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Proc. nº 275/90 Cons. Rel.: A. Esteves
Acordam, em secção, no Tribunal Constitucional:
I. O representante do Ministério Público requereu ao Tribunal Constitucional a aclaração do Acórdão nº 137/92, de que foi notificado, invocando o artigo 669º, alínea a), do Código de Processo civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Naquele acórdão, o Tribunal Constitucional decidiu: (1) desatender uma questão prévia de não conhecimento do recurso; (2) julgar inconstitucional a norma do artigo 273º, §2º, do Código de Processo Penal de 1929 (redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro), na interpretação que lhe fora dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por violação do artigo 28º, nº4, da Constituição, e, assim, ordenar a reformulação da decisão recorrida.
Com a questão prévia do não conhecimento do recurso, suscitada pelo representante do Ministério Público ora requerente, indagava-se do efeito útil de um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 273º, §2º, do Código de Processo Penal
- sobre prisão preventiva - quando já se realizara a libertação do arguido.
E a esta questão o Tribunal Constitucional respondeu assim:
'O arguido foi, entretanto, devolvido à liberdade, como consta de documentos juntos ao processo. Decorreu o prazo máximo de prisão preventiva, mesmo na interpretação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, mesmo considerado o trânsito em julgado do despacho de pronúncia como o termo inicial de contagem desse prazo.
Notificado para se pronunciar sobre esta nova situação, o recorrente reafirmou o seu interesse na prossecução do recurso de constitucionalidade. Considerou que o provimento desse recurso atestaria a ilegalidade e inconstitucionalidade da prisão a que esteve sujeito, o que constitui o Estado no dever de o indemnizar, como resulta do artigo 27º, nº5, da Constituição.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal suscitou a questão prévia da inutilidade superveniente do recurso, entendendo, em consequência, que do mesmo não deve tomar-se conhecimento. Considerou que, no caso em apreço, o efeito útil de um eventual julgamento de inconstitucionalidade seria a cessação da prisão preventiva do arguido-recorrente, a qual haveria de resultar da reformulação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em conformidade com aquele julgamento. Por isso que, realizada a sua libertação, extinguir-se-ia o interesse processual do recurso de constitucionalidade. Considerou ainda que a função instrumental por este recurso desenvolvida deverá aferir-se no concreto processo de que emerge, não relevando aqui o interesse em futura acção de indemnização a intentar contra o Estado. Esta acção seria assim o lugar adequado para suscitar a questão de constitucionalidade das normas (ou de interpretação das normas) sobre prisão preventiva.
É verdade que o presente recurso perdeu todo o interesse quanto à sua imediata finalidade - a da cessação da prisão preventiva do arguido, que haveria de resultar de um eventual julgamento de inconstitucionalidade. Mas, como se afirmou no Acórdão nº 90/84 do Tribunal Constitucional, (D.R., IIª Série, nº31, de 6.02.85), num quadro factual idêntico ao do caso presente, 'não pode, sem mais, concluir-se (...) que o recurso em apreço deva logo ter-se por inútil por facto superveniente à sua interposição.
É que, se ele já não pode surtir o seu efeito ou objectivo, por assim dizer,
'principal' - a restituição à liberdade do recorrente -, não está excluído ainda que não possa surtir outros efeitos, porventura secundários, mas, de todo o modo, juridicamente relevantes'. (Cf., também, o Acórdão nº 339/87 do Tribunal Constitucional, D.R., IIª Série, nº 216, de 19.09.87).
Ora, o eventual êxito do presente recurso de constitucionalidade constitui pressuposto indispensável de uma acção de indemnização a intentar pelo recorrente contra o Estado, no sentido de fazer valer o direito que lhe confere o artigo 27º, nº5, da Constituição.
Antes de mais, porque o que aí está em causa, é a responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional, decorrente do próprio conteúdo da decisão. Se este facto não for apreciado pela competente instância de recurso, não pode vir a ser ulteriormente 'desautorizado' por outro tribunal. 'A apreciação da 'legalidade' (ou constitucionalidade) de uma decisão judicial (da sua legalidade material, que não funcional)' (...) - como sublinha o Acórdão nº 90/84 - não pode fazer-se noutra sede que não a do recurso ou recursos de que a mesma decisão pode ser objecto.
Além disso, não é seguro que, no quadro dos pressupostos do recurso de constitucionalidade que é dado pelas normas do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pudesse inscrever-se a situação processual do recorrente numa acção de indemnização contra o Estado. Sempre seria de perguntar por que modo haveria aí oportunidade para a aplicação (ou recusa de aplicação) das normas de processo penal sobre prisão preventiva em ordem a criar um 'pretexto' para suscitar regularmente a questão de constitucionalidade dessas normas ou da sua interpretação.
