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Procº n.º 78/90 Rel. Cons. F. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional.
I - Relatório.
1. A., na qualidade de expropriante dos terrenos necessários à execução do Plano de Urbanização de Telheiras, requereu ao Tribunal Cível da Comarca de Lisboa autorização para efectuar em prestações, e no prazo de 10 anos, o pagamento da indemnização que viesse a ser fixada, a satisfazer anualmente conjuntamente com os juros correspondentes, relativamente
à Parcela nº -----, com a área de -------- m2, a qual entretanto lhe fora adjudicada, depois de autorizada a posse administrativa, e cujo valor indemnizatório tinha sido fixado pelos árbitros no quantitativo de 4.972.590$00.
A pretensão da expropriante foi, porém, julgada improcedente por Sentença do M.mº Juiz do 1º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, de 23 de Dezembro de 1986, com o fundamento de que, não sendo o pagamento em prestações da indemnização devida por expropriação por utilidade pública um poder discricionário ou um direito potestativo, mas antes uma faculdade vinculada à lei, incumbia à expropriante alegar e provar que a sua capacidade financeira 'estava reduzida à data em que formulou o pedido de pagamento em prestações , referindo, designadamente, o montante dos seus encargos e das suas disponibilidades' - o que não fez, limitando-se a dizer que por razões actuais de tesouraria não lhe era oportuno dispor da quantia arbitrada.
2. Tendo a A. interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, veio este, por Acórdão de 14 de Fevereiro de
1989, revogar aquela sentença, baseando-se, para tanto, no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988 ( in DR, I Série, nº 249, de 27 de Outubro de 1988), nos termos do qual 'o exercício da faculdade conferida pelo artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações (Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro) não depende da alegação e prova da insuficiência de meios financeiros para a entidade expropriante efectuar de imediato o pagamento da totalidade da indemnização'.
3. Deste aresto interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a expropriada, B., e a interessada - arrendatária industrial -, C., invocando, nas respectivas alegações, inter alia, a inconstitucionalidade da norma do artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações
(Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro), bem como do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988, 'enquanto não fazem depender o exercício da faculdade conferida pelo citado preceito do Código da alegação e prova da insuficiência de meios financeiros para a entidade expropriante efectuar de imediato o pagamento da totalidade da indemnização, por violação dos artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'.
Sem êxito, porém, dado que o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 8 de Fevereiro de 1990, negou provimento ao recurso, por entender que a norma do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações, com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988, não infringe os preceitos constitucionais invocados.
4. Daquele aresto interpôs a C., o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos nºs.
1, alínea b), e 4 do artigo 280º da Constituição e dos artigos 70º, nºs. 1, alínea b), e 2, e 72º, nº2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e cujo objecto consiste na questão da constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações, com o sentido que lhe foi conferido pelo mencionado Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988.
5. A recorrente conclui as alegações produzidas neste Tribunal do modo como segue:
1- A norma constante do nº 2 do artigo
84º do Código das Expropriações (Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro) e o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Julho de 1988, na medida em que admitem a possibilidade de efectuar em prestações o pagamento das indemnizações por expropriações por utilidade pública violam o princípio da igualdade consagrado no nº 2 do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e são, assim, inconstitucionais.
2.- O Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Julho de 1988 (in DR, I Série, nº 249, de 27 de Outubro de
1988), ao permitir aquele pagamento em prestações independentemente da alegação e prova da carência de meios da entidade expropriante para satisfação do pagamento a contado viola, de novo, aquele princípio constitucional, o que lhe determina uma inconstitucionalidade acrescida.
3.- Ambos os referidos normativos - o do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações e o do referido Assento - na medida em que admitem a mencionada forma de pagamento não asseguram uma 'justa indemnização' e são, assim, inconstitucionais, por violação do artigo 62º, nº 2, da Constituição.
6. Por sua vez, a recorrida remata as suas contra-alegações com o seguinte quadro conclusivo:
1- Não foi violado o princípio da igualdade.
2- A recorrente, ora expropriada, não foi colocada numa situação de desfavor em relação à entidade expropriante.
