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Processo nº. 128/90
2ª Secção Relator: Cons. Mário de Brito
1. No recurso interposto para este Tribunal do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção Criminal) de 21 de Março de 1990 por A. decidiu a 2ª secção, pelo acórdão de fls. 267 (Acórdão nº. 350/91, de 4 de Julho):
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo
469.º do Código de Processo Penal de 1929, interpretada no sentido de que, em processo penal, o tribunal colectivo não é obrigado a fundamentar as respostas aos quesitos;
b) não julgar inconstitucional a norma do artigo
664.º do referido Código, interpretada no sentido de que, quando os recursos lhe vão com vista, o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o respectivo objecto com um dos seguintes limites: não lhe ser consentido emitir parecer que possa agravar a posição dos réus ou, quando isso aconteça, ser dada aos réus a possibilidade de responderem;
c) julgar inconstitucional a norma do artigo 665.º do mesmo Código, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934;
d) não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei nº. 14/84, de 11 de Janeiro, interpretada no sentido de que não é lícito ao arguido requerer a produção de prova pericial na fase do julgamento.
Desse acórdão recorreu para o plenário do Tribunal, ao abrigo do artigo 79.º-D da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o referido A., por ele ter decidido em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à norma do citado artigo 664.º pelo Acórdão deste Tribunal (1ª. secção) n.º
150/87, de 6 de Maio.
Na respectiva alegação concluiu o recorrente dever o plenário 'uniformizar a sua jurisprudência, relativamente ao âmbito de intervenção do Ministério Público a propósito do 'visto' a que se refere o artigo 664.º do Código de Processo Penal de 1929, no sentido definido pelo Acórdão n.º 150/87'.
Por seu lado, o magistrado do Ministério Público suscitou a questão do não conhecimento do recurso, 'por não existir oposição relevante entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento', e, quanto ao fundo, pronunciou-se no sentido da confirmação do acórdão recorrido.
Cumpre decidir.
2. O artigo 79º.-D da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, veio prever e regular o recurso para o plenário do Tribunal das decisões das suas secções, em caso de divergência entre elas.
Diz o seu n.º 1:
Se o Tribunal Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou recorrido.
Importa em primeiro lugar averiguar se o Acórdão n.º
350/91 decidiu 'em sentido divergente' do adoptado quanto à norma em questão - a do artigo 664.º do Código de Processo Penal de 1929 - pelo Acórdão n.º 150/87 de 6 de Maio (no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1987, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º. volume, pág. 709).
O Acórdão n.º 150/87 concluiu assim:
Nestes termos, julga-se inconstitucional a norma do artigo 664.º do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 32.º, nºs. 1 e 5, da Constituição.
Em consequência, concede-se provimento ao recurso, devendo o acórdão impugnado ser reformulado em consonância com a presente decisão.
A conclusão do Acórdão nº. 350/87 é bem diferente. Pelo exposto - diz-se aí:
a) não se julga inconstitucional a norma do artigo 664º. do Código de Processo Penal de 1929, interpretada no sentido de que, quando os recursos lhe vão com vista, o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o respectivo objecto com um dos seguintes limites: não lhe ser consentido emitir parecer que possa agravar a posição dos réus ou, quando isso aconteça, ser dada aos réus a possibilidade de responderem.
E no próprio Acórdão nº. 350/91 chegou a classificar-se a solução por ele perfilhada - no seguimento da que havia sido adoptada nos Acórdãos nºs. 398/89, de 18 de Maio, e 495/89 e 496/89, ambos de 13 de Julho, também da 2ª. secção - como 'oposta' à do Acórdão nº. 150/87.
É certo que no Acórdão nº. 150/87 se lê a dado passo:
A norma do artigo 664º. do Código de Processo Penal (reproduzida no essencial no artigo 416º. do novo Código aprovado pelo Decreto-Lei nº. 78/87, de 17 de Fevereiro), quando interpretada no sentido de conceder ao Ministério Público, para além já de qualquer resposta ou contradita da defesa, a faculdade de trazer aos autos uma nova e eventualmente mais aprofundada argumentação contra o arguido, não pode deixar de ser havida como lesiva dos princípios consagrados no artigo 32º., nºs. 1 e 5, da Constituição.
