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Processo nº 243/91
1ª Secção Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1.- A., B. e C. intentaram, na comarca de Lisboa, a 9 de Junho de
1987, uma acção ordinária declarativa de anulação, nos termos do artigo 14º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho - diploma respeitante aos efeitos jurídicos especiais advindos do não pagamento pontual das retribuições devidas aos trabalhadores por conta de outrem - demandando as sociedades sediadas em
-------------, D., e E., atribuindo à acção o valor de 57.500.000$00 (cinquenta e sete milhões e quinhentos mil escudos).
Pronunciando-se sobre os pedidos de apoio judiciário formulados pelos três autores, o Senhor Juiz do 14º Juízo Cível daquela Comarca, a quem foram distribuídos os autos, só atendeu o do autor B. e passou à fase do saneador e da especificação e questionário.
Os autores a quem foi denegado apoio judiciário agravaram do despacho mas o recurso viria a ser julgado deserto e, posteriormente, houve desistência dos pedidos, homologada por decisão de 10 de Fevereiro de 1989 (fls. 174), considerando o disposto no artigo 300º, nº 3, do Código de Processo Civil e declarando extinto o direito que os autores pretendiam fazer valer, sendo estes condenados nas custas.
1.2.- Foram os autos à conta e apurado um montante global de custas de
1.744.626$00, quase todo da responsabilidade solidária dos autores, estes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 138º do Código das Custas Judiciais (CCJ) reclamaram, pedindo, nomeadamente, a declaração de inconstitucionalidade das 'normas insertas nos Decretos-Leis nºs. 387-D/87 e
92/88', de 29 de Dezembro e de 17 de Março, respectivamente, sustentando que esses diplomas, na medida em que determinam a aplicação do novo regime de custas
às acções pendentes, violam o disposto nos artigos 2º e 20º, nº 1, da Constituição da República (CR).
O magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação que veio a ser, efectivamente, desatendida, por despacho de 2 de Junho de 1989 (fls. 201).
1.3.- Agravaram os autores A. e C. no sentido de não aplicação dos diplomas citados com fundamento em inconstitucionalidade mas a Relação de Lisboa, por acórdão de 24 de Janeiro de 1991 (fls. 222 e segs.), negou provimento ao agravo.
Foi então que, inconformados, recorreram os mesmos para o Tribunal Constitucional, por alegada violação das 'normas ou princípios constitucionais dos artigos 2º e 20º, nº 1, da Constituição Portuguesa', recurso que viria a ser recebido após se precisar claramente o seu objecto, circunscrito
às normas dos artigos 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 387-D/87 e 5º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 92/88.
2.1.- Nas suas alegações, consideram os recorrentes ter sido violada a norma do artigo 2º da CR na medida em que a aplicação de diplomas legais que entraram em vigor em Dezembro de 1987 e Março de 1988 a uma acção instaurada em Junho de 1987 fere intoleravelmente 'a confiança que a comunidade deve depositar na ordem jurídica ou a segurança que esta lhe deve oferecer', deste modo se desrespeitando o princípio da confiança inerente ao princípio do estado de direito democrático que a norma constitucional citada consagra.
Por outro lado, o artigo 20º, nº 2, da Lei Fundamental confere a todos os cidadãos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, verificando-se que os aumentos sofridos no regime das custas pelos novos textos se traduzem em encargos desproporcionados e irrazoáveis que cerceiam e dificultam o acesso aos tribunais.
2.2.- Por sua vez, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, nas suas alegações, conclui assim:
'1º- Não é inconstitucional, pois não viola os artigos 2º e
20º, nº 1, da Constituição, a norma do nº 1 do artigo 5º do Decreto-Lei nº
92/88, de 17 de Março, enquanto manda aplicar às acções cíveis pendentes o artigo 51º, nº 1, alínea b), e 2, do Código das Custas Judiciais, na redacção do Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro;
2º- Tal norma já é, porém, inconstitucional, por violação do artigo 2º da Constituição, enquanto determina a aplicação às acções cíveis pendentes com o valor de 57.500.000$00 dos artigos 16º e tabela anexa e 35º, nº
1, do Código das Custas Judiciais, na redacção daquele Decreto-Lei;
3º- A norma do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 92/88, na medida em que manda atender na elaboração das contas de custas à lei vigente à data da prolação da decisão condenatória, não é inconstitucional, pois não colide com os artigos 2º e 20º, nº 1, da Constituição'.