3- O pagamento da indemnização em prestações tem de levar em conta o interesse social que justifica a expropriação.
4- Há garantia que o interesse social é prosseguido quando ele é levado a efeito por pessoa colectiva.
5- O pagamento da justa indemnização em prestações, por força do interesse social prosseguido, não viola o princípio da igualdade.
Para mais,
6- A expropriada recebe juros compensatórios que representam o lucro normal e legal do dinheiro ainda não recebido.
7- A justa indemnização tem em vista ressarcir o prejuízo que para a expropriada advém da expropriação.
8- Recebendo os juros compensatórios pelo pagamento em prestações, está ressarcido o prejuízo pelo diferimento do pagamento.
7. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir a questão de saber se a norma do corpo do nº 2 do artigo 84º, nº2, do Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei nº
845/76, de 11 de Dezembro), com a interpretação que lhe foi conferida pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Julho de 1988, é (ou não) inconstitucional.
II - Fundamentos.
8. O artigo 84º, nº2, do Código das Expropriações, versando sobre o pagamento das indemnizações na expropriação por utilidade pública, estabelece o seguinte:
'As pessoas colectivas de direito público, empresas públicas, nacionalizadas ou concessionárias de serviços públicos poderão efectuar em prestações o pagamento das indemnizações devidas por expropriação por utilidade pública, salvo quando respeitarem:
a) A casas unifamiliares ou fracções autónomas de prédios em regime de propriedade horizontal que constituem residência habitual dos proprietários e seus agregados familiares; b) A terrenos explorados pelos proprietários, exclusiva ou predominantemente com o próprio trabalho ou de pessoas do respectivo agregado familiar; c) A terrenos explorados por cooperativas de produção de pequenos agricultores e trabalhadores rurais pertencentes aos respectivos sócios ou à própria cooperativa; d) À parte do prédio expropriado em que o respectivo proprietário exerça de conta própria actividade comercial ou industrial ou profissão liberal; e) À caducidade, por efeito de expropriação, do arrendamento rural, para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal'
O preceito transcrito estabelece a regra geral de que as pessoas colectivas de direito público, empresas públicas, nacionalizadas ou concessionárias de serviços públicos gozam da faculdade de efectuar em prestações o pagamento das indemnizações pecuniárias devidas por expropriação por utilidade pública. Ele não deixa, contudo, de enunciar um leque de excepções a esta regra.
Sobre o sentido e o alcance do artigo
84º, nº 2, do Código das Expropriações, formaram-se duas correntes jurisprudenciais. Uma entendia que o exercício da faculdade reconhecida às entidades beneficiárias da expropriação, mencionadas no corpo daquela disposição, de pagarem em prestações o quantitativo pecuniário da indemnização dependia da alegação e da prova perante o tribunal da falta de disponibilidades financeiras para satisfazerem imediatamente a totalidade da indemnização. Seguiam esta linha jurisprudencial, inter alia, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Fevereiro de 1983 [cfr. Colectânea de Jurisprudência, Ano VIII (1983), I, p. 139], e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Maio de 1984 [cfr. Boletim do Ministério da Justiça, 337 (1984), pp. 260 - 263).
Outra, ao invés, interpretava o artigo
84º, nº 2, do Código das Expropriações com o sentido de que as entidades aí referenciadas tinham sempre o direito de, como expropriantes, realizarem o pagamento da indemnização em prestações, sem necessidade de alegarem e provarem a insuficiência de meios financeiros para um pagamento imediato. Podem citar-se, como exemplos desta corrente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Junho de 1984 [cfr. Colectânea de Jurisprudência, Ano IX (1984), III, pp. 159
- 165], e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Maio de 1984 [cfr. Boletim do Ministério da Justiça, 337 (1984), pp. 252 - 259].
A divergência jurisprudencial apontada veio a ser resolvida pelo mencionado Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de
13 de Julho de 1988, o qual fixou o seguinte entendimento:
'O exercício da faculdade conferida pelo artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações (Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro) não depende da alegação e prova da insuficiência de meios financeiros para a entidade expropriante efectuar de imediato o pagamento da totalidade da indemnização'.