Mas a decisão abstrai dessa interpretação para concluir, como ficou referido, que a norma é inconstitucional - sem qualquer restrição -, por violação do disposto no artigo 32º., nºs. 1 e 5, da Constituição.
A divergência entre os dois acórdãos é, pois, manifesta:
Para o Acórdão nº. 150/87, o artigo 664º. é inconstitucional, por violação dos nºs. 1 e 5 do artigo 32º. da Constituição, porque, nos dizeres do próprio acórdão, consente ao Ministério Público 'a emissão de uma pronúncia sobre a relação jurídica substancial visando a essência da própria questão' e porque 'a reciprocidade dialéctica arguido-acusador resulta quebrada e por esta via, não obstante o especial estatuto do Ministério Público, atingido no seu núcleo essencial o direito de defesa do arguido, assim impedido de contrariar o posicionamento adverso'.
O Acórdão nº. 350/91, pelo contrário, salva a constitucionalidade da norma, desde que seja vedado ao Ministério Público emitir parecer que possa agravar a posição dos réus ou, no caso de por ele ser emitido parecer que possa agravar essa posição, os réus tenham possibilidade de responder.
Para negar a divergência são irrelevantes argumentos como o invocado pelo magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, segundo o qual, 'se a 2ª secção se visse confrontada com situação similar
àquela sobre que versou o Acórdão nº. 150/87 muito plausivelmente concluiria pela inconstitucionalidade da norma questionada tal como foi interpretada e aplicada no caso concreto'.
Por um lado, nos termos do nº. 6 do artigo 280º. da Constituição e do nº. 1 do artigo 71º. da Lei nº. 28/82, a competência do Tribunal Constitucional é restrita à questão da inconstitucionalidade suscitada e, por outro lado, o nº. 1 do artigo 80º. da Lei nº. 28/82 manda que, se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixem ao tribunal de onde provieram a fim de que este, consoante for o caso, reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com o julgamento sobre essa questão, e o nº. 2 do mesmo preceito dispõe que, no caso de o juízo de constitucionalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa.
Ou seja: - decidida a questão da inconstitucionalidade suscitada no processo, a reforma da decisão recorrida é já feita, ou mandada fazer, pelo tribunal de onde proveio o processo, em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.
Apurada a divergência, vejamos como solucioná-la.
3. Por força do artigo 664º. do Código de Processo Penal de 1929, 'os recursos, antes de irem aos juízes que têm de os julgar, irão com vista ao Ministério Público, se a não tiver tido antes'.
Também o nº. 1 do artigo 707º. do Código de Processo Civil, incluído nas disposições por que se rege o recurso de apelação, manda que, apresentadas as alegações, se dê vista do processo ao Ministério Público, se não tiver alegado nem respondido no tribunal superior, 'para se pronunciar sobre a má fé dos litigantes e a nota de revisão efectuada pela secretaria e para promover as diligências adequadas, quando verifique a existência de qualquer infracção da lei'
Para afastar a possível inconstitucionalidade daquele artigo 664º., poderia ser-se tentado a interpretá-lo com o âmbito restrito que lhe é fixado pelo preceito correspondente do Código de Processo Civil.
Mas a restrição constante desse preceito não se coaduna com a posição do Ministério Público no processo penal.
Nem por isso, todavia, se deverá concluir pela inconstitucionalidade da norma.
Como ensina o Professor J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª. edição, totalmente refundida e aumentada, 1991, parte II, capítulo 3, E|, II, 'no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição' (Sobre o mesmo princípio e no mesmo sentido vejam-se ainda autor e obra citados, parte IV, capítulo 27, B|, IV, nº.
3.3, capítulo 29, B|, III, nº.3.3, e C|, III, nº. 1.3.2, e capítulo 30, C|, II).
Ora, foi em obediência a esse princípio, e pelas razões constantes do Acórdão nº. 398/89, citado no acórdão recorrido, e a que este fez apelo, que se concluiu pela inconstitucionalidade da norma, na interpretação dele constante.
Entende-se, na verdade, que, para assegurar as
'garantias de defesa' constantes do artigo 32º., nºs. 1 e 5, da Constituição, basta que, após o parecer do Ministério Público, o réu tenha a possibilidade de responder.
Mas a resposta do réu só se justifica, como se salientou naqueles acórdãos, quando o Ministério Público se pronuncie em termos de poder agravar a sua posição, e não sempre que o Ministério Público se pronuncie, sejam quais forem os termos em que o faça.
