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Proc. nº 151/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em conferência, no plenário do Tribunal Constitucional:
I
1. A., residente na ----------------, -----------, em ----------, propôs acção declarativa com processo sumário emergente do contrato individual de trabalho contra a B., com sede na
----------------------------, nº --------------, em ---------------, no Tribunal de Trabalho de Lisboa. A acção foi proposta em 12 de Novembro de 1991, sendo distribuída ao 3º Juízo daquele Tribunal. Nessa acção, invocou que fora despedido pela demandada, por deliberação do seu Conselho de Gerência tomada em
8 de Novembro de 1990, após lhe ter sido instaurado procedimento disciplinar onde se apurara a comparticipação do autor, com outras pessoas, no furto de três chapas de cobre pertencentes à entidade patronal, no valor de 1.196.890$00. Concluiu a petição da acção, pedindo a sua reintegração na empresa por força da amnistia laboral decretada em 1991 (alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho), por se ter tornado inexistente a infracção disciplinar atribuída ao autor, em virtude da mesma amnistia, ou, quando assim se não entendesse, a anulação da sanção disciplinar que lhe fora aplicada, invocando falta de justa causa para o despedimento decretado. Pediu igualmente a concessão do benefício de apoio judiciário.
A demandada contestou a acção, suscitando a questão da inconstitucionalidade material da norma amnistiadora, por violação dos arts.
13º, 62º, nº 2, 82º, nº 2 e 87º da Constituição.
Por despacho de fls. 36 a 38, o Senhor Juiz do 3º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa conheceu de imediato da questão de inconstitucionalidade suscitada, considerando a mesma procedente e recusando-se, por isso, a aplicar a norma da alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91. Depois de analisar os contornos do instituto jurídico da amnistia e a questão de natureza jurídica do poder disciplinar da entidade patronal, enquanto empresa pública, fundamentou do seguinte modo o juízo de inconstitucionalidade referido:
'O que se verifica, consequentemente, é que, em matéria de poder disciplinar, salvo o caso de nos estatutos se estabelecer em contrário, as normas e princípios a observar nas empresas públicas são as aplicáveis ao contrato individual de trabalho de direito privado. A titularidade do poder disciplinar pertence aos órgãos de gestão da empresa, exercendo-o estes em nome da mesma, que é dotada de personalidade jurídica (...).
O «jus puniendi» disciplinar/laboral cabe aos órgãos de gestão e não ao Estado (...).
Assim sendo, a Assembleia da República carece de poderes para
«amnistiar» infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas. Fazendo-o, extravasa o âmbito das competências que constitucionalmente lhe são atribuídas, assim violando o princípio da legalidade, contido no nº 3 do art. 3º da C.R.P..
Igualmente viola o nº 1 do art. 61º da mesma, na medida em que dispõe do poder disciplinar laboral dos órgãos de gestão das empresas públicas, que está, por imperativo legal, no âmbito da livre iniciativa dos mesmos.
Por outro lado, viola o princípio da igualdade, consagrado no art. 13º, por favorecer injustificadamente os trabalhadores das empresas privadas, na medida em que o conjunto de direitos e obrigações é, em ambos os casos, idêntico, assim tratando diferenciadamente situações materialmente iguais'. (a fls. 37 vº e 38, dos autos).
Em nota a este despacho, o seu autor explicitou que a decisão em causa acolhia, 'quase na totalidade, o ensinamento do ilustre Professor MENEZES CORDEIRO, expresso em parecer sobre a matéria'.
2. Deste despacho, foram interpostos dois recursos. O autor interpôs recurso de agravo para o Relação de Lisboa e o Agente do Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 70º da lei deste último Tribunal. Por despacho de fls. 48, foi admitido o recurso de constitucionalidade, ficando o outro requerimento a aguardar apreciação oportuna da sua admissibilidade.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, nele tendo apresentado alegações recorrente e recorrida. O trabalhador despedido também se pronunciou sobre o objecto do recurso, sustentando a plena constitucionalidade da norma desaplicada.
4. Nas alegações apresentadas pelo Exmo. Procurador-Geral adjunto foram formuladas as seguintes conclusões:
'1º - A parte final da alínea ii) do artigo 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho
('por decisão definitiva e transitada'), deve considerar-se juridicamente inexistente porque não foi votada e aprovada na Assembleia da República, antes acrescentada em sede de redacção final com extravasamento dos limites regimentais, pois, implicando um alargamento do universo dos amnistiáveis, não se cingiu ao aperfeiçoamento da sistematização e ou do estilo do texto do diploma;
2º Devem, assim, considerar-se excluídas da amnistia as infracções disciplinares dos trabalhadores das empresas públicas ou de capitais exclusivamente públicos puníveis ou punidas com despedimento.
3º Caso assim se não entenda, deve a aludida norma, apenas na parte em que amnistia infracções sancionadas com despedimento, ser julgada inconstitucional, por violação do princípio do Estado de direito democrático'. (a fls. 81-82 dos autos)
A entidade recorrida, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:
'1. A alínea ii) do nº 1 [pretende-se referir o art. 1º] da Lei nº 23/91 de 4 de Julho - Lei da Amnistia - está ferida de inconstitucionalidade por ofender o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.
2. A amnistia de infracções disciplinares sujeitas a um regime de direito privado viola frontalmente o direito de propriedade privada, o direito de organização, de gestão, e das disposições previstas nos artigos 62º, nº 1, 82º, nº 2 e 87º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
3. A norma contida na citada alínea ii) do nº 1 [art. 1º] da Lei nº 23/91 traduz-se num verdadeiro e autêntico confisco do poder privado que a entidade patronal tem sobre os seus trabalhadores, quer do poder de direcção, quer do poder disciplinar.
4. Mesmo que se entenda que a alínea ii) da Lei nº 23/91 não ofende qualquer preceito constitucional, a verdade é que ela não poderá aplicar-se aos despedimentos internos definitivamente já executados no âmbito interno das empresas'. (a fls. 91 vº e 92 dos autos)
Com estas alegações, a recorrida apresentou dois pareceres jurídicos, um sobre a interpretação da parte final da norma desaplicada, da autoria do Dr. C. (a fls. 93 a 123), e outro, da autoria do Prof. Doutor D., sobre as questões de inconstitucionalidade objecto do recurso
(a fls. 124 e seguintes dos autos).
5. Foram corridos os vistos legais na 1ª Secção do Tribunal Constitucional.
Por despacho lançado nos autos, com data de 24 de Novembro de 1992, o Presidente do Tribunal Constitucional determinou a intervenção do plenário no julgamento do recurso, ao abrigo do disposto no art.
79º-A da lei do mesmo Tribunal.
O relator dispensou os vistos dos juízes da 2ª Secção por razões de celeridade, atendendo a que todos estes eram relatores em processos em que se suscitam as mesmas questões de inconstitucionalidade, dispondo já dos pareceres e peças processuais respeitantes a esta questão de inconstitucionalidade.
6. Cumpre, pois, apreciar e decidir.
II
7. A norma desaplicada pelo despacho recorrido com fundamento na sua inconstitucionalidade exclui da amnistia as infracções disciplinares 'quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei'.