9. A recorrente contesta a conformidade com a Lei Fundamental da norma do artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações, no segmento em que reconhece às entidades beneficiárias da expropriação nele referidas a faculdade de pagarem, no todo ou em parte, o quantitativo pecuniário da indemnização por expropriação em prestações, que pode ser exercida, sem necessidade do acordo dos interessados na indemnização.
E reputa, de igual modo, de inconstitucional o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de
1988, que interpretou a norma do artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações com o sentido de que o exercício da faculdade por ele conferida não depende da alegação e da prova da insuficiência de meios financeiros para as entidades nele referidas efectuarem de imediato o pagamento da totalidade da indemnização.
Tanto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de Fevereiro de 1989, como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Fevereiro de 1990 atribuíram à norma do artigo 84º, nº2, do Código das Expropriações o sentido estabelecido pelo citado Assento do Supremo Tribunal de Justiça. Objecto específico do presente recurso será, pois, a questão da constitucionalidade da norma do artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações, com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988.
O problema que vem posto ao Tribunal pode, no entanto, ser analisado ao nível da constitucionalidade do próprio princípio do pagamento em prestações do quantum indemnizatório, condensado no artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações, independentemente do sentido que lhe foi conferido pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça - e também, logicamente, do sentido oposto que as instâncias judiciais lhe atribuíram em alguns casos, como acima se referiu.
Colocada a questão de constitucionalidade nos termos que vêm de ser expostos, é bom de ver que se o Tribunal concluir que a norma do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações é em si mesma inconstitucional, seja ela entendida com um ou outro dos sentidos acima apontados, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988, será, consequencialmente, inconstitucional.
10. Ora, entende o Tribunal que o próprio princípio do pagamento faseado da indemnização por expropriação fere o artigo
62º, nº 2, da Lei Fundamental.
Vários são os argumentos justificadores desta solução (cfr. Fernando Alves Correia, Formas de Pagamento da Indemnização na Expropriação por Utilidade Pública - Algumas Questões - , Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia' - 1984, Coimbra, 1991, pp.,
41- 46).
O primeiro é retirado dos próprios termos utilizados pelo preceito constitucional mencionado. A expressão «mediante o pagamento» de justa indemnização do artigo 62º, nº 2, da Constituição significará «um compromisso com o carácter prévio ou ao menos simultâneo da atribuição da indemnização e do efeito privativo da propriedade» (cfr. J. Oliveira Ascensão, Nacionalizações e Inconstitucionalidade, Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 39/88, in «Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações», Lisboa, Imprensa Nacional, 1989, p.238; A Caducidade da Expropriação no Âmbito da Reforma Agrária, ibidem, pp.73,74).
Poderá mesmo dizer-se que a entidade que está devendo prestações não realizou uma expropriação «mediante o pagamento» de justa indemnização [cfr. J. Oliveira Ascensão, O Urbanismo e o Direito de Propriedade, in Direito do Urbanismo, coord. D. Freitas do Amaral, Lisboa, INA, 1989, pp. 333,334; Direito Civil (Reais), Coimbra, Coimbra Editora,
1987, p. 222], uma vez que o sentido natural desta locução é o de uma atribuição imediata do montante indemnizatório ao expropriado.
A nossa Constituição impõe, assim, no domínio da indemnização por expropriação, não apenas uma paridade de valor, no sentido de que o montante da indemnização há-de corresponder exactamente ao valor do bem expropriado, de modo que o valor total do património do sujeito afectado pela expropriação não sofra qualquer quebra em consequência deste acto, mas igualmente uma paridade temporal entre a aquisição pelo expropriante do bem e o pagamento da indemnização ao expropriado, impedindo que entre estes dois momentos se intercale um lapso temporal de certa duração (cfr. E. Garcia de Enterria /T. Ramón Fernández, Curso de Derecho Administrativo II, 2ª ed., Madrid, Civitas, 1982, pp. 275 , 284).