É, assim, de confirmar o acórdão recorrido.
Apenas se afigura mais correcto eliminar da respectiva conclusão o passo em que nela se diz 'não lhe [ao Ministério Público] ser consentido emitir parecer que possa agravar a posição dos réus': - por um lado, poderia ver-se nessa proibição uma limitação não consentânea com o estatuto do Ministério Público; por outro lado, a pronúncia do Ministério Público em termos de poder agravar a posição dos réus é sempre compensada com a possibilidade de resposta por parte destes.
4. Pelo exposto, confirma-se, fundamentalmente pelas razões dele constantes, o acórdão recorrido, com a alteração apontada, concluindo-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma do artigo
664º. do Código de Processo Penal de 1929, interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 1993
Mário de Brito Fernando Alves Correia Bravo Serra Alberto Tavares da Costa Messias Bento Vítor Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Não subscrevi a tese do acórdão, que sustenta a possibilidade de uma interpretação conforme à Constituição do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, por via do asseguramento de um direito de resposta, nos casos em que o visto do Ministério Público possa agravar a situação do arguido.
Em primeiro lugar, pela inconsistência lógica dessa tese. A constitucionalidade de uma norma não pode depender da eventualidade dos seus diferentes resultados. De uma norma não pode dizer-se que ela é constitucional ou inconstitucional conforme implique, no caso concreto, estas ou aquelas consequências. Como não pode dizer-se que ela é constitucional nuns casos e carece de uma interpretação conforme à Constituição, noutros casos. A norma não pode ser e não ser constitucional ao mesmo tempo, o seu confronto com a Constituição não pode depender do casuísmo dos seus resultados.
A solução interpretativa consagrada no acórdão traz ao sistema processual-penal o dado novo da resposta do arguido, resposta que condiciona aos casos em que o Ministério Público emita parecer susceptível de agravar a situação do mesmo arguido.
O problema 'dos casos' não é só um problema lógico.
É também o problema das garantias de defesa que a Constituição diz que devem ser asseguradas em Processo Penal. A indagação do sentido de agravamento ou não agravamento implicado no parecer do Ministério Público coenvolve um grau de subjectividade de todo incompatível com aquelas garantias. Quando e como é que a situação do réu é susceptível de ser agravada? Quando, no visto, o Ministério Público aponta para uma pena que excede aquela que foi proposta na acusação? Quando, não a excedendo, traz dados novos para o processo? Ou quando, não a excedendo, nem trazendo dados novos para o processo, o Ministério Público, no entanto, apresenta argumentos mais consistentes que os da acusação?
A realização do princípio do contraditório oscilará, assim, na medida da incerteza dos critérios e dos resultados da interpretação que é feita do parecer do Ministério Público. Além disso, implicará uma
'perversão metódica' no plano do controlo concreto de constitucionalidade.
Com efeito, a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 subsiste no sistema jurídico, ao menos em razão das regras de aplicação da lei no tempo. Sucederá que, nos casos em que tal norma se constitua em objecto de recurso de constitucionalidade, a instância de controlo, ou seja, o Tribunal Constitucional haverá de ultrapassar a sua competência específica para se debruçar sobre o conteúdo do visto do Ministério Público e sobre o da acusação, ajuizando sobre dados do processo que nada têm que ver com a natureza da sua competência.
Poder-se-á argumentar que a objectividade e a busca da verdade e da justiça que orientam a actuação do Ministério Público desqualificam o 'rigorismo' interpretativo que faz assentar na álea da determinação do sentido do visto uma ideia de incerteza no asseguramento das garantias do arguido.
Mas o princípio do contraditório é um elemento constitutivo do processo penal democrático. Como todas as garantias fundamentais ele liga-se à ideia de que o Estado constitucional é um Estado limitado e limitado precisamente por essas garantias. A objectividade e a procura de justiça não são um ponto de partida na análise da funcionalidade do contraditório - são antes o ponto de chegada, o resultado institucional do primado das garantias individuais.
Defendi a tese de que a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 é susceptível de uma interpretação conforme à Constituição se ao visto do Ministério Público for assinalada uma dimensão idêntica à do visto a que se refere o artigo 707º do Código de Processo Civil.