No caso sub judicio, o trabalhador A. foi despedido pela B. com fundamento em o mesmo ter praticado, em comparticipação criminosa, um crime de furto de três chapas de cobre, achando-se os factos respeitantes à subtracção dessas chapas parcialmente confessados pelo mesmo no processo disciplinar e na petição inicial desta acção, muito embora o trabalhador considere que só poderia ter sido responsabilizado por cumplicidade e não por co-autoria material. Acha-se também alegado e não impugnado que o trabalhador ressarciu a sua antiga entidade patronal de parte do prejuízo por esta sofrido, achando-se junto aos autos o correspondente recibo (a fls. 18).
Face a tal, poderá perguntar-se se existe interesse jurídico no conhecimento do objecto do recurso, atendendo ao carácter instrumental dos recursos de constitucionalidade. De facto, poderia dizer-se que o julgamento sobre a eventual inconstitucionalidade da norma desaplicada sempre seria inútil, visto que a amnistia estaria em qualquer caso excluída no caso concreto, atendendo à natureza criminal dos factos imputados ao autor e ao valor atribuído aos bens furtados.
Responde-se afirmativamente a essa questão.
Na verdade, não cabe na competência deste Tribunal julgar se o autor A. terá cometido ou não um crime de furto, como co-autor ou cúmplice, e qual a relevância de o mesmo ter ressarcido a anterior entidade patronal da parte do prejuízo causado pelo furto. O Tribunal Constitucional conhece apenas de recursos de constitucionalidade, 'restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada' (art. 71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional; vejam-se ainda os arts. 79º-C e 80º, nºs 1 e 3, da mesma lei).
Não podendo apreciar se a amnistia é ou não aplicável no caso sub judicio em virtude de uma eventual natureza criminosa dos factos que integraram a infracção disciplinar, ou se tais factos, a revestirem-se de tal natureza criminosa, estão ou não amnistiados (cfr. arts. 1º, alínea f) e 3º da lei nº 23/91), impõe-se a conclusão de que o presente recurso se reveste de utilidade, visto que a questão da eventual inconstitucionalidade da norma desaplicada pelo Tribunal a quo carece de ser examinada pelo Tribunal Constitucional, sob pena de transitar em julgado de imediato a pronúncia do tribunal recorrido. Se o Tribunal Constitucional vier a julgar que não se verifica qualquer inconstitucionalidade, na reforma da decisão o tribunal a quo terá ocasião de apreciar as questões acima referidas que sejam da sua competência (cfr. art. 80º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
III
8. Há ainda que averiguar se existe outro motivo que leve ao imediato improvimento do recurso ou, eventualmente, ao não conhecimento do objecto do recurso. Trata-se, efectivamente, de uma como que questão preliminar, suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, relativa à inexistência jurídica da parte final da norma desaplicada pela decisão recorrida. Para apreciar tal questão, torna-se necessário transcrever a norma em causa e analisar o modo como decorreu a elaboração da mesma na Assembleia da República.
9. Dispõe a alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho:
'Desde que praticados até 25 de Abril de 1991, inclusive, são amnistiados:
----------------------------------------------
ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada;
----------------------------------------------
10. Começar-se-á por analisar a história legislativa desta concreta norma amnistiadora, no contexto da Lei de Amnistia de 1991.
Em 4 de Junho de 1991 foi apresentado à Assembleia da República um projecto de lei de amnistia (Projecto nº 779/V), subscrito por deputados de cinco partidos políticos nela representados (veja-se esse projecto in Diário da Assembleia da República, II Série-A, V Legislatura, 4ª Sessão Legislativa, 1990-1991, nº 56, de 14 de Junho de 1991, págs 1297 a 1300). Do preâmbulo do mesmo constam as razões de ordem política e social que inspiraram os seus subscritores:
'Considerando o clima de tranquilidade que se vive no País, fruto de uma notória melhoria da convivência social e de uma cada vez maior compreensão dos valores e princípios da democracia instaurada no 25 de Abril de 1974, cujo 17º aniversário há pouco ocorreu;
Considerando que, na sequência da campanha eleitoral que decorreu com o maior civismo, teve lugar a livre reeleição por sufrágio universal e directo do actual Presidente da República, facto político que mereceu ser assinalado com um acto de clemência, que diversas vicissitudes não permitiram fosse mais atempado;
Considerando que a recente visita a Portugal de Sua Santidade o Papa João Paulo II criou um justificado clima de aproximação e tolerância entre os Portugueses;
Considerando, ainda, que se espera que esse acto de clemência, consistindo sobretudo na concessão de medidas de amnistia e perdão de penas pela Assembleia da República, constitua estímulo para que quem delinquiu o não volte a fazer;
Considerando, por último, que na fixação do âmbito das medidas de clemência propostas houve a particular preocupação de não ferir os sentimentos colectivos e de não pôr em causa a segurança jurídica e social da comunidade; [...]'
Da alínea hh) do art. 1º do projecto constava a proposta de amnistia seguinte:
'As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei'.
Quanto a esta alínea, veio a ser apresentada uma proposta de alteração pelo Deputado E., do Partido Socialista, com o seguinte teor:
'---------------------------------------------
8. - In fine da alínea hh) do artigo 1º, deve ser aditada a expressão «ou sejam puníveis ou punidas com despedimento».
---------------------------------------------'
( In Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 60, de 21 de Junho de
1991, pág. 1418).
O projecto de lei de amnistia foi aprovado na generalidade por votação unânime na última sessão do Plenário da quinta legislatura, ocorrida no dia 21 de Junho de 1991.
Na mesma sessão de 21 de Junho de 1991, foi aprovada por unanimidade, durante a discussão na especialidade, a 'proposta de aditamento da expressão «ou hajam sido despedidos» no final da alínea hh) do artigo 1º, apresentada pelo PS'. (Diário da Assembleia da República, I Série, nº 96 - V Legislatura, 4ª Sessão Legislativa, de 21 de Junho de 1991, pág. 3339). A votação final global do projecto de lei nº 779/V realizou-se de seguida, tendo havido aprovação unânime. Em seguida a essa votação, o Deputado E. solicitou 'a activa intervenção' do Presidente da Assembleia da República 'no sentido do processamento rápido da parte burocrática desta lei', comunicando que o grupo de trabalho da redacção final ia fazer, 'em curtíssimo prazo', uma revisão final da redacção e do enquadramento de alguns preceitos, de tal modo que a publicação pudesse ser feita antes das férias judiciais, sob pena de ocorrer um adiamento de execução em termos de libertação de presos, dada a dificuldade de os juízes de turno conseguirem despachar os processos em tempo útil. No decorrer do uso da palavra, referiu ainda o mesmo Deputado:
'Não é só um problema pragmático, há um preceito regimental que, por si só, pode
«entupir» esta celeridade pretendida. Trata-se do artigo 162º, que permite a 10 deputados reclamar contra inexactidões do texto publicado. O que eu pretendia era sugerir a V. Exª que convidasse a Câmara (talvez não seja um processo muito curial, mas dados os valores em jogo...), em relação a este diploma, a renunciar expressa ou tacitamente ao exercício deste direito regimental, que tem um valor teórico, na medida em que a Assembleia cessa hoje funções, pelo que teria de reunir a Comissão Permanente se houvesse reclamações. Assim, no fundamental, sugeria que V. Exª convidasse a Câmara a, expressa ou tacitamente, aderir à solicitação de renunciar ao direito de reclamar que o artigo 162º do Regimento lhe confere' (mesmo número do Diário da Assembleia da República, I Série, pág.
3341).
O Presidente da Assembleia da República interveio em seguida, dizendo:
'Srs. Deputados, todos ouvimos com atenção aquilo que disse o Sr. Deputado E. e vamos proceder em conformidade. Começo por pedir à 3ª Comissão que produza o texto final tão rapidamente quanto possível para que siga a tramitação normal, e providenciarei a saída de um suplemento ao Diário da República'.
No decreto da Assembleia (Decreto nº 339/V) que veio a ser enviado para promulgação, surge a redacção introduzida pelo respectivo grupo de trabalho na parte final da alínea ii), correspondente a anterior alínea hh):
'... ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada' (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 61, de 21 de Junho de 1991, págs.
1442-1446).
11. O Exmo Procurador-Geral Adjunto sustenta nas suas alegações que a norma desaplicada pelo tribunal recorrido deve ter uma formulação diversa da que resulta da publicação no Diário da República, porque deve julgar-se juridicamente inexistente a expressão final que dela consta ('por decisão definitiva e transitada'). Nessa medida, a infracção disciplinar a que se refere o presente processo não poderia nunca ser amnistiada dado ter havido despedimento, não havendo por esse motivo interesse no objecto do recurso ou, eventualmente, devendo julgar-se o mesmo improcedente.
De harmonia com as referidas alegações, tal expressão final, aditada em sede de redacção final, foi redigida com 'extravasamento dos limites regimentais, pois, implicando um alargamento do universo dos amnistiáveis', não se teria cingido 'ao aperfeiçoamento da sistematização e/ou estilo do texto do diploma'.
Na tese sustentada pelo mesmo Magistrado, a norma validamente editada pela Assembleia da República teria a seguinte redacção:
'Desde que praticados até 25 de Abril de 1991, inclusive, são amnistiados:
-------------------------------------------------
ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos'.
Por tal motivo, não se aplicaria a amnistia ao trabalhador A., visto este último ter sido despedido pela entidade patronal com invocação de justa causa.
12. Considera-se que improcede a questão assim suscitada.
De facto, e como se deixou relatado anteriormente, as circunstâncias em que se operou a votação final global do projecto de lei de amnistia mostram que se formou no plenário da Assembleia da República um acordo entre os Deputados presentes, no sentido de confiar à 3ª Comissão, encarregada da redacção da lei, a tarefa de completar de forma definitiva as soluções objecto de debate, de forma a evitar o atraso na promulgação e publicação da lei, decorrente da eventual formulação de reclamações quanto a essa redacção e da consequente necessidade de convocação da Comissão Permanente para apreciar as mesmas.
Esse acordo teve na sua origem uma proposta do Deputado E. que foi assumida pelo Presidente da Assembleia da República e aceite pelos outros Deputados, através do silêncio ou da abstenção de manifestação de posição contrária.
Nos termos do art. 161º, nº 1, do Regimento da Assembleia da República, a redacção final dos projectos e propostas de lei aprovados incumbe à comissão competente ou, no caso de mais de uma comissão se ter pronunciado sobre os mesmos, àquela que o Presidente determinar. A comissão competente tem o poder de dar a redacção final aos projectos e propostas de lei, não podendo, todavia, 'modificar o pensamento legislativo, devendo limitar-se a aperfeiçoar a sistematização do texto e o seu estilo, mediante deliberação sem votos contra' (nº 2 do art. 161º do mesmo Regimento). A fiscalização da observância deste último preceito é atribuída ao plenário da Assembleia da República, mediante a apreciação de reclamações formuladas por um mínimo de dez Deputados em prazo estabelecido no Regimento (art. 162º, nº 1, deste último).
No caso da Lei da Amnistia de 1991, os Deputados estabeleceram um consenso no sentido de se absterem de apresentar reclamações contra o texto final elaborado pela comissão de redacção, através do acolhimento de uma proposta com tal finalidade de um Deputado, proposta assumida pelo próprio Presidente da Assembleia da República. Por força da não apresentação de reclamações combinada, o texto do projecto deveria tornar-se, de harmonia com a intenção dos Deputados, definitivo logo que fosse entregue ao Presidente da Assembleia da República para ser assinado por este como decreto
(art. 163º do Regimento).
Tudo se passou dentro deste entendimento, como vimos, devendo acentuar-se que não há notícia de que este concreto procedimento legislativo haja sido objecto de qualquer reclamação ou impugnação por parte de qualquer Deputado. Tal significa que o consenso formado subsistiu, quer no momento do acolhimento da proposta formulada pelo Deputado E., quer no momento de elaboração da redacção final no seio da 3ª Comissão, quer, por último, durante o período em que podiam ser formuladas reclamações contra tal redacção final.
Neste quadro não cabe ao Tribunal Constitucional censurar esse consenso, obtido por unanimidade no interior do órgão parlamentar, e que foi fundamentado na urgência de publicação da lei de amnistia, face à aproximação das férias judiciais, e na circunstância de a aprovação final global do projecto em causa ter ocorrido na última sessão da legislatura de 1987-1991, sendo certo que a redacção final foi alcançada
'mediante deliberação sem votos contra', a partir do texto votado pelo Plenário.
Impõe-se, por tudo isto, a conclusão de que a parte final da norma desaplicada não é juridicamente inexistente, contrariamente ao sustentado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
13. Há, assim, que prosseguir, em ordem à apreciação do objecto do recurso, sendo certo que não restam hoje sérias dúvidas, na doutrina e nas jurisprudências constitucionais, sobre a susceptibilidade de os preceitos constantes das leis de amnistia serem fiscalizados, no que toca à sua constitucionalidade, pelos tribunais. Examinar-se-á à frente esta questão.
IV
14. Nos termos do art. 164º, alínea g), da Constituição compete à Assembleia da República conceder 'amnistias e perdões genéricos'. Na redacção originária da Constituição, a alínea f) do mesmo artigo atribuía competência à Assembleia da República para 'conceder amnistias'. Foi na primeira revisão constitucional que se aditou à alínea a expressão 'perdões genéricos' (em Espanha, por exemplo, a Constituição de 1978 confere, na alínea i) do art. 62º, competência ao Rei para 'exercer o direito de graça, com a observância da lei, que não poderá autorizar indultos gerais'.). Com tal aditamento, pretendeu deixar-se claro que, a par do indulto ou da comutação de penas de carácter individual, concedidos pelo Presidente da República, ouvido o Governo (art. 137º, alínea f), da Constituição), podia haver perdões ou comutações com carácter geral, determinados por lei, como sucedia na prática com sucessivas leis de aministia aprovadas a partir de 1974.
A palavra amnistia provém, através da língua latina, de um vocábulo grego que significa esquecimento. O Código Penal português de
1852 continha, no seu art. 120º, uma definição legal do instituto: 'o acto real da amnistia é aquele que, por determinação genérica, manda que fiquem em esquecimento os factos que enuncia antes praticados, e acerca deles proíbe a aplicação de leis penais'. Do § 1º do mesmo artigo constavam os efeitos da amnistia: 'o acto de amnistia extingue todo o procedimento criminal. e faz cessar para o futuro a pena já imposta e os seus efeitos, mas não prejudica a acção civil pelo dano e perda, nem tem efeito retroactivo pelo que pertence aos direitos legitimamente adquiridos por terceiros'.