3.- Fixado o objecto do recurso, restrito às normas dos diplomas citados efectivamente aplicadas, e corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.1.- O Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro, emitido no uso da autorização legislativa conferida pela Lei nº 37/87, de 12 desse mês, introduziu numerosas alterações no CCJ aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 329, de 8 de Maio de
1962, nomeadamente justificadas pelo confessado objectivo de 'impedir que continuem a decrescer as receitas do Cofre Geral dos Tribunais' - como se retira da leitura do respectivo preâmbulo - sem prejuízo de se enfatizar a garantia do pagamento efectivo das custas face à elevação das taxas vigentes.
Ponderou-se, igualmente, que no empenhamento de actualização das custas, não esteve ausente o princípio constitucional do acesso aos tribunais, garantido pelo artigo 20º da CR.
De acordo com o nº 1 do seu artigo 6º 'o presente diploma entra em vigor na data da entrada em vigor do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro', o que veio a ocorrer em 1 de Janeiro de 1988 (artigo único da Lei nº 17/87, de 1 de Junho).
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, propôs-se clarificar o diploma anterior, complementando-o e dispondo inovatoriamente em contados casos, para o efeito procedendo a alterações no texto do CCJ, mais uma vez se sublinhando que o empenhamento na actualização das custas foi temperado pela preocupação de salvaguardar o já mencionado princípio constitucional de acesso aos tribunais.
No seu artigo 5º, e na parte que interessa, prescreve-se:
'1- O Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro, aplica-se às acções cíveis pendentes em 1 de Janeiro de 1988.
2- Porém, cada uma das contas deve ser efectuada de harmonia com a lei vigente à data em que foi proferida a respectiva decisão sobre a condenação em custas'.
Se perante o disposto naquele artigo 6º, nº 1, se poderia hesitar na sua aplicação às causas cíveis pendentes em 1 de Janeiro de
1988, o transcrito nº 1 do artigo 5º consagrou uma interpretação autêntica no domínio da aplicação da lei no tempo, completada pelo disposto no nº 2 quanto à elaboração das contas e à data da decisão condenatória nas custas.
1.2.- No caso sub judicio verifica-se que a acção foi proposta em momento anterior à primeira das citadas alterações - mais exactamente, em 9 de Junho de 1987 - mostrando-se a decisão de condenação em custas, objecto de recurso, datada de 10 de Fevereiro de 1989, ou seja, posterior à data da entrada em vigor dos dois diplomas citados.
Como o artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 92/88 é interpretativo do artigo 6º, nº 1, do texto de 1987 e a lei interpretativa se integra na interpretada, retroagindo os seus efeitos ao início da vigência desta
(cfr. Código Civil, artigo 13º, nº 1), a apreciação do objecto do recurso passa pela questão de (in)constitucionalidade daquelas normas na medida em que conduziram à aplicação, na elaboração das contas, de alguns dos preceitos do CCJ, na redacção do Decreto-Lei nº 387-D/87, a saber:
- artigo 16º e tabela anexa, nas contas
1007, 1009 e 1010 (fls. 182, 184 e 185);
- artigo 35º, nº 1, na conta 1009;
- artigo 51º, nº 1, alínea b), e nº 2, nas contas 1004, 1006 e 1008 (fls. 179, 181 e 183).
1.3.- Pelo referido Decreto-Lei nº 387-D/87, o artigo 16º do CCJ passou a ter a seguinte redacção:
Artigo 16º Taxa de justiça devida nos tribunais de comarca
'Nos tribunais de comarca, as taxas de justiça devidas pelos processos cíveis, incluindo os inventários que sejam ou passem a facultativos, falências, insolvências, recursos de revisão e de oposição de terceiro, são as constantes da tabela anexa, calculadas sobre a valor da causa'.
A tabela anexa originariamente ao CCJ foi publicada na I Série do Diário da República (2º suplemento ao nº 299, de 30 de Dezembro de
1987), tendo a respectiva nota sido alterada pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº
92/88, que determinou:
'A nota da tabela a que se refere o artigo 16º do Código das Custas Judiciais é alterada nos termos seguintes:
Para além de 10 000 contos, sobre a importância que exceder essa quantia - 1,5% de taxa de justiça;
Para além de 100 000 contos, pela importância que exceder essa quantia - 1% da taxa de justiça'.