A minha tese afasta-se também da tese constante dos restantes votos de vencido, nos seguintes termos: esses votos atribuem ao princípio do contraditório a função positiva de obrigar a uma nova peça processual sempre que o Ministério Público proceda a considerações sobre o mérito da causa, isto é, inferem directamente do princípio do contraditório o estabelecimento de uma nova peça processual sem intermediação de lei processual organizatória. No meu entender, a interpretação da norma em apreço conjugada com a necessidade de observância do princípio do contraditório só pode ter como resultado a delimitação do âmbito do visto do Ministério Público.
Penso que este meu entendimento salvaguarda a constitucionalidade da norma, o funcionamento do princípio do contraditório e o rigor do formalismo processual.
Maria da Assunção Esteves
Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Armindo Ribeiro Mendes (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Antero Alves Monteiro Diniz (vencido, nos termos da declaração de voto junta).
António Vitorino (vencido, nos termos da declaração de voto junta). José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de Voto conjunta
1. Entende o acórdão que só deve ser dada aos réus a possibilidade de responderem 'se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de agravar a posição dos réus', 'e não sempre que o Ministério Público se pronuncie, sejam quais forem os termos em que o faça'. Nem sempre que o Ministério Público se pronuncia, nem só quando se pronuncia em termos de agravar a posição dos réus, devem estes ter direito de resposta. O acórdão não considera a alternativa que devia ter seguido: reconhecer tal direito sempre que o Ministério Público se pronuncie sobre o objecto do processo ou sobre a possibilidade do seu conhecimento.
2. Está fora de questão a possibilidade de os recursos irem com vista ao Ministério Público para os mesmos efeitos do artigo
707º, nº 1, do Código de Processo Civil: pronúncia sobre a má fé dos litigantes e a nota de revisão efectuada pela secretaria, promoção das diligências adequadas, quando verifique a existência de qualquer infracção da lei. É claro que para estes efeitos o Ministério Público desempenha apenas a sua função constitucional de defesa da legalidade democrática (artigo 221º da Constituição). Não se justifica nessa medida um direito de resposta do réu.
Só que, como bem nota o acórdão, 'não se coaduna com a posição do Ministério Público no processo penal' que se restrinja a sua intervenção aos mencionados efeitos comuns ao processo civil. Com efeito, também em fase de recurso no processo penal o Ministério Público representa o Estado no exercício da acção penal. É nessa qualidade que se pode pronunciar sobre o objecto do processo ou sobre a possibilidade do seu conhecimento, sem estar vinculado pelas anteriores alegações do representante do Ministério Público junto do tribunal a quo, e que pode até pedir a agravação da pena, com o limite do § 2º do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do artigo 1º da Lei nº 2 139 de 16 de Março de 1969. Esta possibilidade é expressamente reconhecida pelo artigo 667º, que para a hipótese de pedido de agravação da pena estabeleceu que sejam 'notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer para resposta no prazo de oito dias' (nº 2 do parágrafo 2º do mesmo artigo 667º).
O acórdão só se poderá referir, portanto, às hipóteses em que o Ministério Público se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, sem no entanto pedir a agravação da pena. Não especifica o acórdão quais são essas hipóteses, que podem variar consideravelmente consoante o ponto de vista (de cada réu, do Ministério Público, do tribunal) e consoante o termo da comparação (por comparação com a posição tomada pelo réu, isto é, sempre que não concordar com a posição deste, salva a hipótese de pedir uma solução mais favorável do que a pedida pelo próprio réu; ou por comparação com a posição anteriormente tomada pelo Ministério Público no tribunal a quo, isto é, sempre que disser algo de novo ou de diferente ou, pelo menos de substancialmente novo ou diferente, restando ainda saber se pode ainda agravar quando pedir menor pena, como parece poder - com melhores argumentos - ; ou por comparação com o interesse objectivo do réu, a julgar pelo tribunal e, então, mesmo que o Ministério Público aduzisse novos argumentos não haveria que ouvir o réu sempre que o tribunal já pudesse formar um juízo sem margens para dúvidas - ou por julgar esses argumentos, desde logo improcedentes, ou por os julgar, desde logo supérfluos).