Embora essa definição tivesse sido eliminada em 1884 e não tivesse sido incluída no Código Penal de 1886, a verdade é que se manteve neste diploma a regra de que a amnistia extinguia o procedimento criminal e as penas (art. 125º, nº 3). A doutrina penalista tradicional considerava que a amnistia eliminava todos os efeitos jurídicos da infracção, sob o ponto de vista criminal, ficando apenas ressalvados os direitos de terceiros.
O Código Penal de 1982 estabelece, no seu art. 126º, nº 1, que a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de já ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena principal como das penas acessórias. Aponta-se neste número para a distinção usual entre amnistia própria e amnistia imprópria. A primeira dirige-se à própria infracção, antes de proferida a condenação. A segunda tem a ver com a situação do sancionado depois da condenação. O mesmo artigo determina, no seu nº 2, que, no caso de concurso de crimes, a amnistia é aplicável a cada um dos crimes a que foi concedida. 'A amnistia pode ser subordinada ao cumprimento de certos deveres e não prejudica a indemnização de perdas e danos que for devida.' (nº 3 do art. 126º do Código Penal). Por último, na falta de disposição em contrário da lei amnistiadora, a amnistia 'não aproveita aos reincidentes nem aos condenados em pena indeterminada' (nº 4 do art. 126º). O art. 127º do Código Penal regula o indulto, dizendo o nº 1 do artigo que o indulto 'extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra prevista na lei'. Não há neste diploma qualquer referência a 'perdões genéricos'.
Segundo os ensinamentos da doutrina penalista francesa recebidos em Portugal, a amnistia distinguia-se 'basicamente do perdão ou indulto, enquanto aquela era entendida como medida jurídica (pertencente ao mundo do Direito e, portanto, sujeita a controlo jurisdicional) e este, pelo contrário, como medida graciosa, pré-jurídica (e, portanto, jurisdicionalmente incontrolável)' (declaração de voto de Figueiredo Dias, anexa ao Parecer nº
13/79 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 8º volume, Lisboa, 1980, pág. 109; vejam-se ainda José de Sousa e Brito, Sobre a Amnistia, in Revista jurídica, Nova Série, AAFDL, nº 6, Abril-Junho 1986, págs.
15 e segs., Eduardo Correia e A. Taipa de Carvalho, Direito Criminal, III, 2, lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra, 1980, págs. 16 e 17; Gustavo Zagrebelski, Amnistia, Indulto e Grazia- Profili Costituzionali, Milão, 1974, págs. 68 e segs.; Blanca Lozano, El Indulto
y La Amnistia ante la Constitucion, in Estudios sobre la Constitucion Española-Homenaje al Professor Eduardo Garcia de Enterria, tomo II, De Los Derechos y Deberes Fundamentales, Madrid, 1991, págs. 1027 e segs.) Entre a amnistia e o perdão genérico (incluindo a figura da comutação genérica de penas) existe uma diferença de regimes jurídicos importante: a amnistia tem efeitos retroactivos, afectando não só a pena aplicada mas o próprio acto criminoso passado, que é 'esquecido', considerando-se como não praticado (abolição retroactiva do crime). O perdão genérico incide, segundo a doutrina maioritária, apenas sobre as penas determinadas pela decisão condenatória e para o futuro
(sobre a distinção entre as várias medidas de clemência, remete-se para José de Sousa e Brito, estudo citado, págs. 19 e segs; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. II, Coimbra, 1985, pág. 182).
15. De um modo geral, pode dizer-se que as medidas de clemência tinham mais lógica nas comunidades da Antiguidade e nos Estados medievais e do Antigo Regime do que nos Estados democráticos contemporâneos, pois correspondiam à vontade discricionária exercida por acto do Chefe ou Soberano, sendo os juízes seus delegados. A verdade, porém, é que os actos de clemência que se traduzem numa renúncia ou abstenção do exercício do jus puniendi pelo Estado se encontram ainda hoje nos Estados de direito contemporâneos - em que é acolhido o princípio da separação de poderes - estando previstos nas respectivas constituições, muito embora a sua justificação racional suscite forte polémica e cause diferentes perplexidades, ao procurar-se o elenco das causas da subsistência do conjunto dos actos de clemência (cfr. Gladio Gemma, Parlamento e Abuso di Clemenza, in Diritto e Società, 1985, nº 4, págs. 657 a 677, referindo-se à experiência parlamentar italiana na matéria e a uma proposta sem êxito de revisão constitucional formulada no seio da comissão Bozzi em 1984 no sentido de limitar a concessão de amnistias e indultos a
«situações excepcionais e irrepetíveis»).
Em especial no que toca à amnistia, medida de clemência de carácter genérico e efeito retroactivo, tem sido sustentado que a sua concessão, sem embargo de revestir a forma de lei, não se consubstancia em lei geral, mas antes em acto político ou, pelo menos, em acto não normativo, necessariamente ofensivo do princípio da igualdade, em suma, através de um acto contra legem (cfr. Afonso Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1976, policopiado, págs. 93 a 95, nota). A evolução do constitucionalismo liberal até ao Estado de direito social ou democrático no nosso século tendeu a fazer prevalecer, porém, a ideia contraria de que a amnistia é um acto normativo, de natureza legal e carácter retroactivo, que se contrapõe ao acto de perdão ou indulto individual. Como refere Figueiredo Dias, na sua já citada declaração de voto:
'Com a institucionalização do Estado de Direito social e democrático, porém, a ideia base desta construção [de que os actos de clemência eram medidas graciosas ou pré-jurídicas] - a crença numa «graça» salvífica que viveria antes e fora do Direito - foi sujeita a cerrada contestação [...]- todos os actos de graça, se e na medida em que sejam admissíveis, são actos que se movem no mundo do Direito - desde logo, mas não só, no do direito constitucional -, estão sujeitos ao seu império e, portanto, ao controlo jurisdicional. O que não deixou de se reflectir nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto: por um lado, acentuando os diferentes órgãos de soberania a que cada um devia caber (aquela
às câmaras legislativas, este ao mais alto representante do Estado); por outro lado, evidenciando que na amnistia se trata sempre de uma medida ao menos formalmente legal e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade; por fim, sugerindo a restrição do conceito de amnistia às medidas legislativas que visem assegurar a isenção de efeitos penais, ou equivalentes, por certos factos, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, diminuídas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, ou equivalente, passada em julgado'. (in Pareceres cit., 8º volume, pág 109).
E, de facto, as jurisprudências constitucionais alemã, italiana, portuguesa e espanhola têm considerado as leis amnistiadoras como verdadeiras leis gerais e abstractas, embora tendo como objecto factos passados, sendo susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade respectiva. O Tribunal Constitucional Federal alemão teve ocasião em 1953 de decidir que a concessão de isenção de pena através de amnistia não era um puro acto administrativo em forma de lei, mas uma lei em sentido material, visto dela constar a previsão de um número incalculável e indeterminado de casos, caracterizados por tipos (cfr. José de Sousa e Brito, estudo citado, pág. 33; vejam-se as decisões do 1º Senado de 15 de Dezembro de 1959 e de 25 de Fevereiro de 1960, em Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, 10º vol., 1960, págs,
246 e segs. e 344 e segs). Em especial no que toca à Comissão Constitucional, teve ocasião este órgão de fiscalizar a constitucionalidade de normas amnistiadoras constantes de decretos-leis emanados do Governo em recursos de constitucionalidade (cfr. entre outros, os Acórdãos nºs 186, e 362, in Apêndice ao Diário da República, de 3 de Julho de 1980, págs. 34-35, e de 18 de Janeiro de 1983, págs. 23 e segs, respectivamente) e de se pronunciar sobre questões de constitucionalidade de uma lei de amnistia aplicável a militares no já citado Parecer nº 13/79 e nos acórdãos nºs 308, 309 e 310 (publicados estes últimos no Apêndice ao Diário da República, de 22 de Dezembro de 1981, págs. 21 a 27).
Ainda que se possa pôr em dúvida, num plano doutrinário, que as leis de amnistia contenham verdadeiras normas jurídicas - dúvida que se pode colocar em função do conceito de norma que se perfilhe - não restam dúvidas de que as disposições amnistiadoras se têm de considerar como normas para efeitos de fiscalização da sua constitucionalidade, de um ponto de vista funcional, sendo certo que as mesmas se revestem de natureza prescritiva, implicando tarefas ulteriores de aplicação pelos destinatários, em especial pela Administração Pública e pelos tribunais, envolvendo juízos de natureza jurídica, tanto mais quanto é certo que as amnistias constam de leis em sentido formal, como resulta do art. 169º, nº 3, da Constituição.
Questão mais controvertida é a de saber se é possível aos tribunais constitucionais declararem inconstitucionais normas de leis de amnistia por violação de certos princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade. De facto, sendo a amnistia um acto de abolição retroactiva da prática de um acto criminoso ou equiparado, sempre se poderia dizer que a norma amnistiadora viola a lei penal ou uma decisão judicial, introduzindo uma correcção a posteriori, mas com efeitos para o passado, na normatividade, pelo que não poderia ser aferida por outras regras normativas ou pelo princípio de igualdade (no Parecer nº 13/79 afirma-se que 'as leis de amnistia correspondem a limitações ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei' - in Pareceres, vol. 8, pág. 104; idêntica afirmação aparece incidentalmente na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão - cfr. a citada decisão do 1º Senado, de 15 de Dezembro de 1959, e a decisão de 27 de Novembro de 1973 in Entscheidungen cit, vol. 36, 1974, págs 191, onde se afirma que o legislador dispõe aí de uma ampla liberdade de conformação ). Toda a lei de amnistia seria ex natura limitadora da ideia de igualdade.
Contra este ponto de vista, tem sido, porém, sustentado que as leis de amnistia são actos normativos soberanos de graça ou clemência, de carácter geral e abstracto, que só podem subsistir no ordenamento constitucional se o seu regime não violar, de forma arbitrária e intolerável, certos princípios constitucionais fundamentais, nomeadamente o do Estado de direito, o da proporcionalidade e até o da igualdade, sendo para isso necessário que as previsões das condutas amnistiadas sejam individualizadas através da utilização de elementos já totalmente realizados e que não possam repetir-se no futuro, tendo carácter excepcional, de tal forma que a negação das consequências de um direito anterior possa fundamentar-se em razões de justiça, não devendo ter-se o acto amnistiador como ofensivo da consciência da comunidade
(cfr. Zagrebelsky, ob. cit, págs 80 e segs., 121 e segs., analisando criticamente a jurisprudência do Tribunal Constitucional italiano; Blanca Lozano, artigo citado, pág. 1039-1041, referindo dados da jurisprudência espanhola). Há quem sustente que uma lei de amnistia só pode ser editada desde que exista uma justa causa, indo ao ponto de afirmar-se que se têm de verificar situações 'excepcionais e irrepetíveis', mas afigura-se, no mínimo, duvidoso que se possa ir tão longe quanto a um juízo sobre a globalidade de certa lei de amnistia, ainda que se possa admitir a controlabilidade pela jurisdição constitucional da exigência de que a delimitação dos factos amnistiados constantes de uma concreta norma da lei amnistiadora tenha de ser 'feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de Direito'.
(José de Sousa e Brito, artigo citado, pág. 44). Tal controlabilidade poderá estender-se a outros limites materiais da amnistia, embora seja controvertido determiná-los em concreto (fala-se em proibição de eficácia ultra-activa e de amnistia individual, de proibição de auto-favorecimento, etc.). Seja como for, se se admitisse levar o controlo mais longe, permitir-se-ia aos tribunais constitucionais uma fiscalização muito apertada sobre a liberdade de conformação do legislador parlamentar ao optar pela concessão de uma amnistia em certo momento de tempo e ao escolher certos tipos criminais para serem amnistiados, em vez de outros. Importa acentuar, citando de novo José de Sousa e Brito, que a legitimação ou justa causa de uma amnistia não pode medir-se só em conformidade com o princípio da igualdade, ou com outros princípios constitucionais isolados, mas antes deverá medir-se tendo em vista a 'totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito', fins que se não 'limitam à justiça, no sentido de realização do direito', valendo aí também 'razões de conveniência pública e a razão de Estado' (ob. cit., págs 43-44).
16. As amnistias incidem tradicionalmente sobre condutas punidas pelo direito criminal, mas têm-se estendido a outras condutas sancionadas por normas de direito público (direito de mera ordenação social, direito disciplinar das escolas públicas ou da função pública, abrangendo neste caso funcionários civis e/ou militares; direito disciplinar das associações públicas; direito sancionatório fiscal). Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que 'nada parece excluir que as amnistias e os perdões genéricos tenham por objecto, não apenas os crimes e as respectivas penas, mas também as demais categorias punitivas públicas (infracções disciplinares, etc.)' (Constituição cit., 2ª ed., 2º vol., pág. 182).
Historicamente, as primeiras amnistias de âmbito laboral surgiram em Espanha, em 1931 (abrangendo os empregados ferroviários e os trabalhadores do Instituto Geográfico, Cadastral e de Estatística, despedidos pela sua participação numa greve geral ocorrida em 1917), e em França, em 1937, durante o governo da Frente Popular.
Mais recentemente, em alguns países europeus, foram aministiadas infracções a direitos sancionatórios não públicos, nomeadamente no domínio laboral. Tal aconteceu em Espanha com a Lei de Amnistia de 15 de Outubro de 1977, Lei nº 46/77, (arts. 5º e 8º), através da qual foram amnistiadas infracções disciplinares sancionadas na legislação laboral do regime de Franco, mas em que as condutas dos trabalhadores deixaram de ser contrárias às normas laborais internacionais que passaram a vigorar em Espanha, após a restauração do regime democrático (sobre a amnistia de 1977 e o debate da jurisprudência sobre a respectiva constitucionalidade, vejam-se Luís Henrique de la Villa e A. Desdentado Bonete, La Amnistia Laboral, Madrid, 1978, págs. 40 e segs.). Em França, por ocasião da eleição presidencial de 1981, a Lei nº 81-736, de 4 de Agosto de 1981, estabeleceu no seu art. 13º a amnistia 'dos factos cometidos anteriormente a 22 de Maio de 1981, na medida em que constituam infracções
(fautes) passíveis de sanções disciplinares ou profissionais', ficando, porém, dependente a amnistia disciplinar ou laboral da concessão de amnistia penal quando os mesmos factos tivessem dado lugar a uma condenação penal. Por outro lado, o art. 14º amnistiou, nas mesmas condições, os factos reconhecidos como motivos de sanções aplicadas pelas entidades empregadoras, podendo os trabalhadores, despedidos após 1 de Janeiro de 1975 em virtude do exercício das suas funções de representantes eleitos dos trabalhadores ou de delegados sindicais, exigir a sua reintegração no posto de trabalho anterior. Ficaram excluídos do benefício da amnistia os factos que constituíssem faltas de probidade, violações dos bons costumes ou da honra. E nova lei de amnistia em idênticos termos foi publicada em 1988 em França, reformulada após um primeiro juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Conselho Constitucional. A Constituição brasileira de 1988 contém uma disposição transitória, de conteúdo amplo, de amnistia de servidores públicos e de trabalhadores do sector privado, dirigentes e representantes sindicais, relativamente às infracções cometidas por motivos exclusivamente políticos (art. 8º e § 2º do Acto das Disposições Constitucionais Transitórias).
Em Portugal, a par de amnistia no domínio do direito penal geral, do direito penal económico e do direito penal militar, tem havido amnistias no domínio do direito disciplinar dos funcionários públicos civis e no domínio do direito disciplinar militar. Mas também têm sido amnistiadas infracções disciplinares de profissionais liberais (art. 1º, alínea ff), da Lei nº 16/86, de 11 de Junho), infracções desportivas (alínea bb) do nº 1 dessa Lei nº 16/86), infracções praticadas por estudantes (Decreto-Lei nº 259/74, de 15 de Junho, art. 2º, alínea l), por jornalistas (art. 1º da Lei nº 17/85, de 17 de Julho) e infracções praticadas por trabalhadores de empresas públicas (art. 1º da citada Lei nº 17/85; alínea ee) do art. 1º da Lei nº 16/86, de 11 de Junho).
No que toca às amnistias laborais de 1985 e de 1986, importa pôr em realce que a primeira contemplou infracções disciplinares praticadas nos meios de comunicação social previstos no art. 39º da Constituição (versão de 1982), isto
é, nos órgãos de comunicação social pertencentes a entidades públicas ou delas dependentes, quando tivessem decorrido da 'legítima expressão da liberdade individual ou colectiva dos respectivos trabalhadores, bem como da livre afirmação das suas opções políticas e ideológicas'; a segunda abrangeu apenas as
'infracções disciplinares cometidas por membros representativos de trabalhadores de empresas públicas no exercício das correlativas funções ou por causa delas, quando não puníveis ou punidas com despedimento'.
Embora tenha sido sustentado recentemente na doutrina que é inconstitucional a extensão da amnistia a infracções não penais, nomeadamente quando estejam em causa infracções sancionadas por normas de direito privado, não pode afirmar-se que a alínea g) do art. 164º da Constituição, restringe as amnistias à matéria penal, isto pela circunstância de a Constituição atribuir competência reservada à Assembleia da República para definir crimes e penas (veja-se, considerando exclusiva a competência da Assembleia da República para conceder amnistias, o Parecer nº 13/79 da Comissão Constitucional, já citado; em sentido diverso, o voto de vencido de Figueiredo Dias nesse parecer; também em sentido crítico sobre a posição de Figueiredo Dias, veja-se ainda Afonso Rodrigues Queiró, comentário ao Acórdão nº 308 da Comissão Constitucional, in Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 114º, págs. 242-245. Este último autor sustenta que o exercício da prerrogativa de amnistia não constitui, numa perspectiva substancial, actividade legislativa, por não ocorrer a generalidade no tempo, defendendo igualmente que o Governo pode amnistiar o ilícito de ordenação social, salvo quando exista um recurso jurisdicional de plena jurisdição). Por outro lado, o poder de amnistiar infracções não penais não pressupõe que o Estado tenha de ter poder disciplinar sobre os autores das infracções amnistiadas: o Parlamento tem competência conferida pela Constituição para amnistiar infracções como órgão de soberania, no exercício de um poder soberano. Não se confunde com o Estado-Administração, nem o exercício do seu poder soberano de clemência está dependente da existência de uma relação de serviço com os autores das infracções. Já atrás se viu que Gomes Canotilho e Vital Moreira admitem que as amnistias possam incidir sobre as demais categorias punitivas públicas. Do mesmo modo, na doutrina alemã, é corrente a afirmação de que as amnistias têm por objecto não só infracções criminais em sentido estrito, mas também as infracções análogas às criminais, nomeadamente as contra-ordenações. E os indicados casos de amnistia laboral em França, em Espanha e no Brasil mostram mesmo que, em certos ordenamentos, se foi ao ponto de amnistiar trabalhadores do sector público e de empresas privadas, quer por norma constante de legislação ordinária, quer por norma constitucional, devendo pôr-se em relevo que, nos casos espanhol e brasileiro, a amnistia surgiu em momentos de mutação constitucional e que, na primeira amnistia francesa, se pretendeu comemorar a primeira vitória de um candidato presidencial da oposição, após mais de vinte anos de vigência da Constituição de
1958.
No que toca à concessão de amnistias no domínio laboral quanto a infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial do Estado (no domínio da comunicação social ou noutros domínios), não se vê como se possa sustentar que tais amnistias são de todo em todo impossíveis ex natura rerum. De facto, o poder disciplinar não é configurável no nosso ordenamento jurídico como um poder absoluto, como é confirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a legitimidade constitucional da Lei nº 68/79, quando conferiu aos tribunais a competência para aplicar a sanção de despedimento aos dirigentes sindicais (vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs 126/84, da 1ª Secção, e 204/85, da 2ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 4º, págs. 393 e segs, e 6º, págs. 511 e segs., respectivamente).
Não sendo um poder absoluto, não pode dizer-se que esteja vedado ao legislador amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de entidades de natureza pública, como sucede no caso dos autos. Não há que falar em expropriação ou confisco do poder disciplinar de entidades autónomas quando o Estado é, directa ou indirectamente, o único titular do capital social dessas empresas,- é o que sucede no caso da entidade recorrida - não tendo sentido aludir neste contexto à iniciativa económica privada (cfr. art. 82º, nº 2, da Constituição). Tão-pouco se pode ver nessa amnistia uma ofensa ao direito de propriedade privada, visto que o Estado é proprietário, directa ou indirectamente, das empresas do sector público, não sendo fundado invocar aquele artigo constitucional para disciplinar as relações do titular das empresas com os órgãos das mesmas. Do mesmo modo, não pode encontrar-se no nº 2 do art. 87º da Constituição qualquer apoio para considerar ilegítima a presente amnistia laboral, visto que o Estado não está a intervir em empresas privadas, mas em empresas, como é o caso da B., cujo capital lhe pertence integralmente, empresas do sector público da economia, portanto.
