª Secção, como o nº 249/92, de 1 de Julho, da 2ª Secção, também inédito, ambos congregando unanimidade de voto.
Como se deixou já consignado, seguiremos muito de perto, quando não ipsis verbis, o que no primeiro dos citados acórdãos se argumentou a propósito.
III
1.- No catálogo constitucional dos direitos políticos ou de participação política constam, entre outros, os de participação na vida pública, de sufrágio e de acesso a cargos públicos (artigos 48º, 49º e 50º da Lei Fundamental, respectivamente).
No que ao direito de sufrágio activo respeita, consiste ele no direito de participar em eleições, no direito de votar, e, por força do princípio da universalidade do sufrágio, assiste a todos os cidadãos, excluindo-se todo e qualquer sufrágio restrito em função de certos requisitos específicos pois, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º ed., 1º vol., pág. 276 - 'a universalidade do sufrágio não é mais do que a concretização dos princípios da generalidade e da igualdade que regem todos os direitos fundamentais.'
Assim, envolve o direito de sufrágio, directo e universal, o direito ao recenseamento eleitoral, previsto, aliás, no artigo
116º, nº 2, da Constituição.
É legítima, por conseguinte, a interrogação do intérprete: face à assinalada universalidade do direito de sufrágio, manifestado na sua vertente activa, e à normação contida no preceito constitucional do artigo 30º, nº 4, pode configurar-se adequadamente conforme à Lei Fundamental o comando legal que impõe aos juízes de direito a actuação constante da norma do artigo 29º, nº 1, da Lei nº 69/78?
Entendemos que não.
2.- Como se disse no Acórdão nº 238/92, a norma constitucional do artigo 30º, nº 4, introduzida pela revisão de 1982 e reproduzida no artigo 65º do Código Penal, veio consagrar a eliminação dos chamados 'efeitos necessários das penas'.
Na jurisprudência do Tribunal Constitucional vem-se sublinhando derivar este nº 4 do artigo 30º, dos princípios primordiais definidores da actuação do Estado de direito democrático estruturantes da Lei Fundamental, como sejam o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana
(artigo 1º) e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 20º), como o atestam os Acórdãos nºs. 16/84, 165/86 e 353/86, publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Maio de 1984, I Série, de 3 de Junho de 1986,e II Série, de 9 de Abril de 1987, respectivamente.
Decorrendo deste postulado os grandes princípios constitucionais de política criminal - o princípio da culpa, o da necessidade da pena ou das medidas de segurança, o da legalidade, o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, o princípio da humanidade e da igualdade - concluiu-se que se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa desses princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que constituiria flagrante atentado contra o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana.
Como se observou no citado Acórdão nº 238/92, 'a perda de direitos civis, profissionais e políticos deixou, assim por imperativo constitucional, de poder ter lugar como efeito automático de determinadas penas, entendendo-se compreendidas no âmbito desta proibição constitucional não só a perda desses direitos como efeito necessário de certas penas, mas também a sua perda automática por via da condenação por determinados crimes (cfr., sobre este específico ponto, Mário Torres, 'Suspensão de Demissão de Funcionários ou Agentes como efeito de Pronúncia ou Condenação Criminais', Revista do Ministério Público, ano 7º, nºs. 25 e 26, pp. 111 e 126, respectivamente e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 284/89, Diário da República, II Série, de 12 de Junho de 1989).'
3.- E como mais se desenvolveu naquele aresto:
'Na situação em apreço, o efeito automático da incapacidade eleitoral activa decorrente das normas dos artigos 3º, alínea c), do Decreto-Lei nº 319-A/76, 2º, nº 1, alínea c), da Lei nº 14/79 e 3º, alínea c) do Decreto-Lei nº 701-B/76, está associado, tanto à natureza dos crimes praticados (crimes dolosos ou crimes dolosos infamantes), como à natureza da pena aplicada (pena de prisão).
Aliás, considerando a vastidão da categoria dos crimes em causa, poderá mesmo dizer-se que o relevante na determinação da incapacidade é a natureza da pena aplicada - pena de prisão -, e tanto assim que a incapacidade subsiste enquanto durar a execução da pena.
Mas, e como quer que seja, à luz do entendimento jurisprudencial que tem sido definido, sempre as normas das diversas leis eleitorais que estabelecem a incapacidade eleitoral activa para os condenados a pena de prisão por crime doloso ou por crime doloso infamante, haveriam de se considerar inconstitucionais por violação do disposto no artigo 30º, nº 4, enquanto consequenciam a privação da capacidade eleitoral como decorrência automática da condenação pela prática de determinados crimes em certa pena, pena principal.
E a norma do artigo 29º, nº 1, da Lei nº 69/78, aqui directamente questionada, na medida em que se apresenta como condição de exequibilidade daqueles preceitos com os quais mantém uma manifesta relação instrumental, não pode deixar de se haver como violadora da mesma disposição constitucional.' IV
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, a norma do artigo 29º, nº 1, da Lei nº 69/78, de 3 de Novembro, enquanto impõe aos juízes de direito o dever de, por intermédio das respectivas secretarias, enviar mensalmente à comissão recenseadora da freguesia da naturalidade, relação contendo os elementos de identificação dos cidadãos que, tendo completado 18 anos de idade, hajam sido objecto de sentença condenatória com trânsito em julgado que implique privação da capacidade eleitoral nos termos das disposições constantes dos artigos 3º, alínea c), do Decreto-Lei nº 319-A/76, de 3 de Maio, 2º, nº 1, alínea c) da Lei nº 14/79, de 16 de Maio e 3º, alínea c) do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro.
b) Confirmar a decisão recorrida na parte que vem impugnada.
Lisboa, 29 de Setembro de 1992
Alberto Tavares da Costa
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920298.html ]