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Proc. nº 11/92
1ª Secção Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. - O Magistrado do Ministério Público na Comarca de Condeixa-A-Nova acusou A. de autoria material de um crime de falsificação de documentos, por duas vezes e de forma continuada, previsto e punível pelas disposições conjugadas do art. 228º, nºs 1, alíneas b) e c), 2 e 3 do Código Penal, com referência ao art. 229º, nº 1 do mesmo diploma, bem como de dois crimes de burla, previstos e puníveis pelo art. 313º também do Código Penal.
Muito embora aos crimes imputados ao arguido correspondesse, em abstracto, pena de prisão superior a três anos, o que, em princípio, determinaria a competência do tribunal colectivo para o julgamento (art. 14º, nº
2, alínea b), do Código de Processo Penal), o Ministério Público requereu a realização do julgamento com intervenção do tribunal singular, ao abrigo da faculdade prevista no nº 3 do art. 16º do Código de Processo Penal de 1987, por entender que não se justificava a aplicação, em concreto, de pena de prisão superior a três anos, com fundamento na ausência de antecedentes criminais do arguido, bem como na sua idade, no diminuto valor das fraudes apuradas, e nas circunstâncias referidas na acusação que determinaram a prática dos factos.
Foi recebida a acusação e aceite a competência do tribunal singular, tendo sido sucessivamente marcadas várias datas para julgamento do arguido. Por falta deste, procedeu-se a vários adiamentos.
Entretanto, o novo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-A-Nova declarou, na audiência de julgamento iniciada em 31 de Outubro de 1991, o tribunal singular incompetente para conhecer e julgar os factos imputados ao arguido, recusando a aplicação das normas dos nºs 3 e 4 do art. 16º do Código de Processo Penal de 1987. Fundamentou tal recusa na inconstitucionalidade material das normas dos nºs 3 e 4 do art. 16º do Código de Processo Penal de 1987, por considerar que as mesmas violam as disposições constantes dos artigos 13º, 32º, nºs 1 e 7, 114º, nº 2, 115º, nº 5, 168º, nº 1, alínea c), 205º, 206º, 208º e 224º da Constituição.
2. - Deste despacho interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Magistrado do Ministério Público, recurso que foi admitido.
3. - Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, tendo apresentado alegações apenas a entidade recorrente, a qual formulou as seguintes conclusões:
'1º - A norma do nº 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal não viola qualquer norma ou princípio constitucionais;
2º - Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.'
4. - Foram corridos os vistos legais.
Não havendo motivos que constituam obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso, impõe-se apreciar o mesmo.
II
5. - Importa começar por delimitar o objecto do recurso.
Não obstante no despacho recorrido haver sido recusada a aplicação do nº 4 do art. 16º do Código de Processo Penal, a verdade é que não chegou a iniciar-se o julgamento do arguido em tribunal singular, tendo-se o juiz declarado incompetente na fase liminar do julgamento, pelo que não há que fazer apelo a tal norma uma vez que a mesma não chegou a ser efectivamente desaplicada na decisão recorrida, pois pressupõe a realização integral de julgamento em processo comum pelo juiz singular e condenação.
Constitui, assim, objecto do presente recurso a norma do nº 3 do art. 16º do Código de Processo Penal de 1987.
6. - A questão sub judicio tem vindo a ser objecto de inúmeras decisões por parte do Tribunal Constitucional, todas elas no sentido da constitucionalidade do nº 3 do art. 16º do Código de Processo Penal, ainda que com alguns votos discordantes. Citar-se-ão apenas alguns acórdãos publicados no Diário da República, II Série, os quais representam uma reduzida percentagem dos proferidos até hoje por este órgão jurisdicional: nº 393/89, 435/89, 465/89,
44/90, 48/90, 137/90, 143/90, 291/90, 296/90, 9/91, 31/91 e 212/91 publicados nos nºs 212, de 14 de Setembro de 1989, nº 218, de 24 do mesmo mês e ano, nº 25, de 30 de Janeiro de 1990, nº 152, de 4 de Julho, nº 158, de 11 de Julho, nº 207, de 7 de Setembro de 1990, nº 42, de 20 de Fevereiro de 1991, nº 62, de 15 de Março de 1991, nº 137, de 18 de Julho de 1991, nº 143, de 25 de Junho de 1991 e nº 211, de 13 de Setembro de 1991, respectivamente.
As decisões de primeira instância no sentido da inconstitucionalidade contêm uma variedade de fundamentos, nem sempre cumulativamente considerados. Remete-se, por isso, para os acórdãos acima indicados, onde todos esses fundamentos são exaustivamente debatidos.
7. - Nos presentes autos, o Juiz do Tribunal Judicial de Condeixa-A-Nova considerou que a norma do nº 3 do art. 16º do Código de Processo Penal era inconstitucional por violar os princípios da reserva da competência legislativa da Assembleia da República, da separação dos poderes e da tipicidade dos actos legislativos, previstos nos artigos 168º, nº 1 , alínea c), 114º, nº 2 e 115º, nº 5 da Constituição, nos termos dos quais cabe à Assembleia da República, ou ao Governo mediante autorização legislativa, a definição das molduras penais, não podendo ser criadas outras categorias de actos legislativos para além dos previstos no nº 1 do citado art. 115º, nem podendo ser conferido a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. Ora, o Código de Processo Penal ao conceder ao Ministério Público a faculdade de requerer o julgamento em tribunal singular para os casos subsumíveis à previsão do art.
14º-2, e ao vincular o juiz à pena máxima de três anos de prisão, está a permitir que o Ministério Público, por via de um requerimento, derrogue a lei penal substantiva que estabelece a moldura penal. Verifica-se, de igual modo, a violação do princípio da reserva judicial com o correspondente extravasamento da competência do Ministério Público (artigos 205º, 206º, 208º e 224º da Constituição). Da conjugação dos citados preceitos resulta que são os tribunais
- apenas subordinados à lei - os órgãos competentes para administrar a justiça em nome do povo. A independência dos juízes, enquanto garantia inerente à estrutura de um Estado de direito, não suporta a sujeição a uma limitação imposta pelo Ministério Público - magistratura responsável e hierarquicamente dependente. A atribuição ao Ministério Público de funções judiciais representa uma inadmissível e inconstitucional ofensa ao princípio da reserva da função jurisdicional, bem como ao princípio da independência judicial.
De harmonia com o citado despacho mostra-se, ainda, violado o princípio do juiz natural previsto no art. 32º, nº 7 - que não se compadece com qualquer manipulação de competência. Na verdade, não basta submeter o Ministério Público a critérios de legalidade e objectividade, é preciso dar conteúdo a essa realidade através do estabelecimento de mecanismos de controle; bem como o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição na medida em que a faculdade concedida ao Ministério Público de determinação concreta da competência introduz um iniludível factor de discriminação, agravado pela ausência de mecanismos de controle da actuação do Ministério Público, criando condições propícias ao aparecimento de situações de desigualdade conforme o critério do Ministério Público.
Assiste-se, por fim, de acordo com o mesmo despacho, a uma diminuição das garantias de defesa do arguido e consequente violação do art. 32º nº 1 da Constituição.
Não se vê que tenha razão o despacho recorrido.
O art. 205º, nº 1, da versão actual da Constituição dispõe que 'os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do Povo'. Por outro lado, 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados'.
Ora, o artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal de 1987 não prevê a criação de um tribunal ad hoc, uma definição individual e arbitrária da competência ou ainda um desaforamento concreto e discricionário de uma certa causa penal.
Prevê tão-somente a utilização de um método de determinação concreta da competência do tribunal singular.
Como se escreveu no Acórdão nº 393/89 deste Tribunal:
'O preceito sub judicio, ao determinar o tribunal competente, não o faz de forma arbitrária, discricionária ou discriminatória. Lançando mão de critérios objectivos, como são os critérios legais para a determinação concreta da pena, limita-se ele a permitir que o tribunal competente para o julgamento de certos crimes seja encontrado pelo recurso ao chamado método de determinação concreta de competência.
Como é sabido, a lei pode atribuir a certos tribunais a competência para julgar certos tipos de crime ou crimes a que, em abstracto, corresponda uma pena com um certo limite mínimo ou máximo. É o método de determinação abstracta da competência. Mas, diversamente, para a determinação do tribunal competente, a lei pode mandar atender antes à pena que, num prévio juízo de prognose, se espera venha a ser aplicada ao crime. Estamos então, perante o método de determinação concreta da competência (cfr. sobre isto, Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, cit., pp. 332 e segs)' (in Diário da República, II Série, nº 212, de 14 de Setembro de 1989. p. 9185).'
É manifesto que o juízo feito sobre a pena merecida pelo arguido, se viesse a provar-se a sua culpabilidade, não implica o risco de criação de um tribunal ad hoc, especial ou de excepção, uma violação do princípio constitucional da igualdade ou uma forma de manipulação da raison d`Etat (cfr. Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, ob. colectiva, CEJ, Coimbra, 1988, pp 18-19).
Tanto basta para que se conclua no sentido de que o nº 3 do artigo
16º do Código de Processo Penal não é inconstitucional, não violando qualquer garantia essencial de defesa dos arguidos.
8. - Continua o Tribunal Constitucional a entender, como tem feito até à presente data, que não existe violação de qualquer norma ou princípio constitucional, pela norma desaplicada na sentença recorrida, designadamente, a norma em causa não briga com a solução constitucional de caracterizar os tribunais como 'órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo' (princípio da reserva da função jurisdicional), nem com a sua independência e exclusiva sujeição à lei, remetendo-se em especial para os Acórdãos nºs 393/89 e 291/90, deste Tribunal.
Por outro lado, o poder conferido ao Ministério Público não pode ter-se como um poder discricionário que possibilite a aplicação de duas medidas diferentes a dois cidadãos que sejam acusados da prática de crime do mesmo tipo, em situações substancialmente idênticas, não violando o princípio da igualdade.
9. - Por todas as razões indicadas, conclui-se que a norma do nº 3 do art. 16º do Código de Processo Penal não está inquinada de qualquer vício de inconstitucionalidade.
III
10. - Termos em que se concede provimento ao recurso, revogando-se em consequência o despacho recorrido, o qual deve ser reformulado em conformidade com o aqui decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Setembro de 1992
Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Vítor Nunes de Almeida António Vitorino Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves (com a declaração de voto aposta ao Acórdão nº 212/91) José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920295.html ]