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Processo n.º 627/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
No requerimento de interposição de recurso, o recorrente delimitou o objeto respetivo, nos seguintes termos:
“(…) Coloca-se assim em apreciação a questão de constitucionalidade quanto às exigências, para quem impugne a matéria de facto, estabelecidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, com o sentido conferido pela interpretação dada no douto Acórdão recorrido de que, nas conclusões (e motivação) de recurso por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3 alínea a) e b) e nº 4 do CPP, é necessária a “menção à localização exata na gravação, com referência aos suportes técnicos, dos segmentos considerados relevantes, pois menciona apenas o início e o fim dessas declarações e depoimentos”
2. Tal recurso foi considerado inadmissível, por Decisão Sumária de 13 de dezembro de 2011, com base nos seguintes fundamentos:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
O objeto do presente recurso reporta-se à interpretação do artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas b) e c) e 4, do Código de Processo Penal, – só podendo considerar-se a referência à alínea a) devida a lapso, já que a remissão do n.º 4 apenas se reporta às alíneas b) e c) do número anterior - no sentido de que as especificações referidas nas aludidas alíneas devem incluir a menção à localização exata na gravação, com referência aos suportes técnicos, dos segmentos considerados relevantes, não sendo suficiente a menção do início e do fim da gravação das declarações e depoimentos selecionados.
Analisada a decisão recorrida, porém, conclui-se que tal interpretação não corresponde à ratio decidendi da mesma.
Na verdade, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto refere que, na motivação do recurso e nas respetivas conclusões, “olvida-se a menção à localização exata na gravação, com referência aos suportes técnicos, dos segmentos considerados relevantes”, mencionando-se apenas o início e o fim dessas declarações e depoimentos.
Porém, tal afirmação não se reflete no não conhecimento do recurso, quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Impressivamente, refere o acórdão recorrido o seguinte:
“Mas, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
(…)
Vejamos então as objeções levantadas pelo recorrente.”
Após o transcrito excerto, o tribunal a quo aprecia, de facto, os argumentos utilizados pelo recorrente, relativamente à impugnação da matéria de facto dada como assente, concluindo, porém, pela improcedência de tal impugnação.
Nestes termos, conclui-se que a interpretação normativa, que constitui objeto do presente recurso, não constitui ratio decidendi da decisão recorrida, não se refletindo no não conhecimento do recurso, quanto à impugnação da matéria de facto.
A exigência de que o critério normativo, cuja sindicância é pretendida, corresponda ao fundamento jurídico determinante da solução dada ao litígio prende-se com o caráter instrumental do recurso de constitucionalalidade.
Tal caráter ou função instrumental traduz-se na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Esta possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, implicando uma reponderação da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo.
Ora, não tendo, no caso concreto, o Tribunal da Relação julgado prejudicado o conhecimento da impugnação da matéria de facto, apresentada pelo recorrente, mas, ao invés, conhecendo, de facto, de tal impugnação, considerando que a mesma substancialmente correspondia a uma manifestação da “divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos”, teremos de concluir que a apreciação da questão enunciada pelo recorrente, como objeto do presente recurso de constitucionalidade, não revestiria qualquer utilidade, por ser insuscetível de se traduzir em alteração do sentido ou efeitos da decisão recorrida.
Face às considerações expendidas, dependendo a admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade da efetiva aplicação da interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida, conclui-se, in casu, pela não admissibilidade do recurso interposto.”
3. Inconformado, o recorrente apresentou a presente reclamação, argumentando que, ao contrário do que é referido na decisão sumária reclamada, o julgamento da questão de constitucionalidade colocada é suscetível de se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto.
Refere, em abono da sua tese, que resulta do acórdão da Relação do Porto - decisão que é alvo do presente recurso de constitucionalidade – que ficou prejudicado o conhecimento da matéria de facto impugnada, por referência aos suportes técnicos gravados e invocados, porquanto o Tribunal não os ouviu. Não foi assim avaliada a matéria de facto, “enquanto erro de julgamento”, já que o tribunal a quo se limitou a reapreciar a “matéria dada por assente (…) concluindo como na 1ª instância”.