Um segundo argumento resulta da própria topologia da indemnização no instituto expropriatório . Hoje é claramente assumido pela doutrina e jurisprudência comparadas - e idêntico princípio emana do artigo 62º, nº 2, da Constituição - que a indemnização não é um mero efeito ou consequência do poder de expropriação, mas antes um pressuposto de legitimidade do seu exercício ou um elemento integrante do próprio conceito de expropriação (cfr. Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra, 1982, pp. 156 - 162). Ora, se não é correcto extrair desta concepção da indemnização uma qualquer exigência quanto ao seu carácter prévio, certo é que só é possível falar-se da indemnização como
«um elemento integrante do próprio acto de expropriação» se ela for paga, na sua totalidade, pelo menos contemporaneamente ou imediatamente após a produção dos efeitos privativo e apropriativo que, em regra, andam associados àquele acto. Neste quadro, está bem de ver que não há lugar para um pagamento da indemnização em prestações faseadas no tempo.
Uma terceira razão assenta numa análise das repercussões que o pagamento repartido no tempo do montante da indemnização pode ter no conceito de justa indemnização. Como é sabido, a indemnização por expropriação, para merecer o qualificativo de justa, há-de cobrir a totalidade dos prejuízos suportados pelo expropriado, os quais são calculados de acordo com o valor real do bem no momento em que se procede à sua avaliação. Mas um determinado montante indemnizatório, considerado justo no momento em que foi apurado, poderá deixar de o ser com o decurso do tempo, se o expropriado demorar alguns anos a receber a sua totalidade, devido ao fenómeno natural da inflação. E nem a circunstância de as prestações em dívida vencerem juros, pagáveis anual ou semestralmente, de acordo com a taxa de juro praticada pela Caixa Geral de Depósitos, relativamente aos depósitos ao prazo por períodos correspondentes, ou com a taxa de juro que couber aos títulos de dívida pública, se for caso disso
(cfr. o artigo 86º, nºs 1 e 2, do Código das Expropriações), afasta aquele risco, dado que as taxas de juros dos depósitos a prazo e dos títulos destinam-se apenas a remunerar o capital, sem compensar a desvalorização da moeda. Como foi salientado pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº
115/88 (in DR, II Série, nº 205, de 05-09-1988), «se, pelo decurso do tempo, a moeda se desvaloriza e o expropriado só vem a receber o quantitativo da indemnização numa data em que a moeda tem ou pode ter um valor inferior àquele em que foi judicialmente fixada, é palpável verificar-se ou poder verificar-se um prejuízo para o expropriado. Com efeito, no momento do pagamento, ele não recebe, ou pode pelo menos não receber, o equivalente monetário à indemnização arbitrada. Por outras palavras: em caso de desvalorização da moeda, o pagamento da indemnização em prestações pode envolver a entrega ao expropriado de uma indemnização que não seja justa».
Um quarto argumento decorre do próprio significado que a indemnização tem para o expropriado: a indemnização por expropriação deve garantir àquele uma compensação plena da perda patrimonial suportada, em termos de o colocar na posição de a adquirir outro bem de igual natureza e valor. Conquanto a teoria da substituição (Wiederbeschaffungstheorie) funcione apenas «em sentido figurado», ou «abstractamente», enquanto critério de apuramento do montante indemnizatório, já que o sujeito expropriado não pode ser indemnizado do conjunto das despesas reais e concretas que tiver de fazer para readquirir um bem do mesmo tipo e qualidade daquele de que se viu privado (cfr. o artigo 28º, nº1, do Código das Expropriações), é seguro que a possibilidade de o expropriado adquirir, se esse for o seu desejo, uma coisa com características semelhantes às daquela que lhe foi retirada há-de constituir um fim da indemnização, o que implica que esta se traduza na colocação imediata à disposição do expropriado de uma soma correspondente à totalidade do quantitativo indemnizatório (cfr. Fernando Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, pp. 541 , 549, e bibliografia aí citada). Ora, este sentido da indemnização não se compagina com a repartição do seu pagamento em várias prestações, durante um período mais ou menos longo.
Dir-se-á, porém, que a possibilidade de o sujeito expropriado dispor, logo após a perda do bem, da totalidade do montante da indemnização - a qual constitui, como se disse, uma decorrência do próprio sentido da indemnização - não está afastada num sistema de pagamento em prestações, desde que as quantias em dívida sejam representadas por títulos de dívida pública amortizável. Nesta hipótese, o expropriado ficará com a porta aberta para a recuperação da massa monetária correspondente à indemnização arbitrada, através da venda dos títulos na bolsa de valores (cfr. os artigos
86º, nº 1, e 87º, nº 2, do Código das Expropriações). Esta objecção parece, contudo, não ser totalmente procedente. Deve convir-se que a indemnização por meio da entrega de títulos de dívida pública amortizável permite ao expropriado realizar, pela via da sua transacção na bolsa, o montante global da indemnização. Estamos, no entanto, perante uma mera possibilidade e não em face de uma garantia. O sistema apontado não é susceptível de garantir ao expropriado uma venda imediata dos títulos - isso dependerá do aparecimento de um comprador
-, nem está em condições de lhe assegurar um valor adequado -, este variará conforme a cotação dos títulos.
Os fundamentos expostos legitimam, assim, a conclusão de que a norma do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações, na parte em que reconhece às entidades beneficiárias da expropriação nela referidas a faculdade de pagarem, no todo ou em parte, o quantitativo pecuniário da indemnização por expropriação em prestações, é inconstitucional, por infracção ao disposto no artigo 62º, nº 2, da Constituição. Consequentemente, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988, que interpretou, com força obrigatória geral, aquela norma, padece do mesmo vício de inconstitucionalidade.
11. Uma vez adquirido que o princípio do pagamento em prestações da indemnização por expropriação briga com o conceito constitucional de 'justa indemnização', inserto no artigo 62º, nº 2, da Lei Fundamental, facilmente se vê que a norma do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações viola também o princípio da igualdade, condensado no artigo 13º, nº 1, da Constituição, tanto na relação interna, como na relação externa da expropriação (sobre este tema, cfr. Fernando Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, Almedina, 1990, p. 534 ss.).
Com efeito, no nível da relação interna da expropriação, isto é, comparando a posição jurídica dos vários sujeitos expropriados, verifica-se que aqueles que recebem em prestações a indemnização por expropriação são colocados numa situação de desfavor, sem fundamento razoável ou material bastante, em confronto com os particulares que recebem imediatamente e por uma só vez o montante indemnizatório.
Por outro lado, no nível da relação externa da expropriação, ou seja, realizando uma análise comparativa da situação jurídico-patrimonial dos proprietários expropriados e não expropriados, conclui-se que o particular atingido por um acto expropriativo ao qual seja imposto o recebimento da indemnização pecuniária em prestações não vê, em regra, o seu prejuízo patrimonial total ou integralmente compensado, pelo que suporta, desse modo, sem fundamento razoável, um dano ou um sacrifício patrimonial não exigido aos sujeitos não expropriados.
A modalidade de pagamento da indemnização pecuniária em prestações implica, assim, uma violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, princípio este que constitui uma dimensão do conceito constitucional de 'justa indemnização' por expropriação.
De tudo o que vem de expor-se conclui-se que a norma do artigo 84º, nº2, do Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro) viola os artigos 62º, nº2, e 13º, nº
1, da Constituição.
Sendo aquela norma inconstitucional, igualmente inconstitucional, e pelos mesmos fundamentos, é o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988.
12. Alcançada esta conclusão, importa salientar que o Código das Expropriações de 1976 foi recentemente substituído por um novo Código, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, e dele já não consta uma norma de conteúdo semelhante à do artigo 84º, nº 2, do Código anterior.
Esta ocorrência não tem, no entanto, qualquer repercussão no caso sub judicio, já que a norma aplicada no acórdão recorrido foi a do artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro.
III - Decisão.
13. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 84º, nº 2, do Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei nº
845/76, de 11 de Dezembro) e, consequencialmente, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 1988 (in DR, I Série, nº 249, de 27 de Outubro de
1988), por violação dos artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição;
b) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, que deve ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 19 de Março de 1992
Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920108.html ]