Haverá, então, que considerar as seguintes hipóteses, entre outras, e determinar se nelas se pode agravar a posição dos réus:
- O Ministério Público pronuncia-se no sentido do não conhecimento do recurso interposto pelo réu, podendo prejudicar a sua posição processual, sem se referir à pena;
- O Ministério Público pronuncia-se a favor de menor pena, mas com novos argumentos, potencialmente mais poderosos;
- O Ministério Público limita-se a concordar com a posição do seu representante no tribunal a quo, sem fundamentos novos, mas alterando, assim, a sua conhecida posição doutrinária, anteriormente fundamentada em casos semelhantes, e com cuja manutenção, por parte do Ministério Público no tribunal ad quem, o réu poderá ter contado.
É certo que em todas estas hipóteses há algum agravamento possível de posição dos réus, pelo que todas elas poderiam teoricamente estar abrangidas pela letra da fórmula decisória adoptada. Mas estarão também abrangidas pelo seu espírito? Depende, é claro, das razões para distinguir entre as várias hipóteses em que o Ministério Público se pronuncia na sua especial qualidade no processo penal, como representante do poder punitivo do Estado, sobre o objecto do processo ou sobre a possibilidade do seu conhecimento. Ora o acórdão remete para as razões constantes do Acórdão nº.
398/89, segundo o qual, na parte relevante, se diz: 'ponto é que - e assim se deve também interpretar a norma - os réus sejam admitidos responder, quando o Ministério Público porventura se pronunciar em sentido desfavorável a eles'. Parece, pois, que, numa interpretação possível, o termo de comparação, para saber se há agravamento, será a posição tomada pelos réus, pelo que haveria agravamento sempre que o Ministério Público se pronunciasse em sentido desfavorável aos argumentos ou às conclusões dos réus, salva a hipótese de pedir uma solução mais favorável que a pedida pelos próprios réus. Nesta interpretação - que, todavia, se duvida ter sido pretendida pelo acórdão - as hipóteses anteriormente exemplificadas seriam todas de agravamento.
Mas importa reparar que, na falta de especificação pelo próprio acórdão, nada impede que os tribunais, que têm de aplicar a doutrina nele firmada, divirjam na interpretação que dela fazem, renovando-se, assim, uma divergência de interpretação, que se desejaria afastar.
Presume-se que o acórdão se baseou na ideia de que o réu só tem direito de defesa perante intervenções processuais que possam prejudicar a sua defesa. Faz, porém, quanto ao ponto de vista, depender a defesa do juízo do julgador sobre o interesse do réu nessa defesa, em vez de cometer ao réu o juízo sobre o seu próprio interesse e a responsabilidade da sua própria defesa. O princípio do contraditório não é, deste modo, aplicado. O Tribunal afasta-se, assim, dos juízos de valor constitucionais, que tem respeitado em casos análogos.
3. O direito de defesa garantido pelo nº 1 do artigo
32º da Constituição tem toda a extensão racionalmente justificada para uma defesa efectiva em processo criminal (assegura 'todas as garantias necessárias de defesa', nas palavras do nº 1 do artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem), pelo que não se esgota (assim, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 40/84, - Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 3º, pp.
241 ss -, 55/85 - Acórdãos, vol. 5º, pp. 461ss -, 17/86 - Diário da República, II série, de 24 de Abril de 1986 -, etc.) nas garantias constantes dos vários números do mesmo artigo e que se devem ler à luz daquele direito. Mas, por outro lado, o direito de defesa concretiza-se e desenvolve-se sistematicamente através dessas garantias. É assim que o princípio do contraditório (nº 5) vem determinar que a defesa é cometida, em primeiro lugar, à responsabilidade do arguido, que tem o direito de responder da forma que julgar adequada às intervenções processuais do Ministério Público. Em sentido inverso, a ilimitação das garantias de defesa ('todas') assegura o direito de resposta sempre que o Ministério Público intervém pela acusação, pois em toda essa extensão é racionalmente justificado o contraditório nas (palavras do Acórdão nº 45/84 - Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 3º, pp 271 - : 'é de atribuir a este princípio a maior dimensão possível').
A Constituição estatui que a audiência de julgamento está subordinada no princípio do contraditório (nº. 5 do artigo 32º). Não há razão para distinguir neste aspecto a audiência oral de julgamento das
'audiências' de recurso, que, no regime do Código de 1929, eram apenas escritas.
Na lógica da contraposição dialéctica entre a acusação e a defesa, cuja efectividade é assegurada pelo princípio do contraditório, a defesa é um posterius relativamente à acusação, que pressupõe.
É, assim, por exigência do princípio do contraditório e não por um princípio assimétrico de favorecimento do réu, que a este - ou ao seu defensor - deve caber a última palavra (como dispõe para o julgamento o artigo 467º do Código de
1929).
Por consequência, sempre que em via de recurso o Ministério Público se pronuncia sobre o objecto do processo ou sobre o conhecimento do recurso, de qualquer das formas representando a acusação, terá o réu direito de resposta, por aplicação directa dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição.
Esta doutrina foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional a propósito da ordem das alegações no processo de extradição, devido precisamente à natureza penal deste último. Numa série de acórdãos (além do já mencionado nº 45/84, os nºs 192/85 - Acórdãos, vol. 6º, pp 453 ss - e
147/86 -Acórdãos, vol. 7º, II, pp 865 ss), culminando em declaração com força obrigatória geral (nº. 54/87 - Acórdãos, vol. 9º, pp 273 ss) o Tribunal reconheceu à defesa a última palavra em matéria de alegações, em qualquer caso, mesmo fora da audiência de julgamento. Nas palavras do último acórdão citado:
As garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação; o princípio do contraditório não pode deixar de compreender a possibilidade de contradizer as alegações finais do Ministério Público.
(...)
Ou seja: da conjugação dos dois princípios decorre seguramente que é ao defensor do arguido (na extradição: do extraditando) que deve caber a última palavra em matéria de alegações (p 277).
4. A evolução recente da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também poderia ter sido considerada. Embora a Convenção Europeia dos Direitos do Homem não integre o direito constitucional português nos mesmos termos que a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(por força do nº 2 do artigo 16º da Constituição), vigora também na ordem interna (nº 2 do artigo 8º da Constituição), foi também fonte histórica dos preceitos sobre direitos fundamentais da Constituição e exprime, bem como a interpretação evolutiva que dela faz a jurisprudência dos tribunais da Convenção
- O Tribunal e a Comissão -, normas e princípios do direito internacional geral ou comum que fazem parte integrante do direito português (nº 1 do artigo 8º da Constituição) e estão logicamente a montante da legislação ordinária que desenvolve e concretiza os direitos fundamentais, como é o caso do direito processual penal. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contribui directamente para determinar a convicção jurídica desta parte do direito internacional geral e contribui, por isso, de forma proeminente para um
'standard comum europeu dos direitos fundamentais', reconhecido pela doutrina constitucionalista (assim, a propósito da relação entre o artigo 6º da Convenção e ao artigo 103º da Grundgesetz: Schmidt - Assmann (1988) em Maunz-Dürig, Grundgesetz. Kommentar, 103, Abs. I, Rdnr. 24).
O Tribunal Europeu decidiu recentemente no acórdão Borgers (Cour européenne des Droits de l' Homme, arrêt Borgers c. Belgique du 30 octobre 1991, série A nº 214B, p. 10) 'tendo em vista as exigências dos direitos da defesa e da igualdade das armas assim como o papel das aparências na apreciação do respeito delas' haver violação do artigo 6º § 1º da Convenção pela legislação belga (arts 1107 e 1109 du Code Judiciaire) que permite ao ministério público em recurso perante a Cour de cassation apresentar as mesmas conclusões na audiência, 'após o que nenhuma nota será recebida', e ainda assistir à deliberação sem voto deliberativo. Este acórdão, que foi tirado por dezoito votos contra quatro, - e que seguiu o convite da Comissão, que em relatório anterior (de 17 de Maio de 1990) tinha deliberado por catorze votos contra um, haver violação do artigo 6º § 1º da Constituição - veio alterar (o verrule) a jurisprudência anterior do mesmo tribunal sobre o mesmo ponto da legislação belga, que fora estabelecida no acórdão Delcouxt de 17 de Janeiro de
1970.
Note-se que o ministério público junto da Cour de cassation da Bélgica tem um estatuto semelhante em alguns pontos essenciais ao que o caracteriza em Portugal; é independente, quer perante o ministro da justiça, quer perante os magistrados do ministério público da primeira instância, e deve dar parecer imparcial e independente sobre todas as questões de direito levantadas pela decisão recorrida, pelo que pode concluir, e muitas vezes o faz, em favor do réu. Alegou o Governo belga que o ministério público não exercia na instância de recurso senão excepcionalmente - o que não era o caso - a acção penal e que não era parte nem adversário de ninguém, tendo apenas a função de aconselhar o tribunal.
Neste contexto é particularmente relevante a fundamentação do acórdão do Tribunal Europeu
'Ninguém duvida da objectividade com que o parquet de cassation desempenha as suas funções. Atestam-na o consenso de que é objecto na Bélgica desde as suas origens e o assentimento que o Parlamento lhe deu diversas vezes.
Contudo a sua opinião não poderia considerar-se neutra do ponto de vista das partes na instância de cassação: recomendando que se dê ou não provimento ao recurso do acusado, o magistrado do ministério público torna-se um aliado ou um adversário objectivo. Na segunda hipótese, o artigo 6º § 1 impõe o respeito dos direitos de defesa e do princípio da igualdade das armas' (p. 8, § 36).
Quanto à intervenção do ministério público na audiência, sem possibilidade de resposta para o réu, 'não se percebe o que justifica tais restrições aos direitos de defesa. Desde o momento em que o parquet tenha apresentado conclusões desfavoráveis ao requerente, este tenha um interesse certo em discuti-la antes do fecho dos debates. Nada disto se altera por só as questões de direito serem da competência da Cour de cassation' (p. § 27)
Passando à participação do ministério público, com função consultiva, na deliberação, é então sobretudo que 'o desequilíbrio se acentua'. Mesmo que essa justificação se tivesse limitado a questões de forma, 'o procurador geral poderia legitimamente parecer dispor na sessão de uma ocasião suplementar de apoiar, ao abrigo da contradição do requerente, as suas conclusões de dar ou não provimento ao recurso' (p. 10 § 28). O tribunal europeu invocou a este último respeito uma evolução das mais notáveis da jurisprudência do tribunal 'acerca da noção de 'processo equitativo', 'marcada em particular pela importância atribuída às aparências e à sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça (ver entre outros, mutatis mutandis, os acórdãos Piersack c. Bélgica de 1 de Outubro de 1982, série A nº 53, p 14-15, § 30; Campbell et Fell c. Reino Unido de 28 de Junho de 1984, série A, nº 80, p 39-40, § 18; Sramek c. Aústria de 22 de Outubro de 1984, série A, nº 84, p. 20 §42; De Cubber c. Bélgica de 26 de Outubro de 1984, série A nº 86, p. 14, § 26; Bönisch c. Aústria de 6 de Maio de 1985, série A nº 92, p. 15 § 32; Belilos c. Suiça de 29 de Abril de 1988, série A nº 132, p. 30 §67; Hauschildt c. Dinamarca de 24 de Maio de
1989, série A nº 154, p. 21, § 48; Langborger c. Suécia de 22 de Junho de 1989, série A, nº 155, p. 16, § 32; Demicoli c. Malta de 27 de Agosto de 1991, série A nº 210, p. , § 40; Brandstetter c. Aústria de 28 de Agosto de 1991, série A nº 211, p. § 44' (p. 8-9, § 24)'.
É de relevar que nunca o Tribunal Europeu fez depender o direito de resposta do agravamento da posição do réu. Sempre que o Ministério Público se pronuncie no recurso contra o provimento deste, poderá dizer-se, na esteira argumentativa do acórdão citado, que há interesse objectivo do réu em responder e, portanto, direito de resposta.
5. Não se diga que o princípio da igualdade de armas não tem aplicação no processo penal português, por este não estar estruturado como um processo de partes. A posição do Ministério Público sendo dependente da sua configuração constitucional idiossincrática, consoante os países, caracterizando-se em Portugal pela autonomia, pelo que seria no processo penal um órgão de justiça, vinculado a critérios de legalidade e de objectividade, e não uma parte. Ora, sem pretender dilucidar aqui o instituto jurídico-constitucional do Ministério Público, e em especial a questão de saber como a sua 'autonomia', compatível com a sujeição dos seus magistrados às directivas, ordens e restrições previstas na respectiva lei, se distinguem da
'independência' dos juízes (cfr. o Acórdão nº 254/92, Diário da República, 1ª Série-A, p. 3593), é certo que pelo simples facto de no processo penal representar o Estado como detentor do interesse punitivo, que se realiza desde logo através do exercício da acção penal, mas que se realiza também através da actuação do Ministério Público no processo penal, sem exceptuar a fase de recurso, o Ministério Público representa um dos sujeitos da relação jurídica punitiva que é objecto do processo penal e em que o réu é o outro sujeito. É neste sentido uma das partes do processo, mesmo que este processo não esteja na disponibilidade das partes como o estão, na maior parte dos casos, os processos civis. A moderada idiossincrasia do Ministério Público no direito português não é acompanhada de qualquer idiossincrasia da sua função no processo penal.