Assim, após transcrever excertos do acórdão recorrido, que interpreta como conferindo solidez à sua argumentação, conclui peticionando que seja dado provimento à reclamação, concluindo-se pela admissibilidade do recurso interposto e subsequente conhecimento do seu objeto.
4. O Ministério Público, em resposta, refere que se deve conhecer do objeto do recurso, negando-se-lhe provimento.
Para fundamentar a sua posição, argumenta que o tribunal recorrido entendeu que o reclamante – ali, recorrente – não cumprira a totalidade dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, não mencionando “a localização exata, na gravação, com referência aos suportes técnicos, dos segmentos considerados relevantes”. Não obstante, o Tribunal da Relação conheceu da matéria de facto, apreciando “todas as questões colocadas pelo recorrente, com minúcia e de forma fundamentada”. Apesar disso, como o não cumprimento do ónus em causa determinou que a prova gravada não tivesse sido ouvida, dever-se-á concluir que o assinalado incumprimento limitou a amplitude com que a Relação conheceu da matéria de facto.
Pelo exposto, o Ministério Público - divergindo nesse ponto da decisão reclamada - é de parecer que não se poderá concluir que a apreciação da questão de constitucionalidade não revestiria qualquer efeito útil.
Porém, sempre seria de proferir Decisão Sumária, negando provimento ao recurso, face à simplicidade, baseada na circunstância de o Tribunal Constitucional já se ter pronunciado, por diversas vezes, sobre o artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, resultando dessa jurisprudência que, não estando em causa qualquer deficiência restrita às conclusões da motivação, a exigência de cumprimento dos ónus referidos naquele preceito não é inconstitucional.
Aliás – acrescenta - foi com base na remissão para essa jurisprudência consolidada, a propósito do ónus que está em causa na presente situação, que o recente acórdão, com o n.º 466/2011, confirmou decisão sumária, em caso idêntico, verificando-se que também ali o recorrente invocava a deficiência da ata de julgamento para justificar, pelo menos em parte, o incumprimento. Porém, nestes autos tal como nos outros, a eventual deficiência da ata não integra a dimensão normativa erigida como objeto do recurso, sendo certo que, no momento oportuno, não foi invocada qualquer irregularidade.
Nestes termos, conclui o Ministério Público pela improcedência do recurso.
5. O recorrido B. também apresentou resposta à reclamação.
Em tal peça processual, manifesta a sua concordância com a decisão sumária reclamada, referindo que a reclamação para a conferência corresponde a expediente dilatório, destinado a atrasar o trânsito em julgado do acórdão recorrido.
Pugna, pelo exposto, pela inadmissibilidade do recurso.
II - Fundamentos
6. De acordo com a enunciação do objeto de recurso, apresentada no respetivo requerimento de interposição, a questão de constitucionalidade colocada centra-se na interpretação normativa, extraída do artigo 412.º, n.º 3, alíneas b) e c), e n.º 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual a impugnação da matéria de facto, em recurso, está sujeita ao ónus de menção à localização exata, nos suportes técnicos de gravação da prova, dos segmentos considerados relevantes.
Analisemos a argumentação da reclamação deduzida.
Refere o reclamante que o julgamento da questão de constitucionalidade colocada é suscetível de se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto, porquanto, em virtude da interpretação normativa agora posta em crise, o tribunal a quo não analisou a matéria de facto impugnada, por referência aos suportes técnicos gravados, não os ouvindo e não avaliando a dimensão da impugnação, enquanto imputação de “erro de julgamento”.
Não obstante a tese do reclamante encontrar apoio em referências contidas no acórdão recorrido, não nos parece que, considerando a globalidade do aresto e a solução pelo mesmo encontrada, se possa concluir no sentido defendido na reclamação.
Na verdade, é certo que o tribunal recorrido assumiu, expressamente, que não foram ouvidas as gravações da prova. Porém, tal não se cifrou no não conhecimento da impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente, aqui reclamante. Ao invés, o acórdão recorrido analisou cada um dos aspetos impugnados na motivação de recurso, escalpelizando cada uma das “objeções” apresentadas pelo recorrente, concluindo, porém, que, substancialmente, a impugnação apresentada não correspondia a uma “discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão”, mas a uma mera “divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos” (sublinhados nossos).
Assim sendo, é de concluir que, na lógica interna do acórdão recorrido, o incumprimento do ónus de especificação - quer nas conclusões, quer no corpo da motivação do recurso – a que o recorrente estava adstrito, consubstanciado na menção de “localização exata na gravação, com referência aos suportes técnicos, dos segmentos considerados relevantes” não redundou em qualquer alteração substancial do sentido da decisão, porquanto, a partir da análise da motivação do recurso, foi possível ao tribunal concluir que o recorrente não se propunha, verdadeiramente, especificar elementos que impusessem decisão diversa da recorrida, mas sobrepor o seu entendimento sobre a prova produzida à convicção do tribunal que determinou o elenco dos factos provados e não provados. Assim sendo, independentemente da omissão de especificação, por referência aos suportes de gravação – vício que o tribunal recorrido não deixa de explicitar – o acórdão em análise não conclui pelo não conhecimento da impugnação apresentada. Pelo contrário, apreende a natureza substancial da impugnação e conclui que a mesma não se integra verdadeiramente na previsão do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, na interpretação que o tribunal faz de tal normativo, “porque o recurso não é um novo julgamento (como aparentemente pelo menos, pretende o recorrente seja efetuado) mas um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente”. É na sequência desse raciocínio que o acórdão recorrido perentoriamente afirma - após reiterar que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação a que estava vinculado - o seguinte:
“Mas, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
(…)
Vejamos então as objeções levantadas pelo recorrente.”
A utilização da conjunção adversativa “mas”, seguida da expressão eloquente “o que verdadeiramente resulta”, parece-nos que impõe, de forma decisiva, a interpretação que acabámos de expor.
Mais adiante, no mesmo sentido, o tribunal a quo salienta que cumpre “não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos tribunais superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção” (sublinhado nosso).
Após analisar cada um dos pontos da impugnação da matéria de facto, apresentados pelo recorrente, refere o acórdão recorrido, impressivamente, que “o recorrente coloca, sob censura, de forma sistemática, a apreciação e valoração dos depoimentos e declarações prestados, bem como os documentos juntos, pretendendo que o tribunal recorrido os devia valorar de acordo com o seu entendimento”.
Conclui, em conformidade, o acórdão recorrido que:
“De todo o exposto resulta, pois, após o exame da factualidade que provada e não provada se mostra e da fundamentação da convicção do tribunal recorrido, que se não avista que tenha sido efetuada apreciação da prova em violação do princípio consagrado no artigo 127º, do CPP, com desprezo pelas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, pois está devidamente fundamentada, é verosímil e conforma-se com essas regras e bem assim que haja quaisquer elementos que imponham a alteração da matéria de facto no sentido pretendido pelo recorrente face à valoração feita por aquele tribunal, não podendo proceder a pretensão de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em audiência em detrimento da do julgador” (sublinhado nosso).
Nestes termos, analisado o aresto recorrido na sua globalidade, reiteramos a conclusão, plasmada na decisão sumária reclamada, sobre a inutilidade de apreciação da questão enunciada pelo recorrente, como objeto do presente recurso de constitucionalidade, face à insusceptibilidade de se traduzir em alteração do sentido ou efeitos da decisão recorrida.
7. Sempre se dirá, porém, que ainda que o recurso reunisse os pressupostos de admissibilidade, seria proferida Decisão Sumária de improcedência, atenta a simplicidade da questão de constitucionalidade colocada, face à jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, como bem salienta o Ministério Público.
Na verdade, a propósito de questão idêntica, no âmbito do processo n.º 487/11, foi proferida Decisão Sumária, em 6 de setembro de 2011, julgando não inconstitucional a interpretação do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da indicação das passagens da gravação da prova oral que, na perspetiva do recorrente, impunham decisão diversa da recorrida, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência.
Remete-se, em tal decisão – confirmada pelo acórdão n.º 466/2011 – para a fundamentação exarada nos acórdãos com os n.ºs 259/02, 140/04, 488/04 e 342/06, de que resulta a orientação que o Tribunal Constitucional tem seguido, nesta matéria, e que se manteria.
III – Decisão
8. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada no sentido do não conhecimento do objeto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de março de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.