Observe-se que esta tabela viria a ser substituída por outra, aprovada pelo Decreto-Lei nº 212/89, de 30 de Junho.
Os artigos 35º e 51º do CCJ, aplicados na elaboração das contas, foram objecto de alterações pelo Decreto-Lei nº 387-D/87, passando a dispor o seguinte, na parte que interessa:
Artigo 35º Taxa de justiça devida nos recursos
'1- As taxas de justiça a aplicar nas apelações, revistas e agravos de decisões proferidas em quaisquer acções e seus incidentes são iguais a metade das que constam da tabela anexa.
----------------------------------'
Artigo 51º Diminuição excepcional das taxas de justiça
'1- Sempre que tal se justifique, o tribunal pode baixar até metade da UCC qualquer taxa da justiça fixada na lei, mesmo que já sujeita a redução legal, nos seguintes casos:
----------------------------
b) Quando o processo, incidente ou acto sejam por natureza de extrema simplicidade.
2- No caso previsto no número anterior o juiz tem de fixar a taxa de justiça por referência a uma importância em dinheiro
----------------------------------'
2.- Sendo estas normas aplicadas na elaboração das contas no presente processo, por via do disposto no artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 92/88, interessa comparar o que os responsáveis pelas custas pagariam no regime anterior às alterações de 1987 com o que, mercê da aplicação das alterações ao regime nas acções pendentes, lhes é imputado a título de responsabilidade pelas custas.
Numa acção com o valor da presente, à luz da legislação anterior, o imposto de justiça importaria em 290.850$00 e o imposto de selo em 7.210$00 (artigo 16º do CCJ, em referência à tabela I anexa), enquanto nos recursos o imposto de justiça devido seria de 125.420$00 e o imposto de selo 1.520$00 (artigo 35º do CCJ, com referência à tabela III anexa).
Após as alterações ocorridas, a taxa de justiça compreendida nas custas da acção, da responsabilidade dos ora recorrentes, corresponde à quantia de 891.500$00 (citado artigo 16º e tabela anexa, alterados pelos Decretos-Leis nºs. 387-D/87 e 92/88, respectivamente) e a taxa de justiça aplicada no recurso de agravo cifra-se em 445.750$00 (artigo 35º, nº 1, na redacção transcrita).
Os quantitativos em confronto apontam, de modo inequívoco, para um aumento substancial das custas judiciais em acções com o valor da presente.
Se esta parece ser uma inevitável conclusão decorrente da materialidade dos valores em presença, já outra tarefa será a de retirar da mesma as ilações inerentes à formulação de um eventual juízo de inconstitucionalidade, se se conceder mostrar-se o aumento desproporcionado e imprevisível, não compaginável com as expectativas processuais dos litigantes.
É o que passaremos a analisar.
III
1.- O Tribunal Constitucional, actuando em sede de fiscalização abstracta sucessiva, teve recentemente oportunidade de lavrar acórdão - o nº 467/91, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992 - que se pronunciou sobre todas as disposições do CCJ objecto de nova redacção pelo Decreto-Lei nº 387-D/87 (rectius, sobre um pedido que se reportava a todas essas disposições).
Por seu turno, no domínio da fiscalização concreta, vários arestos já foram tirados nesta matéria, aferindo-se a parametricidade constitucional, essencialmente, através do direito de acesso ao direito e aos tribunais e das vertentes da proporcionalidade e da confiança decorrentes do princípio de Estado de direito democrático.
A este respeito, e paradigmaticamente, apontem-se os Acórdãos nºs. 307/90, 339/90, rectificado pelo nº 72/91 - publicado na II Série daquele jornal oficial, de 4 de Março, 17 de Junho e 8 de Julho de 1991, respectivamente - e 49/92, ainda inédito.
1.1.- De acordo com o nº 1 do artigo 20º da CR, 'A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' (corresponde ao nº 2 do artigo 20º da 1ª revisão constitucional com alterações, pois o texto anterior era mais restrito: 'A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos').
