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Procº nº 104/90 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A., propôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, uma acção especial de despejo contra B., ex-empregada doméstica da arrendatária, entretanto falecida, C., pedindo a condenação da ré a desocupar o ------------ do prédio, sito na Rua --------------------------,
-------------, em --------------, e a pagar-lhe a quantia de 15.000$00 mensais, a título de indemnização, pela sua indevida ocupação, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento, por efeito do falecimento da locatária, e, subsidiariamente, a sua resolução, com fundamento na falta de residência permanente da ré no prédio locado e de pagamento das rendas vencidas.
2. Por sentença, de 14 de Novembro de
1988, o Mmº Juiz do 14º Juízo Cível da Comarca de Lisboa julgou procedente a acção, condenando a ré a desocupar o mencionado prédio e a pagar à autora, como indemnização, a quantia que vier a ser liquidada em execução da sentença, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento, prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil.
3. Não se conformando com aquela decisão, recorreu a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, entre o mais, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1051º, nº 1, alínea d), do Código Civil, por violação do artigo 65º da Constituição.
Sem êxito, porém, dado que aquele Tribunal, por Acórdão de 30 de Janeiro de 1989, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida, considerando que a mencionada norma do Código Civil não infringe qualquer preceito constitucional.
4. De novo inconformada, interpôs a ré o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 280º, nº1, alínea b), e nº 4, da Constituição e nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
5. Nas alegações produzidas neste Tribunal, a recorrente apresentou as seguintes conclusões:
1. Baseando-se a sentença de despejo no artigo 1051º, nº1, alínea d), do Código Civil e não estando assegurada à recorrente a possibilidade de arranjar nova habitação condigna, como impõe o artigo 65º da Constituição da República, o normativo daquele artigo 1051º deve ser declarado inconstitucional, no caso concreto, com as legais consequências.
2. Violado foi o supra-referido artigo
65º da CRP.
Por seu lado, o recorrido não alegou.
6. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir a questão de saber se a norma constante da alínea d) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil - ou, mais rigorosamente, da norma da primeira parte daquela alínea - é (ou não) inconstitucional, por violação do artigo 65º da Lei Fundamental.
II - Fundamentos.
7. A norma cuja inconstitucionalidade é invocada pela ré versa sobre a caducidade do contrato locação e dispõe o seguinte:
Artigo 1051º
(Casos de caducidade)
1. O contrato de locação caduca:
d) Por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário.
Está em causa, nos presentes autos, apenas a constitucionalidade da primeira parte daquela norma, isto é, aquela que indica como causa de caducidade do contrato de locação a morte do locatário.
O artigo 1110º, nº 1, do Código Civil, vigente à data da morte da arrendatária - 16 de Dezembro de 1985 -, estabelecia o princípio da incomunicabilidade do arrendamento para habitação, ao referir que
'seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte'. Por sua vez, o artigo 1111º, nº 1, do mesmo Código, na redacção também em vigor
àquela data, preceituava que 'o arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha recta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem pelo menos há 1 ano...'.
Ora, tendo a arrendatária falecido no estado de viúva, sem deixar parentes ou afins nas circunstâncias previstas naquela disposição legal, entenderam o Mmº Juiz do 14º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e, depois, o Tribunal da Relação de Lisboa que, com aquela ocorrência, caducou automaticamente o contrato de arrendamento, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa considerou também que a ré não tinha direito a celebrar um novo contrato de arrendamento com o autor. Com efeito, nos casos de caducidade do contrato de arrendamento para habitação, por morte do arrendatário, o artigo 3º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 328/81, de 4 de Dezembro, então vigente, dispunha que gozavam do direito a novo arrendamento 'as pessoas referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 1109º do Código Civil, desde que convivessem com o arrendatário há mais de 5 anos, exceptuando os que habitam o local arrendado por força de negócio jurídico que não respeite directamente à habitação'.
As pessoas referidas na alínea a) do nº
1 do artigo 1109º do Código Civil são todas as que vivam com o arrendatário em economia comum. Por sua vez, o nº 2 do artigo 1109º do mesmo Código estatui que
'consideram-se sempre como vivendo com o arrendatário em economia comum os seus parentes ou afins na linha recta ou até ao 3º grau da linha colateral, ainda que paguem alguma retribuição, e bem assim as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos'.
Conclui-se do exposto que, com o Decreto-Lei nº 328/81, deixaram de beneficiar do 'direito a novo arrendamento' os hóspedes e os empregados domésticos, precisamente os exemplos mais típicos de situações geradas por negócio jurídico - o contrato de hospedagem e o contrato de serviços domésticos - que não respeita directamente à habitação, mas que podem implicar a convivência com o arrendatário [cfr. F. M. Pereira Coelho, Arrendamento (Direito Substantivo e Processual), Lições ao curso do 5º de Ciências Jurídicas no ano lectivo de 1988-1989, Coimbra, 1988, p. 320].
No caso dos autos, a recorrente esteve ligada à arrendatária por um contrato de prestação de serviços domésticos, tendo vivido no prédio arrendado durante mais de vinte anos. O Tribunal a quo considerou, no entanto, que aquela não alegou factos demonstrativos e integrativos do pressuposto da convivência com a arrendatária em 'economia comum'. E, como não gozava também da presunção prevista no artigo 1109º, nº 2, do Código Civil, não lhe foi reconhecido o direito à celebração de novo contrato de arrendamento.