Finalmente, como também se demonstrou no Acórdão nº 90/84, a devolução para o legislador da definição dos termos em que se concretiza o dever de o Estado indemnizar, nos casos de privação ilegal ou inconstitucional da liberdade, operada pela norma do artigo 27º, nº5, da Constituição, não vem frustrar a utilidade do conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional.
É que o direito à indemnização naquela norma consagrado tem já uma existência jurídica real na Constituição.
Ora, ainda que se pressuponha a impossibilidade actual de uma acção judicial de indemnização por ausência da concretização legislativa a que se refere a norma do artigo 27º, nº 5, da Constituição - conclusão a que, aliás, só se chegará se se entender que ao caso não são aplicáveis as normas dos artigos 225º e 226º do actual Código de Processo Penal
- isso não decorrerá nunca de uma escassa afirmação constitucional do direito, mas da ausência de condições legais da sua exequibilidade. E aquela existência é suficiente para se concluir pela utilidade do presente recurso.
Nestes termos, decide-se desatender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.'
II. Com o pedido de aclaração agora formulado pretende-se que o Tribunal Constitucional clarifique:
'1º - se entende que a acção de indemnização por prisão ilegal só é admissível se a ilegalidade da prisão tiver sido judicialmente reconhecida no processo em que foi imposta;
2º - se a decisão do Tribunal Constitucional proferida no processo penal onde foi imposta a prisão faz caso julgado na acção de indemnização a propor na jurisdição civil;
3º - Qual o sentido da reformulação da decisão que é imposta ao Supremo Tribunal de Justiça.'
III. A primeira questão suscitada pelo Ministério Público respeita, directamente, ao interesse no conhecimento do objecto do recurso, interesse que este Tribunal deixou claramente demonstrado no Acórdão nº 137/92. As dúvidas a tal propósito levantadas no pedido de aclaração reportar-se-ão, porventura, ao facto de ali se haver afirmado que 'o eventual
êxito do presente recurso de constitucionalidade constitui pressuposto indispensável de uma acção de indemnização a intentar pelo recorrente contra o Estado, no sentido de fazer valer o direito que lhe confere o artigo 27º, nº 5, da Constituição'. Mas é óbvio que uma tal asserção só pode referir-se à viabilidade da acção que não, propriamente, à possibilidade da sua propositura. Pelo que, nada há, aqui, a aclarar.
IV. As duas restantes questões colocadas pelo Ministério Público (2ª e 3ª) não visam esclarecimento algum sobre o sentido do acórdão. Com efeito, o Acórdão nº 137/92 não se pronuncia sobre a sua força de caso julgado nem, tão-pouco, sobre o sentido a dar à reformulação da decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Porque não poderia ter feito uma ou outra coisa : não lhe competia determinar o âmbito da força de caso julgado, que decorre da lei, e não lhe cabia precisar o conteúdo da decisão que o tribunal a quo deve proferir. O Tribunal Constitucional não é um tribunal de substituição: deve, tão-só, determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o juízo que profere sobre a questão de constitucionalidade. Como afirma Cardoso da Costa
: 'a competência do Tribunal é, pois, puramente cassatória, como o impõe o seu limitado poder de cognição: art. 80º, nº 2, LTC (...)' (Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª edição, Coimbra, 1992, pág. 57, itálico do autor).
V. Já em momento posterior ao do requerimento de aclaração, veio o Ministério Público, nos termos do artigo 677º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, requerer também a rectificação da parte decisória do mesmo Acórdão nº 137/92. Diz: 'com efeito, da Parte V - Decisão do Acórdão nº 137/92 consta que o Tribunal Constitucional decidiu 'julgar inconstitucional a norma do artigo 273º, § 2º, do Código de Processo Penal de 1929 (redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro)', quando, como inequivocamente resulta da fundamentação do acórdão, a norma que se julgou inconstitucional foi a do §1º daquele preceito'.
É verdade essa inexactidão e que houve lapso manifesto. Assim, rectifica-se o acórdão, sublinhando que o julgamento de inconstitucionalidade é referido à norma do §1º e não à do §2º do artigo 273º do Código de Processo Penal de 1929 (redacção do Decreto-Lei nº
402/82, de 23 de Setembro).
VI. Nestes termos, decide-se indeferir o pedido de aclaração do acórdão nº 137/92, formulado pelo Ministério Público, por se entender que aquele acórdão não contém qualquer obscuridade ou ambiguidade. Decide-se também rectificar a formulação contida na parte decisória do mesmo acórdão, referindo o julgamento de inconstitucionalidade à norma do §1º do artigo 273º do Código de Processo Penal de 1929 (redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro).
Lisboa, 28 de Janeiro de 1993
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa