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Procº nº 507/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
Nos presentes autos em que é recorrente o Município A. e recorrido o banco B., pelo essencial das razões constantes da exposição prévia do relator efectuada de fls. 282 a 293, que aqui se dá por reproduzida, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais e fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta.
Lisboa, 27 de Janeiro de 1993
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias bento Fernando Alves Correia Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa
Procº nº 507/92.
2ª Secção.
1. O banco B., instaurou pelo Tribunal de comarca de Penacova e contra C. e a Câmara Municipal de A., acção declarativa, seguindo a forma de processo ordinário, solicitando que fosse declarada nulo, 'por simulação absoluta', ou, em alternativa, fosse anulado, o negócio de compra e venda titulado por escritura pública realizada em 30 de Setembro de 1986 pelo notário privativo da citada Câmara e referente a um imóvel consistente num edifício e terreno, sito no -----------------------, freguesia de --------------------, concelho de
---------------------------, omisso na matriz, mas descrito na Conservatória do Registo Predial daquele concelho sob o nº ---------------, a fls. ----- verso, do Livro ---------------, negócio esse em que intervieram, a C., como vendedora, e a Câmara Municipal já referida, como compradora, consequentemente repristinando-se no património da primeira o mencionado imóvel.
Contestou o Município A. por via de excepção e por via de impugnação, referindo, quanto àquela primeira forma de defesa, que, sendo a pessoa colectiva territorial na forma de autarquia local o município, do qual a câmara municipal era apenas um órgão representativo, era a demandada Câmara parte ilegítima na acção.
Na peça processual então apresentada - contestação - o Município A. em nenhum passo suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma constante do ordenamento jurídico infraconstitucional.
Na resposta à contestação, e visando a matéria de excepção ali deduzida, o banco B. invocou que a circunstância de, na petição inicial, ter demandado a Câmara Municipal de A. e não o Município respectivo, se deveu a lapso de escrita, motivo pelo qual propugnou por se dever considerar corrigido tal lapso.
Em 14 de Novembro de 1988, a magistrada judicial do Tribunal de comarca de Penacova exarou despacho em que, além do mais, disse:
'O Autor vem requerer a rectificação do lapso de escrita constante da petição inicial por forma a que passe a ler-se 'Município' onde se lê Câmara Municipal.
Trata-se, na verdade, de um mero lapso perfeitamente compreendido pelo Réu Município, caso contrário:
1º.- Não se apresentava a contestar sem ser parte.
2º.- Obviamente não deduziria pedido reconvencional sem ser R.
Por isso, defiro ao requerido, passando a considerar-se escrito Município de A. onde se lê Câmara Municipal de A.'.
Nesse mesmo despacho foi referido que as partes dispunham de personalidade e capacidade judiciárias, sendo legítimas, e pelo mesmo foram organizados especificação e questionário.
Do aludido despacho, na parte em 'que determinou o Município como parte do processo e corrigiu e colocou o Município no lugar de Câmara Municipal, admitindo-se a alteração da instância pela substituição processual de parte' (sic) recorreu o Município de A. para o Tribunal da Relação de Coimbra, recurso que foi recebido como de agravo, a subir com o primeiro recurso que, depois da sua interposição, viesse a subir imediatamente.
Seguindo os autos seus trâmites, foi, em 31 de Maio de
1990, proferida sentença através da qual, de entre o mais, foi julgado procedente o pedido alternativo consistente na impugnação do negócio jurídico de compra e venda.
Desta sentença apelou o Município de A., o qual produziu alegações versando, quer a matéria do agravo anteriormente interposto, quer a da apelação, sendo certo que, igualmente, nunca suscitou ali alguma questão de inconstitucionalidade referentemente a norma infraconstitucional.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 18 de Junho de
1991, negou provimento a ambos os recursos, confirmando o tocante ao 'despacho saneador agravado, enquanto decidiu que a 2ª Ré é dotada de personalidade judiciária'.
Novamente inconformado, recorreu o Município de A. para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando, na alegação que formulou, as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte que ora releva e no respeitante ao decidido pela Relação de Coimbra quanto ao agravo interposto:
'1 - O acórdão 'sub judice' enferma, no modesto ver do recorrente de nulidade.
2 - Efectivamente, o réu alegou ilegitimidade da Câmara, por falta de personalidade jurídica desta, em virtude de ser apenas um órgão do Município.
3 - E o autor aceitou esta ilegitimidade, através da réplica de fls.
44, onde afirma que a Câmara mais não é do que um mero órgão da referida autarquia mas logo conclui, que só por mero lapso escreveu Câmara Municipal, tendo o intuito de demandar Município.
4 - Requereu que o lapso de escrita fosse corrigido ao abrigo do disposto no art. 249º do Cod. Civil. tendo o réu impugnado tal expediente.
5 - A MM. Juiz 'a quo' deferiu o pedido e determinou que passasse a considerar-se escrito Município de A. onde se lê Câmara Municipal de A., através de decisão preliminar do despacho de condensação.
6 - O réu recorreu de tal decisão, tendo o recurso sido recebido.
7 - Este apresentou as suas alegações concluindo pela procedência de tal recurso e nas motivações do Acórdão deu-se razão ao recorrente, sem que se tenha decidido sobre o mesmo nem se tenha tirado as consequências legais.
8 - Com esta atitude o Acórdão 'sub judice' violou os comandos das alíneas d) e c) do nº 1 do art. 668º do C.P.P..'
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28 de Maio de 1992, por um lado, negou provimento ao recurso de revista e, a propósito do agravo, entendeu ser correcta a decisão constante do aresto lavrado na segunda instância consistente em identificar a 'Câmara Municipal como o Município em acção'.
Quanto a este ponto, fundamentou o Supremo a sua decisão do seguinte modo:
'De certo que a acção foi proposta contra a Câmara Municipal de A..
Seguro também que a Câmara Municipal não passa de um órgão representativo da pessoa colectiva territorial que é o Município - vd arts.º 30º e 1º, v.g., do DL. nº 100/84, de 29.3. De entre os órgãos representativos do Município, a Câmara Municipal, o órgão executivo, é o único que pode instaurar pleitos e defender-se neles - artº 51º.1, f), do mesmo diploma legal.
É deste modo evidente que, sendo embora formalmente incorrecta, a proposição de uma acção contra uma Câmara Municipal, que não é dotada de personalidade jurídica e judicialmente, como tal, só pode representar o Município, significa o mesmo que accionar o Município respectivo.
Se bem atentarmos até, verificamos que a incorrecção técnica nem está em desconformidade com a lei que vê na 'Câmara Municipal' a expressão designativa do Município. Com efeito, comete-se à Câmara Municipal o poder- dever de instaurar pleitos e de se defender deles - vd artº 51.1, f) do DL. nº
100/84 - e dá-se ao presidente da Câmara Municipal a competência para representar o Município em juízo. Repare-se e acentue-se: à Câmara Municipal compete, no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços, bem como no da gestão corrente, embora não se lhe atribua personalidade colectiva e não passe do órgão executivo colegial do Município - vd artº 43º.1 do DL. 100/84 -, instaurar pleitos e defender-se neles; não se exprime a lei em termos de lhe atribuir a representação judiciária; mas ao presidente da Câmara comete a lei - artº 53º, a), do mesmo DL. - a representação do Município em juízo e fora dele.
Pois bem: nós pensamos que daqui resulta a atribuição à Câmara Municipal da capacidade judiciária do Município.
A Câmara Municipal é, pois, o Município em acção.'.
Do acórdão produzido no Supremo Tribunal de Justiça recorreu o Município de A. para o Tribunal Constitucional, recurso que ali foi desde logo admitido, dizendo-se no requerimento onde manifestou a vontade de recorrer que tal era feito 'nos termos do nº 2 do art. 75º-A, conjugado com a al. 6) do n~1 do art 76º da Lei nº 28/82 de 15/11' e que '...o recorrente logo na sua petição inicial veio alegar, por excepção, que a acção instaurada pelo ora recorrido, ofendia as normas constitucionais que ali referiu, nomeadamente os arts. 237º, 238 e 250º da Constituição da República, nos arts. 3º, 4º e 8º da contestação', acrescentando-se que '[L]ogo, o Tribunal da 1ª instância, da 2º e o ora Supremo Tribunal de Justiça, ofendeu além das normas referidas na p.i. constantes do DL nº 100//84 de 29/3, os comandos dos arts. 237º, 238º, 239º,
240º, 241º, 250º e 252º da Constituição da República' e que 'quer o Superior Tribunal da Relação de Coimbra, quer o Supremo Tribunal de Justiça, determinaram que a Câmara Municipal de A., 'tem personalidade e capacidade judiciária para demandar e ser demandada em juízo', o que equivale a dizer que a Câmara tem personalidade jurídica, ou seja, que existe um ente público com duas personalidades que seria o Municipio e a Câmara'.
Dada a referência que se faz ao articulado da contestação (por manifesto lapso fala-se ali em «petição inicial») no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, entende-se por bem transcrever na presente exposição prévia os items 3º, 4º e 8º daquela peça processual.
São eles do seguinte teor:
'3º
Efectivamente a Câmara Municipal é apenas um órgão representativo do Município de A., por força do art. 250º da Constituição da República, conjugado com o nº 2 do art. 10º e art. 30º do D.L. 100/84 de 29/3.'
'4º
A pessoa colectiva territorial na forma de Autarquia Local, é o MUNICÍPIO, nos termos do nº 1 do art. 238º da Constituição da República e nº 3 do art. 1º do mesmo Dec-Lei nº 100/84 de 29/3.'
'8º
Logo, a acção tinha de ser impetrada contra Município de A., por ser esta a pessoa jurídica - nº 2 do art. 237º da Constituição da República - e não contra a Câmara Municipal, por ser esta ser apenas um órgão daquele.'
2. Muito embora no requerimento de interposição do recurso se refira que o mesmo era deduzido com base nas normas constantes do nº
2 do artº 75º-A, em conjugação com a alínea 6) do nº 1 do artº 76º, um e outro da Lei nº 28/82, parece-nos claro que, quanto a esta última disposição, houve manifesto lapso de escrita, pois que, tudo o indica, se pretendeu escrever a alínea b) do nº 1 do artº 70º, até pela simples razão de que um dos preceitos reportado no nº 2 daquele artº 75º-A é, justamente, a mencionada alínea a) do nº
1 do artº 70º.
Há, desta sorte, que concluir que o recurso interposto para este Tribunal se baseia na disposição ínsita na citada alínea.
3. De harmonia com tal preceito (e tendo ainda em conta o nº 2 do mesmo artigo), são pressupostos de um tal tipo de recurso:
(1) a decisão de um tribunal;
(2) a aplicação, nessa decisão, de uma (ou várias) norma(s);
(3) a suscitação prévia, no processo e pelo próprio recorrente, da inconstitucionalidade da (ou das) norma(s) que na decisão foi (ou foram) aplicada(s).
(4) que da decisão aplicativa já não caiba recurso ordinário - seja por a lei o não prever, seja por já se terem esgotado os que, no caso cabiam.
Para além disto, e segundo uma jurisprudência firmada de há muito por este Tribunal, objecto do recurso de constitucionalidade ou de ilegalidade unicamente podem ser normas e não quaisquer outros actos - verbi gratia, actos políticos e decisões judiciais (cfr., por todos, o Acórdão nº
28/90, publicado na 2ª Série do Diário da República de 14-DEZ-1990).
4. Da exposição fáctica acima feita inequivocamente resulta que o ora recorrente nunca nos autos, e designadamente antes da prolação do acórdão que pretende ver censurado por intermédio do presente recurso, assacou a qualquer norma uma desconformidade com as disposições ou princípios constantes da Lei Fundamental.
O que, em verdade, o recorrente nos autos defendeu foram as seguintes posições:
a) Aquando da contestação, que a Câmara Municipal de A. era 'parte ilegítima' (sic) para ser demandada, por, além do mais, 'não ter personalidade judiciária';
b) Na alegação do recurso de agravo interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, que houve violação, pelo tribunal de 1ª instância, dos artigos 249º do Código Civil e 268º do Código de Processo Civil, já que, por um lado, a indicação, feita pelo autor e na petição, da Câmara Municipal de A. se não deveu a lapso ostensivo e, por outro, o primeiro despacho agravado colocou 'em causa o princípio da estabilidade da instância';
c) Na alegação produzida perante o Supremo Tribunal de Justiça, que era nulo o acórdão lavrado pela Relação de Coimbra, face ao disposto nas alíneas d) e c) do artº 668º do Código de Processo Civil, por isso que, quanto à matéria que agora interessa, teria havido decisão contrária aos fundamentos dele constantes.
É certo que na parte final do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal se escreveu que '... a interpretação e aplicação das als. e) e f) do nº 1 do art. 51º do DL nº 100/84, quando através dela se torna o órgão do Município, que é a Câmara, pessoa jurídica, não pode deixar de violar o nº 1 do art. 1º da Lei nº 1/87 de 6/1 e arts. 237º, 238º e nº
1 do art. 240º da Constituição da República', o que poderia conduzir ao entendimento de que o recorrente, ao tempo da feitura desse mesmo requerimento, pretenderia, com esse recurso, questionar a interpretação - que tornaria inconstituconal as normas desse jeito interpretadas - que, ao menos o Supremo Tribunal a quo, teria conferido a tais alíneas.
Simplesmente, e como este Tribunal tem repetidamente afirmado, não é relevante suscitar-se a questão de inconstitucionalidade no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, já que tal questão tem de ser levantada em momento tal que permita ainda o tribunal recorrido dela conhecer, pois só assim se alcançará o sentido funcional da locução «durante o processo» empregue na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 (cfr., por todos, os Acórdãos nº
69/85, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º Vol., 541 a 543, e
38/90, ainda inédito).
5. Face ao que se deixa dito, haverá que concluir que, in casu, se não verifica um dos pressupostos condicionantes do recurso de constitucionalidade, precisamente aquele que foi sintetizado supra em 3. (3), pelo que se não deverá tomar conhecimento do presente recurso.
Ouçam-se recorrente e recorrido nos termos e para os efeitos do que se estatui na parte final do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82.
Lisboa, 28 de Setembro de 1992.
Bravo Serra