8. Deparando-se com uma sentença que a condena a desocupar o prédio, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento, prevista na primeira parte da norma da alínea d) do nº 1 do artigo
1051º, do Código Civil, invocou a recorrente a inconstitucionalidade desta norma, por violação do artigo 65º da Constituição.
Será aquela norma, que consagra o princípio da caducidade do contrato de locação por morte do locatário, desde que não haja convenção escrita em contrário - princípio que, como vimos, comporta várias excepções -, inconstitucional, por infracção do artigo 65º da Lei Fundamental, como pretende a recorrente?
Adiantaremos desde já que não.
9. O artigo 65º da Constituição dispõe como segue:
1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria.
3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.
O preceito transcrito da Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.
Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as seguintes tarefas:
a) 'programar e executar uma política de habitação', devidamente articulada com uma 'adequada rede de transportes e de equipamento social';
b) 'incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações', que visem 'resolver os respectivos problemas habitacionais' e 'fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção';
c) 'estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria [cfr. artigo
65º, nº 2, alíneas a), b) e c)].
O Estado há-de, além disso, 'adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar' (cfr. artigo 65º, nº 3); e, juntamente com as autarquias locais, há-de exercer um 'efectivo controlo do parque imobiliário', procedendo
'às expropriações dos solos que se revelem necessárias' e definindo 'o respectivo regime de utilização' (cfr. artigo 65º, nº 4).
10. O 'direito à habitação', ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen),em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora,
1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia' - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.]
O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205, 209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei. Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo, e para além do quadro das soluções legais,
à pessoa residente no prédio um direito, judicialmente exercitável, de impedir a caducidade do contrato de arrendamento para habitação por morte do arrendatário.
Estas considerações são suficientes para demonstrar que o direito à habitação, condensado no artigo 65º da Lei Fundamental, não é beliscado pela norma do Código Civil que consagra o princípio da caducidade do arrendamento para habitação por morte do arrendatário, desde que não se verifique nenhuma das excepções previstas no artigo 1111º daquele Código, possibilitando ao proprietário a recuperação da faculdade de gozo do prédio urbano que tinha sido cedida - ainda que temporariamente - ao arrendatário, por efeito do contrato de arrendamento.
A norma da primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil não a infringe, pois, o disposto no artigo 65º da Constituição.
Acrescentar-se-á, no entanto, mais uma nota.
11. O artigo 1022º do Código Civil define a 'locação' como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição. Na mesma linha, o artigo 1º do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, apresenta a seguinte noção de arrendamento urbano: contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição.
Vê-se, assim, que de entre os elementos que integram o conceito de contrato de arrendamento urbano (sobre tema, cfr. F. M. Pereira Coelho, ob. cit., p. 8 ss.) avulta a cedência do gozo de um prédio urbano de uma parte à outra (do senhorio ao inquilino), cedência essa de natureza temporária. O senhorio assume, por força do contrato, a obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo do prédio, a fim de este - bem como as pessoas que, por força da lei ou do contrato, estejam autorizadas a residir no prédio - possa habitá-lo.
Apresentando-se a satisfação da necessidade de habitação do arrendatário - e da sua família - como um dos fins essenciais do contrato de arrendamento habitacional, justifica-se que, com o falecimento do arrendatário, caduque o contrato, já que com aquele evento deixa de subsistir o motivo profundo que tinha justificado a sua celebração. Quer isto dizer que o princípio da caducidade do contrato de arrendamento urbano, por morte do arrendatário, encontra a sua razão de ser na própria essência do contrato de arrendamento e, em último termo, no direito de propriedade do senhorio que, com a caducidade do contrato, vê o seu direito de propriedade sobre o prédio desonerado do direito obrigacional ao arrendamento.
A lei não deixa, porém, de prever um quadro de situações em que o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário (cfr. o antigo artigo 1111º do Código Civil e, hoje, os artigos 85º e 86º do Regime de Arrendamento Urbano para Habitação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro). As várias hipóteses de transmissão por morte do arrendatário visam proteger os direitos e os interesses das pessoas que viviam com aquele e que ficaram numa posição económica debilitada ou enfraquecida em consequência do falecimento do arrendatário, tais como o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, descendentes com menos de um ano de idade ou que com aquele convivessem há mais de um ano, ascendentes que com ele convivessem há mais de um ano, afins na linha recta que com o arrendatário convivessem há mais de um ano, etc..
As excepções ao princípio da não caducidade do arrendamento por morte do arrendatário encontram a sua credencial constitucional não só no próprio direito à habitação do artigo 65º, mas também nos artigos 67º e 69º, que versam sobre o direito que a família e as crianças têm a protecção da sociedade e do Estado.
Não se vê, assim, que o princípio da caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário - o qual como se disse, entronca na própria natureza daquele contrato - brigue com o disposto no artigo 65º da Constituição. Problemas de constitucionalidade poderiam, antes, levantar-se a propósito das normas legais que estabelecem excepções àquele princípio. Os apontados artigos da Constituição - os artigos 65º, 67º e 69º - afastam, porém, quaisquer dúvidas que pudessem existir sobre aquela questão.
Eis como, também por esta razão, a norma da primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil não viola o artigo 65º da Constituição ou qualquer outro preceito constitucional.
III - Decisão.
12. Nos termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 1 de Abril de 1992
Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920130.html ]