Conclui-se, por isso, que o órgão parlamentar pode, em tese geral e observadas certas regras, fazer abranger por leis de amnistia o ilícito disciplinar laboral, ainda que regulado pelo direito privado, desde que as entidades patronais sejam entidades públicas (empresas públicas ou sociedades de capitais públicos). Dado o teor das normas em apreciação, não tem o Tribunal Constitucional de curar agora da questão de natureza seguramente diferente, a saber, a da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de normas de amnistia que tivessem por destinatários trabalhadores de empresas privadas, autores de infracções disciplinares.
Finalmente, anote-se que a atribuição da natureza legislativa à norma amnistiadora em matéria laboral não permite que se fale a este propósito de legislação do trabalho, nomeadamente para efeito de exigência de audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais (art. 54º, nº 5, alínea d), e 56, nº 2, alínea a),da Constituição). De facto, uma amnistia
é um acto de clemência ou de graça do Poder Soberano, respeitante a condutas passadas, não se verificando, por isso, as razões que impõem tal audição quando se elabora legislação do trabalho para vigorar no futuro.
17. Importa, por isso, averiguar se a amnistia constante da alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91 é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, como sustenta a recorrida, fundada no parecer jurídico do Prof. D. junto aos autos.
A violação do princípio de igualdade decorreria também da circunstância de o legislador não ter abrangido na amnistia as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores por conta de outrem cujas entidades patronais não são empresas públicas ou empresas de capitais públicos, isto independentemente de se averiguar se uma amnistia podia abranger estes últimos trabalhadores. Quer dizer, pela óptica da empresa pública ora recorrente, o Estado tê-la-ia discriminado, face ao conjunto das empresas do sector privado, assistindo-lhe, assim, o direito de invocar face ao Estado, ainda que detentor de todo o seu capital social, a ofensa ao princípio constitucional da igualdade.
Sem curar agora de saber se as empresas públicas podem invocar direitos fundamentais que possam invocar contra o Estado e, em caso afirmativo, em que circunstâncias o poderão fazer, importa averiguar previamente se existe no caso uma violação do princípio constitucional da igualdade.
Em matéria de concessão de amnistias, como atrás se referiu, o controlo da jurisdição constitucional, em matéria de violação do princípio da igualdade, há-de ser feito com especiais cautelas, dada a intrínseca limitação desse princípio que vai envolvida em todo o acto de clemência. Assim, por exemplo, o Tribunal Constitucional italiano tem considerado em jurisprudência reiterada que 'cabe exclusivamente ao legislador a escolha do critério de discriminação entre infracções amnistiáveis e não
[amnistiáveis], precisando-se que as valorações respectivas deste não podem ser sindicadas, salvo quando ocorram casos em que a falta de perequação normativa, entre figuras homogéneas de infracções, assuma dimensões tais que não possam considerar-se fundadas em alguma justificação razoável'. (Sentença nº 215, de 20 de Maio de 1991, in Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXVI, 1991, 3, pág 1919; v. indicação de outras decisões na anotação na pág. 1920).
Há-de perguntar-se, pois, se a opção do legislador de confinar a amnistia das infracções laborais aos trabalhadores das empresas públicas ou de capitais públicos é totalmente arbitrária, insusceptível de ser fundada em uma qualquer justificação razoável.
A resposta deste Tribunal é que tal opção não é nem arbitrária, nem insusceptível de justificação racional.
Na verdade, o Estado estabeleceu uma medida de clemência para trabalhadores de empresas cujo capital lhe pertence (empresas do sector público, abrangendo as empresas públicas e as empresas de capitais públicos).
Resta saber se este juízo de carácter geral sobre a opção do legislador é válido no caso dos autos.
No segmento da norma desaplicada no caso sub judicio, prevê-se que a amnistia abranja todos os trabalhadores de empresas públicas e de capitais públicos, com exclusão daqueles que 'hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada'.
Importa, antes de prosseguir, procurar fixar o sentido da parte final do preceito agora transcrito.
18. Não é isenta de dificuldades a interpretação da expressão final do preceito, 'por decisão definitiva e transitada'.
No parecer da autoria do Dr. Bernardo Lobo Xavier que se acha junto aos autos sustenta-se que a amnistia laboral seria logicamente inaplicável à 'poena expiata', sobretudo quando a sua consequência normal implicasse a reintegração do trabalhador amnistiado na empresa ou, por tal circunstância, pusesse em causa direitos de terceiros (da entidade patronal e, em especial, do trabalhador que tivesse passado a ocupar o posto do despedido). Com base nesta ideia, esse jurisconsulto sustenta que a interpretação juridicamente mais adequada desse inciso final seria aquela de que decorresse que o legislador pretenderia excluir da amnistia apenas os casos em que os despedimentos já tivessem sido definitivamente efectuados no interior da empresa, ainda que pudessem ser impugnáveis jurisdicionalmente ou mesmo tivessem efectivamente sido impugnados em tribunal. Para o mesmo Dr. Lobo Xavier, só seriam abrangidas pela amnistia as infracções puníveis com despedimento 'que ainda não foram objecto de procedimento disciplinar, ou - tendo-o sido, cujo processo está em curso ou, sendo findo, decidido e comunicado, ainda é susceptível de reapreciação ou revista por reclamação ou recurso no ordenamento interno da empresa'.
Há que reconhecer, porém, que outra interpretação, mais cingida à letra do preceito, se pode sustentar quanto ao mesmo inciso. Segundo esta segunda interpretação, a referência a decisão definitiva e transitada pretenderia abranger apenas todas as sanções de despedimento firmes, isto é, aquelas que, por um lado, são já insusceptíveis de qualquer reclamação ou recurso hierárquico e que, por outro lado, não podem ser já judicialmente modificadas, quer porque não foram impugnadas em tempo devido (no prazo de um ano a partir do dia seguinte ao do despedimento - art. 38º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 49.408, de 24 de Novembro de 1969) ou porque, tendo sido judicialmente impugnadas, foi julgada improcedente essa impugnação por decisão transitada em julgado.
Como é evidente, se se perfilhar esta segunda interpretação - que explica cabalmente a referência a 'decisão transitada', - o
âmbito da amnistia é mais extenso, dela podendo beneficiar os trabalhadores despedidos que impugnaram judicialmente o despedimento, estando o respectivo processo ainda pendente, ou que ainda estavam em tempo de o fazer, no momento em que entrou em vigor a lei da amnistia.
Para efeitos de apreciação da questão de inconstitucionalidade objecto do despacho recorrido, consideraremos apenas a segunda interpretação da parte final do inciso, por ser a de maior extensão. Só no caso de se concluir pela inconstitucionalidade da norma nesta última interpretação e em função das razões de tal juízo, se poderá, porventura, colocar a necessidade de analisar a questão da eventual inconstitucionalidade da norma na interpretação mais restritiva acima apontada.
19. É altura de regressar à questão da legitimidade constitucional da presente amnistia laboral, na sequência das considerações acima expendidas.
Do mesmo modo que o Estado entendeu amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por agentes administrativos, funcionários ou não funcionários, da Administração Pública, central, regional e local, e por militares (alíneas gg) e hh) do art. 1º da Lei nº 23/91), entendeu também amnistiar as infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial, sem distinguir entre os que estão sujeitos à lei do regime do contrato individual de trabalho e os que estão sujeitos a um regime laboral de direito administrativo (art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76 de 8 de Abril). A circunstância de ficarem excluídas as infracções disciplinares punidas com sanção expulsiva, no caso de funcionários públicos, não implica que o legislador não pudesse ter contemplado com a amnistia as infracções cometidas pelos trabalhadores de empresas públicas e de sociedades de capitais públicos, puníveis com despedimento ou punidas com despedimento não definitivo nem transitado, visto não ser válido um raciocínio por maioria de razão entre dois regimes amnistiadores aplicáveis a destinatários com estatuto funcional diferenciado.
Já se viu que o Prof. D. sustenta, no parecer junto aos autos, que tal amnistia viola o princípio da igualdade, uma vez que o instituto do poder disciplinar, configurado por normas jurídicas de direito laboral, existe tanto no ordenamento jurídico das empresas públicas (salvo poucas excepções, entre as quais não figura a ora recorrente), como no das empresas privadas, pelo que é legítimo comparar o tratamento dado (e não dado) a ambos os tipos de empresas pela alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, havendo de concluir-se que a lei em causa tratou desigualmente situações jurídicas qualificáveis como iguais.
Todavia, não pode aceitar-se tal posição. Bastará notar que a natureza empresarial pública da entidade patronal pode condicionar as relações laborais, nomeadamente pela sujeição dos trabalhadores a um regime de direito público (art. 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 49.408, de 11 de Novembro de 1969; art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril), sucedendo mesmo que certos trabalhadores do sector público têm determinados ónus, que não impendem sobre trabalhadores de empresas privadas, mesmo quando sujeitos ao regime da lei geral do contrato individual de trabalho. A título exemplificativo, refiram-se certas incompatibilidades legais para o exercício de funções remuneradas em regime de acumulação que atingem apenas os trabalhadores de empresas públicas do sector bancário (cfr. art. 30º, nºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 729-F/75, de 22 de Dezembro; cfr. José Acácio Lourenço, As Relações de Trabalho nas Empresas Públicas, Coimbra, 1984, págs. 37 e segs.), bem como as amplas possibilidades de exercício de funções por funcionários públicos e trabalhadores de outras empresas públicas em regime de requisição
(art. 32º do Decreto-Lei nº 260/76).
Entende-se, assim, que o legislador tinha a possibilidade constitucional de decretar uma amnistia laboral restrita aos trabalhadores do sector público, atendendo a que se tratava de cidadãos que desenvolvem a sua actividade no interesse e por conta do empresário público, que
é o Estado, não tendo por isso uma situação igual às dos trabalhadores das empresas do sector privado (cfr. arts. 54º, alínea b), e 90º da Constituição). . Não se vê como poderão resultar violados os arts. 13º e 82º, nº 1, da Constituição pela diferenciação introduzida pela lei amnistiadora. Nesta lei de
1991 há normas amnistiadoras que englobam os trabalhadores da Administração directa do Estado e os de chamada Admnistração indirecta (cfr. sobre estas noções, por todos, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1986, págs. 205, 303 e segs.), por o legislador ter dado prevalência à natureza pública da entidade patronal, em vez de ter valorizado a distinção entre trabalhadores vinculados a empresas do sector público por regimes laborais de direito administrativo ou de direito privado, distinção que se reveste de carácter essencialmente técnico ou formal. Tal opção do legislador não é arbitrária ou irrazoável, não podendo este Tribunal censurá-la, já que continua garantida a existência de um sector de propriedade pública dos bens de produção, o qual se não confunde com o sector privado da economia (art. 82º, nºs
1 e 2, da Constituição).
20. De igual modo, assim como não se vê que seja violado o princípio da igualdade pela diferenciação de tratamento dos trabalhadores do sector público e do sector privado, não se vê como tal opção do legislador possa violar os arts. 62º, nº 1, e 87º, nº 2 da Constituição, ao contrário do que tem sido afirmado por certa doutrina: as empresas públicas e a propriedade pública dos meios de produção têm um regime diverso do das empresas privadas e da propriedade privada dos meios de produção. Como já se referiu, não pode falar-se, tão-pouco, em 'expropriação' inconstitucional do poder disciplinar das empresas públicas, fazendo uma equiparação integral deste ao poder disciplinar dos empresários privados. Não há qualquer ofensa da garantia da 'propriedade privada' das empresas públicas, seja qual for o sentido que tal expressão possa assumir.
E, como atrás se deixou dito, não ocorreu igualmente qualquer violação da garantia institucional do sector público empresarial.
21. Por último, e quanto à interpretação acima adoptada para efeitos de apreciação da questão de inconstitucionalidade objecto deste recurso, importa dizer que não se afigura desproporcionado ou arbitrário que o legislador haja amnistiado todos os casos de despedimento ainda não firmes.
Na verdade, não se vê que haja razões de natureza constitucional que imponham, nas empresas do sector público, uma diferença de tratamento entre os casos de despedimento não firmes, resultantes de haver ainda possibilidade de reclamação hierárquica ou de recurso no interior da empresa, e os outros casos em que tal carácter precário da eficácia do despedimento resulta da susceptibilidade de anulação do mesmo por decisão judicial.
Não se verificam nas empresas públicas, com suficiente relevância, exigências de não reintegração do trabalhador despedido por causa da salvaguarda de direitos de terceiros. Trata-se de empresas que têm normalmente grande dimensão e em que a reintegração do trabalhador despedido é menos susceptível de causar perturbação na vida interna da empresa ou de se reflectir de forma prejudicial nos direitos de terceiros.
Contrariamente ao sustentado pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, entende-se também que não ofende o princípio de Estado de Direito democrático a concessão de uma amnistia aos trabalhadores das empresas públicas e de sociedades de capitais públicos que hajam sido despedidos por infracções cometidas num momento em que as respectivas entidades patronais detinham uma dessas qualidades, desde que os despedimentos não se tenham tornado firmes, em virtude de decisão definitiva e transitada.
Por um lado, recorda-se que existe 'justa causa' para esta amnistia (comemoração de consolidação do regime democrático, do 17º aniversário da instauração da democracia, da eleição do Presidente da República, de visita do Papa João Paulo II, isto é, justa causa festiva que serve de estímulo à abstenção de novos actos ilícitos).
Por outro lado, não se vê como, em matéria de amnistia, é possível formular juízo censório quanto a uma invocada falta de fundamento razoável no tratamento diferenciado de funcionários públicos civis e militares e de empregados de entidades empresariais do sector público.
As situações de todos eles são, repete-se, estatutariamente diversas, e a circunstância de ter havido despedimento decretado ainda não definitivo (nomeadamente por estar impugnado judicialmente e poder ser anulado, com eventual reintegração do trabalhador na empresa) quanto aos últimos não é suficiente para daí concluir que a entidade patronal tinha uma expectativa juridicamente tutelada em não ver readmitido o trabalhador.
Não se afigura, por isso, solução excessiva ou desproporcionada, a consagrada interpretação aqui seguida da alínea referida da lei da amnistia, havendo exemplos em direito comparado de soluções análogas, como se viu.
Conclui-se, por isso, no sentido da não inconstitucionalidade da norma desaplicada.
V
22. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso de constitucionalidade com o âmbito indicado e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser reformulado em conformidade com o julgamento em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Messias Bento
Mário de Brito
Bravo Serra
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa