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Processo n.º 488/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão Sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“3. Enquadrando-se a situação sub judicio no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, é caso de proferir decisão sumária, termos em que se passa a decidir.
4. A recorrente não especifica, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, incumprindo, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Porém, não é equacionável, in casu, facultar à recorrente a possibilidade de suprir tal omissão, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do referido artigo 75.º-A, atenta a não verificação de pressupostos de admissibilidade do recurso insupríveis por essa via, que sempre determinariam a impossibilidade de conhecimento de mérito, como melhor exporemos infra.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.ºs 1 a 4 do mesmo preceito – carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam pressupostos de admissibilidade do recurso – enunciados especificamente no artigo 70.º e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC – que não podem ser supridos deste modo. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.ºs 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
5. Feito este esclarecimento prévio, detenhamo-nos sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, atendendo à especificidade do concreto tipo de recurso em análise nos autos.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
6. Vejamos, então, se os aludidos requisitos – de necessária verificação cumulativa – se encontram preenchidos in casu.
Comecemos por verificar se a recorrente suscitou previamente, de forma adequada, perante o tribunal a quo, qualquer questão de constitucionalidade normativa, susceptível de vir a constituir objecto idóneo de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional.
O cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, pressupõe que a questão da constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, directa e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objecto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 708/06 e 630/08, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, a recorrente não problematizou qualquer questão de constitucionalidade normativa, de forma adequada, perante o tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida.
De facto, na reclamação para a conferência, a recorrente invoca a desconformidade com a Lei Fundamental, nos seguintes termos:
“(…) tinha defendido a recorrente que, não havendo lei travão, se aplicaria a norma geral, e esta prevê o recurso.
(…) Por outro lado, mesmo que fosse identificada uma norma travão, tratar-se-ia, in casu, de norma inconstitucional, porque infractora do princípio fundamental da recorribilidade em um grau.
(…) Mas se for entendido que, pelo contrário, se trata apenas da mesma questão sob regulamentação diferente, então o recurso justifica-se pela intolerabilidade em abstracto do erro palmar de direito.
(…) Em processo penal, que é o direito mais directamente ligado às liberdades e garantias constitucionais, um erro deste tipo corresponde afinal à contra aplicação directa de uma norma fundamental.
(…) Assim, em confronto directo com o artigo 18/1 CRP.
(…) E deste modo não é proporcional a conversão de direito ao recurso, tal como a proíbe o artigo 18/3 do mesmo diploma legal.
(…) Em suma: a recorrente insiste na inconstitucionalidade que já alegou e na linha exposta.”
Mesmo seguindo a remissão implícita da recorrente para peças processuais anteriores, no sentido de complementar a invocação de inconstitucionalidade, apenas encontramos, na resposta ao parecer do Ministério Público, a menção seguinte:
“(…) o acórdão é recorrível para o STJ, sob pena de inconstitucionalidade da disposição legal citada, no referido parecer, por ir contra o princípio fundamental da recorribilidade em pelo menos um grau das decisões judiciais limitadoras da liberdade, como é o caso colateral da presente que interpôs o recurso.
Princípio este que diz ao artigo 20.º da CRP que consagra o acesso à justiça leal, no sistema de Estado de direito democrático.”
Na motivação do recurso, por sua vez, a recorrente apenas refere, quanto a questões de constitucionalidade, o seguinte:
“ (…) recurso presente para o S.T.J.; autorizado, porque a decisão, que não considerou ter havido nulidade é recorrível, e por ser a primeira tomada sobre o tema, enquanto, quer a Constituição, quer o C.P.P. prescrevem o duplo grau.”
As transcritas alusões não correspondem à forma adequada de suscitação de uma questão normativa, nos termos que acabámos de analisar.
Na verdade, não é especificada a concreta norma ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se invoca, não sendo igualmente aduzida uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido.
Assim, não tendo a recorrente cumprido o aludido ónus de suscitação prévia, não colocando, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de forma adequada e clara, uma questão de constitucionalidade normativa bem delimitada, ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de vir, ulteriormente, interpor recurso de constitucionalidade.
Sempre se dirá, porém, que ainda que a recorrente tivesse logrado formular uma verdadeira questão normativa – presumivelmente, face às referências dispersas feitas, relacionada com o artigo 670.º, n.º 2 do Código de Processo Civil – ainda assim o recurso de constitucionalidade não seria admissível, face à existência, na decisão recorrida, de uma fundamentação alternativa, que conduziria à mesma solução de não admissão do recurso.
Explicando melhor, diremos que a presente espécie de recursos tem uma natureza instrumental – traduzida na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Face a tal natureza, a utilidade de apreciação do recurso apenas subsiste, quando o juízo de constitucionalidade pretendido é susceptível de se projectar nessa solução.
Nesta consonância, o Tribunal Constitucional vem afirmando a inutilidade de apreciação dos recursos de constitucionalidade, nos casos em que a decisão recorrida contenha uma fundamentação alternativa, efectiva e suficiente, que conduza, de forma autónoma, à mesma solução a que se chega através da via argumentativa a que subjaz o critério normativo, cuja constitucionalidade é posta em causa.
Transpondo tais considerações para o caso concreto, teremos de concluir que a decisão recorrida estruturou uma fundamentação alternativa, efectiva e suficiente, que encontra apoio, não no n.º 2 do artigo 670.º do Código de Processo Civil – disposição em que a recorrente pretenderia, presumivelmente, ancorar o seu requerimento de interposição de recurso – mas antes no disposto nos artigos 668.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, e 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
De facto, a decisão recorrida, após afirmar a irrecorribilidade baseada no n.º 2 do artigo 670.º do Código de Processo Civil, refere ainda:
“Mas, se coubesse (recurso), a arguida não poderia tê-lo impugnado mediante reclamação para a própria Relação, pois que “as nulidades [de sentença/acórdão] só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença/acórdão se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades (art.s 668.4 CPC e 379.2 do CPP).
Ora, ao reclamar, a arguida reconheceu, aliás expressamente, que a decisão reclamada não seria recorrível, ao mesmo tempo que renunciou implicitamente ao recurso - até por transcurso do respectivo prazo - de que porventura dispusesse.
Com efeito, não poderia argui-la de nulidade perante a Relação e, depois, recorrer do acórdão que porventura a negasse.
Pois que, de duas uma: ou, fundamentada nessa nulidade, recorria do acórdão (se dele coubesse recurso para o Supremo) ou, não havendo lugar a recurso, argui-la-ia perante a própria Relação.
Tendo optado por esta alternativa, ficou esgotada, mesmo que eventualmente viável, a via do recurso.”
Tal circunstância significa que uma eventual apreciação do Tribunal Constitucional, incidente sobre norma extraível do n.º 2 do artigo 670.º do Código de Processo Civil, conducente ao indeferimento do recurso, não teria utilidade prática ou repercussão efectiva na solução do caso concreto, porquanto o sentido da mesma se manteria intocado, face à coexistência de uma segunda linha de argumentação – reportada a norma assente em diferentes disposições legais – conducente ao mesmo resultado de indeferimento.
Na verdade, a fundamentação alternativa subsistiria, impondo-se como ratio decidendi autónoma, incólume a eventual juízo de inconstitucionalidade que tivesse incidido sobre diferente critério normativo.
Face às considerações expendidas, comprovada que se encontra a inutilidade de um convite ao aperfeiçoamento, conclui-se, desde já, pela não admissibilidade do recurso.”
É desta Decisão sumária que a recorrente reclama.
3. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, refere a reclamante que é sua convicção ter cumprido o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, colocando de forma correcta “o problema de inconstitucionalidade do art. 670.º/2 CPC”.
Acrescenta que a alegada via alternativa, que a decisão recorrida utilizou para fundamentar a não admissão do recurso, “não é verdadeiramente uma via diferente da que levou à aplicação do preceito constitucional acima referido”.
Em defesa da sua tese, explicita que “a arguição de nulidade por omissão de pronúncia disse respeito, directa ou indirectamente, à questão de não ter sido considerado o tema da inconstitucionalidade alegada.
Deste modo, a fuga em frente do acórdão recorrido, pretendendo argumentar com uma suposta desistência do recurso, por parte da recorrente, configuraria um claro abuso de interpretação, improcedente, na modalidade de não poder ser considerado para qualquer efeito da apreciação da causa.”
Conclui, assim, que a questão que pretende ver discutida se reporta apenas ao “campo de um entendimento normativo de irrecorribilidade, esse que a recorrente contesta”, devendo a presente reclamação ser considerada como “o aperfeiçoamento necessário do requerimento de interposição de recurso”.
4. O Ministério Público, notificado da presente reclamação, vem pugnar pelo indeferimento da mesma, expressando a sua concordância com os fundamentos da decisão reclamada.
Alega ainda que a reclamante, não se conformando com a Decisão Sumária, volta a esgrimir argumentação já anteriormente aduzida nos autos, não logrando invalidar a fundamentação utilizada em tal decisão.
Na verdade, em face das transcrições plasmadas na decisão reclamada, relativamente a excertos de peças anteriores apresentadas pela reclamante, é manifesto que a mesma não conseguiu enunciar, de forma adequada, perante a instância recorrida, nenhuma questão de constitucionalidade normativa.
Acresce que, quanto ao argumento relativo à existência de uma fundamentação alternativa da decisão recorrida – que sempre conduziria à inutilidade de eventual apreciação, pelo Tribunal Constitucional, de questão não abrangida por tal fundamentação – o mesmo “continuou sem resposta adequada, por parte da ora reclamante.”
II – Fundamentos
5. Como resulta do teor da reclamação e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, a reclamante não aduziu qualquer argumento que abalasse a correcção do juízo efectuado.
Na verdade, em nenhum momento a recorrente suscitou previamente, de forma adequada, perante o tribunal a quo, – ou seja, de modo expresso, directo e claro, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria – qualquer questão de constitucionalidade normativa, susceptível de vir a constituir objecto idóneo de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, como resulta claramente da fundamentação expendida na decisão reclamada.
Quanto à subsistência de uma fundamentação alternativa, efectiva e suficiente, na decisão recorrida, que conduziria à mesma solução jurídica de não admissão do recurso e que sempre se manteria incólume aos efeitos de qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a proferir a propósito de norma contida no artigo 670.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – que se presume que a reclamante pretenderia problematizar, sem que, no entanto, o tenha conseguido fazer, de forma adequada – nada do que é referido na reclamação é susceptível de infirmar a argumentação apresentada na decisão sumária proferida.
Em face do exposto, reafirmando e dando por reproduzida toda a fundamentação constante da decisão reclamada, resta apenas concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso e, em consequência, pelo indeferimento da reclamação da decisão sumária, proferida nestes autos a 6 de Julho de 2011.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.