O princípio da igualdade de armas que o Tribunal Europeu faz derivar da noção mais lata de processo equitativo (fair trial, procès equitable), deriva-se do princípio de assegurar todas as garantias de defesa, tal como o princípio do contraditório. Contraditório sem igualdade de armas não assegura todas as garantias de defesa. Igualdade de armas exige contraditório sempre que possível. Não se garante uma defesa efectiva se não houver 'possibilidade real de serem contrariadas e contestadas todas as afirmações ou elementos trazidos aos autos pela acusação', nas palavras do Acórdão nº 150/87. Temos que o princípio constitucional do contraditório tem que ser interpretado de acordo com o princípio da igualdade de armas para garantir uma defesa efectiva. Do mesmo modo, embora a Constituição não diga, como a alínea c) do nº 3 do artigo 6º da Convenção Europeia, que o acusado tem direito a dispor do tempo e das facilidades necessárias à preparação da sua defesa, este direito também se deduz da conjugação do nº 1 com o nº 5 do artigo
32º da Constituição.
6. Uma nota final, apenas para ajuntar que semelhantes considerações se podem fazer a propósito do princípio do respeito pelas aparências, desenvolvido pela jurisprudência evolutiva do Tribunal Europeu, indicada na transcrição feita.
A formulação deste princípio tem sido relacionada
(assim no voto de vencido do juiz Martens no acórdão Borgers, p. 30) com um dictum de Lord Hewart: 'It is not merely of some importance, but it is of fundamental importance that justice should not only be done, but should manifestly and undoubtedly be seen to be done'. Despido de acentos retóricos, o princípio tem sido formulado pelo Tribunal Europeu nestas palavras: 'justice must not only be done; it must be seen to be done' (a justiça não só deve ser feita; deve parecer que é feita).
Em casos anteriores a Borgers, o Tribunal Europeu tinha invocado o princípio para julgar da imparcialidade de juízes ou de outros membros de órgãos judicativos ou de peritos designados pelo tribunal. Ora, numa hipóteses do mesmo género, é certo que o Tribunal Constitucional tem entendido maioritariamente, que as normas que permitem a intervenção no julgamento do juiz que proferiu o despacho de pronúncia não são inconstitucionais (Acórdãos nºs 219/89, Diário da República, II série, de 30 de Junho de 1989, p. 6476 ss e
124/90, ibid, de 8 de Fevereiro de 1991, p. 1517 ss). Mas não o fez por considerar irrelevantes as aparências da justiça. No último dos mencionados acórdãos acentua-se, pelo contrário, que devido ao carácter garantístico que o acórdão atribui ao despacho de pronúncia, o juiz que profere este despacho 'não deixa, mesmo aos olhos dos arguidos e do público, de ser um juiz independente e imparcial' (lug. cit., p 1520). E invoca para tal o mesmo princípio que o Tribunal Europeu menciona ao falar de aparências: 'importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança do comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao administrarem a justiça, actuem, de facto, em nome do povo' (p. 1519).
Em termos análogos pode dizer-se que a circunstância de a organização do Ministério Público haver dinamizado a acção penal, embora não assacada pessoalmente ao magistrado da mesma organização em serviço na instância de recurso, é uma circunstância exterior que influencia objectivamente, isto é, que pode influenciar subjectivamente esse magistrado,
'concedendo-lhe uma especial perspectiva da matéria em controvérsia' (Acórdão nº 150/87, p. 11400). Não se trata de uma caracterização psicológica, nem de uma probabilidade empírica. Onde existe a tal possibilidade de influência é imaterial saber se há influência real, porque a confiança do público exige que não seja tratado como independente quando intervém durante o recurso sobre o objecto deste ou sobre a sua admissibilidade.
José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Dinis Armindo ribeiro Mendes