Não decorre do preceito o imperativo de uma justiça gratuitamente administrada mas sim a garantia do exercício da tutela jurisdicional dos direitos mediante um acesso à justiça que não gere desigualdade de oportunidades.
De outro modo, o reconhecimento desse direito seria meramente teórico pois dependeria - ou poderia depender - da verificação de condicionalismos económicos onerando o seu exercício de modo desadequado e, porventura, desproporcionado.
O 'direito ao tribunal' como se salientou naquele acórdão nº 467/91, significa, na sua pluridimensionalidade, a incumbência de o Estado realizar a tarefa qualificada de proporcionar aos cidadãos a tutela jurisdicional dos seus direitos, o que implica não só uma dimensão de defesa, ou garantística, e uma dimensão de prestação, mas também a necessária articulação com o princípio fundamental da igualdade plasmado no artigo 13º da CR (cfr., a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., 1º vol., Coimbra, 1985, pág. 182; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, pág. 257; Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 668, onde se acentua o
âmbito mais restrito do direito de acesso aos tribunais relativamente ao direito de 'acesso ao direito').
Para o efeito, existem mecanismos legais que, todavia, nem são de aplicação automática nem respeitam ao universo indiferenciado dos cidadãos, pois a estes compete o ónus de os accionar bem como o de provar a insuficiência de meios e posterior sujeição a decisão judicial.
É o caso da assistência judiciária prevista na Lei nº 7/70, de 9 de Junho, e regulamentada pelo Decreto nº 562/70, de 18 de Novembro, e, hoje, do instituto do apoio judiciário com expressão nos Decretos-Leis nºs. 387-B/87 e 391/88.
1.2.- O direito a recorrer ao tribunal para dele obter a solução jurídica de uma situação de conflitualidade não é equacionável em termos rígidos tais que se possa razoavelmente argumentar que - e cuidamos do concreto caso - os autores, ao demandarem as rés em 1987, consideravam-se com boas razões para alcançarem êxito na acção, pelo que não tinham, nem podiam ter, expectativa de pagarem X e não Y nas custas do processado, sob pena de se entender que agiram com fins menos claros e no intuito de posteriormente desistirem do pedido.
Na verdade, afastando as hipóteses de uso anormal do processo ou de má fé, substancial ou processual, a expectativa inicial do provável 'custo' da iniciativa é um elemento de legítima equacionação pelas partes, a par de outros como a dedução dos seus argumentos, a ponderação das razões adiantadas pela parte contrária, os valores em causa. A esta luz, por exemplo, a desistência do pedido, implicando renúncia à pretensão formulada, pode atribuir-se a implícito reconhecimento de falta de fundamentação ou da sua sucumbência ou, ainda, à adopção de uma diferente estratégia que passe, designadamente, pela composição extra-judicial do litígio.
Pode, assim, configurar-se como encargo inesperado um significativo agravamento do regime de custas, a recair sobre um cidadão de mediana situação patrimonial ao qual foi negado o apoio judiciário inicialmente pedido (como é o caso de dois dos autores) ou a quem, beneficiando embora de assistência judiciária, decair na acção ou dela desistir (como é o caso de outro dos autores).
De resto, e neste sentido se pronunciou um dos acórdãos citados, o nº 339/90, não há interesse público na aplicação imediata de uma reforma da política legislativa em matéria de custas que justifique pôr, eventualmente, em causa o interesse processual das partes e, sobretudo, relativamente à generalidade dos cidadãos que são partes em lide pendente, que justifique modificar radicalmente uma das bases da decisão de iniciar o processo ou de interpor o recurso.
2.- Tendo por adquirido não ser gratuita a justiça, implicando a garantia de acesso aos tribunais uma dimensão prestacional que, actualmente, tem projecção prática no instituto do apoio judiciário, resta apurar se, no caso em apreço, a alteração ao CCJ ocorrida com o diploma de 1987, completada pelo de 1988, observáveis por via do disposto no artigo 5º, nº 1, do segundo desses diplomas, realiza ou não o imperativo da norma do artigo 20º, nº
1, da CR, ou está ou não de acordo com os princípios emanentes do Estado de direito democrático, constitucionalmente consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental.
2.1.1.- Ao considerar o artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 92/88 que manda aplicar o disposto no Decreto-Lei nº 387-D/87 às acções cíveis pendentes em 1 de Janeiro de 1988, a representante do Ministério Público neste Tribunal opera uma distinção:
a) na medida em que esse normativo implica a observância do disposto no artigo 51º, nº 1, alínea b), e nº 2, do CCJ
(redacção do diploma de 1987), não se configurará inconstitucionalidade, pois que se trata de normação que confia ao critério do juiz, nos casos aí previstos e ocorrendo um dos motivos justificativos aí enunciados, baixar até metade de uma unidade de conta de custas qualquer taxa de justiça, mesmo que já sujeita a redução legal, devendo fazê-lo por referência a uma importância em dinheiro.
A esta luz não só a taxa de justiça fixada será
'manifestamente razoável e acessível' como tais normas permitem ainda minorar a elevação dos montantes constantes da tabela anexa ao CCJ.
b) na medida em que o aludido preceito determina a aplicação às acções cíveis pendentes com o valor da presente acção dos artigos 16º e tabela anexa e 35º, nº 1, do CCJ (texto de 1987), haverá inconstitucionalidade material, por violação da norma do artigo 2º da CR.
2.1.2.- Finalmente, ao ter em conta o artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
92/88, na medida em que manda atender na elaboração das contas de custas à lei vigente à data da prolação da decisão condenatória, igualmente não se desenhará inconstitucionalidade, uma vez que é doutrinalmente pacífico dever a condenação em custas ser proferida de harmonia com a lei vigente a essa data e não à da propositura da acção.
Assim, não poderá falar-se de violação do princípio da confiança, por um lado, nem violação ao direito de acesso aos tribunais, por outro, pois que se trata de norma que se limita a fixar o regime aplicável na elaboração da conta de custas.
2.2.- O Senhor Juiz que se pronunciou sobre o incidente de assistência judiciária, indeferiu as pretensões dos autores A. e C., condenando-os às respectivas custas, com o imposto reduzido a metade da UCC (3.150$00), nos termos dos artigos 42º, 51º, nº 1, alínea b), e 53º da CCJ (fls. 149-v e 150), o que deu aso às contas nº 1004 e 1006, cada uma no montante de 52.317$00.
Por sua vez, ao julgar procedente, no mesmo despacho, o incidente de ilegitimidade, por falta de interesse em demandar, do autor A., o magistrado considerou parte ilegítima e absolveu as rés da instância relativamente ao pedido desse autor, condenando-o nas custas respectivas, desde logo fixadas em um quinto do que a final se mostrar devido
(fls. 152), o que importa em 227.467$00 (conta 1007).
A conta nº 1008 respeita à condenação solidária em custas dos autores A. e C. quanto ao incidente de resposta à reclamação sobre a especificação e questionário, que foi deduzido fora do prazo, fixando-se o imposto de justiça respectivo com a taxa reduzida igualmente a 3.150$00
(despacho de fls. 170-v).
A conta nº 1009 respeita à deserção do recurso, da responsabilidade solidária destes dois autores, no montante de 222.875$00, por efeito da aplicação do disposto no artigo 35º, nº 1, do CCJ, correspondendo a uma taxa de justiça igual a metade da que consta da tabela anexa (despacho de fls. 171-v.).
Finalmente, a conta 1010, no valor de 1.186.500$00, da responsabilidade solidária dos mesmos autores, refere-se às custas da acção em que foram condenados na decisão homologatória da desistência do pedido (fls.
174).
3.1.- A redacção conferida ao artigo 51º do CCJ pelo diploma de 1987, alterado pelo Decreto-Lei nº 92/88 (e actualmente revogado, pelo Decreto-Lei nº
212/89) constituí uma das inovações introduzidas no Código, na medida em que permitiu ao juiz baixar até metade de uma unidade de conta de custas qualquer taxa de justiça, mesmo que sujeita a redução legal, se os processos, incidentes ou actos se revestem de excepcional simplicidade ou, por natureza, forem de extrema simplicidade (para além de casos específicos em que se revela manifestamente excessiva a taxa normal aplicável ao processo, incidente ou acto).
No caso vertente, o julgador recorreu ao disposto no nº 1 daquele artigo 51º relativamente aos incidentes ocorridos na tramitação da instância, responsabilizando os ora recorrentes por verbas de custas que, considerando a situação económica média deles e o elevado valor atribuído à acção, não se configuram nem desrazoáveis nem excessivas, de modo a concluir-se por violação, seja do princípio da confiança, frustrando de modo intolerável a expectativa criada quanto às prováveis despesas processuais decorrentes da iniciativa assumida, seja do princípio do acesso aos tribunais, de maneira a dizer-se restringida a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos demandantes.
3.2.- Já o mesmo se não afirma quanto às custas da acção, a que respeita a conta nº 1010, da responsabilidade dos ora recorrentes.
Colhe-se do confronto entre as verbas que seriam liquidadas à luz do CCJ antes das alterações de 1987 e as que efectivamente foram apuradas por via dessas alterações - descritas no ponto II.2 - que não só a expectativa originária foi afectada como a sua expressão se revela acentuadamente desfavorável, concretizando-se a dívida de custas em números que o interesse público que motivou a alteração normativa certamente não terá pretendido dar cobertura, com repercussão directa, pela sua desproporcionalidade e imprevisibilidade, na base da decisão de litigar, o que põe em causa o princípio da confiança e, por sua via, o do Estado de direito democrático.
4.- Sustentam ainda os recorrentes a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 92/88 - segundo a qual cada uma das contas deve ser efectuada de harmonia com a lei vigente à data em que foi proferida a respectiva decisão sobre condenação em custas - por a reputarem igualmente violadora dos artigos 2º e 20º, nº 1, da CR.
No entanto, a Doutrina entende que a decisão de condenação em custas deve ser proferida em conformidade com a lei vigente à data dessa decisão e não segundo a lei em vigor à data em que foi proposta a acção, pois é com a sentença que surge a obrigação de custas, como ensinam Alberto dos Reis, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 73, pág. 66
(nº 45) e Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, edição de 1976, nº 171, págs. 338 e segs.).
Assim sendo, concorda-se com a posição assumida a este respeito pelo Ministério Público:
'Consagrando a norma do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 92/88 a doutrina uniforme aceite na matéria, há que reconhecer que não viola o princípio da confiança ínsito no Estado de direito. E, na medida em que se limita a fixar o regime aplicável na elaboração da conta de custas, também não viola o direito de acesso aos tribunais'.
IV
Em face do exposto, decide-se:
a) conceder provimento ao recurso, na medida em que se julga inconstitucional, por violação do disposto no artigo 2º da Constituição da República, a norma do nº 1 do artigo 5º do Decreto-Lei nº
92/88, de 17 de Março, enquanto manda aplicar às acções cíveis pendentes em 1 de Janeiro de 1988, no valor de 57.500.000$00, os artigos 16º do Código das Custas Judiciais, e respectiva tabela anexa, com a nota alterada pelo artigo 2º daquele Decreto-Lei nº 92/88, e 35º, nº 1, do mesmo Código, um e outro na redacção do Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro;
b) dever, consequencialmente, reformar-se a decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade ora emitido.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1993
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração que junto)
José Manuel Cardoso da Costa (não acompanhei a decisão, por razões paralelas às expendidas na declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 339/90)
Proc. nº 243/91
Declaração de voto
Não subscrevi a tese do acórdão, que conclui pela inconstitucionalidade da norma do artigo 5º, nº1, do Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, e assenta num fundamento de violação (autónoma) do artigo 2º da Constituição da República.
Desde logo, porque em meu entender, a protecção da confiança dos cidadãos que deriva do princípio do Estado de direito não pode ser invocada sem recurso a outros lugares da Constituição. Depois, porque o aumento das custas decretado pelo legislador, com o 'efeito-surpresa' que envolve, não pode ser avaliado à luz do método linear da tese vencedora. Como tentarei demonstrar.
O princípio do Estado de direito democrático - assim escrevi em declaração de voto aposta ao Acórdão nº 303/90 - é um princípio directivo, e não um princípio normativo. A sua concretização só pode operar-se com recurso a valorações complementares. A protecção da confiança dos cidadãos que lhe vai ligada, como subprincípio não expresso, não se deduz liniarmente do artigo 2º da Constituição.
Se é verdade, como diz Larenz, que a razão de ser da protecção da confiança é a mesma no direito público e no direito privado - «possibilitar a confiança e proteger a confiança justificada» -, também não pode deixar de se sublinhar que isso não implica a simples «transferência» para o direito público de princípios como o da boa fé ou do non venire contra factum proprium, destinados a desencadear mecanismos de responsabilidade pela confiança, no
âmbito da autoregulação de interesses.
A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, significa o asseguramento de um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, a garantia da confiança na actuação dos entes públicos. Mas não pode deixar de conjugar-se com a liberdade do legislador, não pode deixar de ter em conta os desideratos do princípio democrático.
Como diz Vieira de Andrade, a 'liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade, ainda que limitadas, constituem características típicas da função legislativa e elas seriam praticamente eliminadas se o legislador fosse obrigado a manter integralmente o nível de realização e a respeitar os direitos por ele criados' (Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p.309).
É a ponderação do equilíbrio entre o princípio de Estado de direito e o princípio democrático que importa ao intérprete na avaliação das situações concretas, de tal modo que a protecção da confiança há-de reconhecer-se, não apenas a partir do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, mas com recurso a outras valorações que justifiquem a limitação da liberdade do legislador.
É que, como diz Gomes Canotilho, 'uma argumentação ancorada exclusivamente em princípios abstractos reconduzir-se-á a um infrutífero esquema tautológico (por exemplo, 'deve ser protegida a confiança do cidadão digna de ser protegida', 'devem proteger-se os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos')' (Direito Constitucional, 4ª ed., Coimbra 1986, p. 313).
Ao averiguar se numa situação concreta está em causa a protecção da confiança dos cidadãos, não pode o intérprete orientar-se simplesmente ao artigo 2º da Constituição, devendo indagar da existência de outros valores constitucionalmente relevantes que rejeitem a 'inversão de sentido' do legislador.
É por isso que a norma em apreço não pode ser apenas confrontada com o artigo 2º da Constituição. É necessário perguntar que posições jurídicas constitucionalmente relevantes podem estar a ser postas em causa pela dinâmica do legislador. A norma do artigo 5º, nº1, do Decreto-Lei nº
92/88, de 17 de Março, inviabiliza o acesso à justiça ou torna dificilmente suportável esse acesso?
A colocação do problema afasta, por este modo, o método de ponderação que vai ligado à tese do acórdão. A protecção da confiança não pode aferir-se na relação linear que se estabelece entre o preço antes previsto para as custas e aquele que se prevê (e paga) no momento em que nasce a respectiva obrigação: o valor da causa é ainda um dado imprescindível. E aqui subentra toda a argumentação do Acórdão nº 467/91 (D.R., IIª série, nº 78, de 2.4.1992) que não declarou a inconstitucionalidade das normas do Código das Custas Judiciais, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei nº 387-D/87, e afirmou, designadamente, a conformidade dessas normas aos artigos 20º e 13º da Constituição.
Não é possível falar em arbitrariedade, desestabilização de expectativas ou desproporção relevante aí onde não está posto em causa o direito ao tribunal (ou permanecer no tribunal).
Afinal se a liberdade do legislador deve ser controlada, é porque existe.
Maria da Assunção Esteves
Proc.Nº 243/91 Sec. 1ª Rel. Cons. Tavares da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO:
Concordando embora com a fundamentação do presente acórdão, entendi porém que os princípios em que assenta a decisão tomada, tal como foram aplicados ao caso concreto, me levariam a não julgar inconstitucional a norma em causa.
Vistas as coisas globalmente, ponderadas as vicissitudes processuais que tiveram lugar, considerando que o montante apurado a final diz respeito a quatro incidentes e a uma decisão que põe termo ao processo, cheguei a conclusão oposta àquela que fez vencimento.
A comparação entre os valores e custas que seriam aplicáveis no regime anterior às alterações de 1987, no total de 290.850$00 de imposto de justiça e de 7.210$00 de imposto de selo e a taxa de justiça agora encontrada, no valor de 891.500$00 revela certamente uma discrepância significativa. Não tanto, porém, que seja de molde a proporcionar a conclusão de que terá sido violado o princípio da confiança, frustrando de forma intolerável a expectativa criada quanto às despesas processuais, ou de que terá sido violado o princípio do acesso aos tribunais, para defesa dos direitos e interesses legítimos dos demandantes.
Nesta conformidade, não votei a decisão.
Vítor Nunes de Almeida