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Proc. nº 449/92 Plenário Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I
1. - Em 26 de Agosto de 1992, foi recebido, através de telecópia, requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, subscrito pelo Presidente do Partido Democrático do Atlântico (P.D.A.), da decisão do Senhor Juiz do Tribunal da Comarca de Ponta Delgada que rejeitou a candidatura desse partido ao círculo eleitoral da emigração para designação de membros da Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Este recurso foi apresentado ao abrigo do art. 32º do Decreto-Lei nº 267/80, de 8 de Agosto, e dos arts. 101º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional.
O referido recurso apresenta o seguinte quadro de fundamentação:
- O despacho recorrido funda-se na 'Resolução nº 68/82 do extinto Conselho da Revolução que considerou o art. 12º do Estatuto Político - Administrativo da Região Autónoma dos Açores então em vigor ferido de inconstitucionalidade';
- Tal resolução, provinda de órgão extinto e referente a uma 'norma que não vive mais no mundo do direito (o «velho» estatuto), não tem que funcionar sobre uma norma de 1987, ficando, assim, o douto despacho recorrido sem suporte real, já que a sua fundamentação foi meramente remissiva';
- O próprio número do artigo visado pela inconstitucionalidade não diz respeito, no novo Estatuto, ao círculo da emigração;
- A revisão constitucional de 1989 e a alteração do estatuto Político-Administrativo em 1987 põem em causa as razões de fundo da resolução do Conselho da Revolução;
- A Resolução nº 68/82 assenta sobre o princípio da soberania popular, tal como a Constituição o confirma na sua particular dimensão regional, e sobre os princípios da unidade da cidadania, da unidade do Estado e do princípio da igualdade;
- A mera enunciação destes princípios mostra que a resolução aplicada não tinha aplicação no caso concreto;
- O texto da Constituição resultante da segunda revisão constitucional, em especial o seu art. 3º, não consente dimensões regionais de soberania, uma vez que 'os órgãos soberanos da autonomia que bebem a sua seiva existencial nos
órgãos centrais da autonomia têm plena soberania nos assuntos que a constituição lhes entrega. Um decreto legislativo regional (que não seja inconstitucional) tem nos tribunais a mesma força que um Decreto-Lei da Assembleia da República. Nos tribunais e fora deles';
- Não se vê que o círculo pela emigração da Assembleia Legislativa Regional pudesse ser considerado uma violação da soberania na sua actuação regional, atento que existe um círculo de emigração nas eleições para a Assembleia da República;
- O confronto com o princípio da unidade da cidadania ainda 'é mais longínquo. Na verdade um cidadão português, residente no estrangeiro como emigrante, que tem bens e interesses nos Açores, para onde remete o seu dinheiro, de onde emigrou tem todo o direito de ver os seus interesses representados nas Assembleias Regionais';
- 'Um cidadão português residente nos Açores e recenseado nos Açores pode votar para a Assembleia Legislativa Regional dos Açores; [u]m cidadão português nascido nos Açores, residente em Lisboa e recenseado na Capital não pode. Tal limitação à 'unidade' da cidadania é meramente geográfica. Não ofende o princípio, completa-o no espaço. O círculo da emigração na Assembleia Legislativa Regional dos Açores também. E na Assembleia da República, também';
- Não procede igualmente o argumento de que ocorreria na solução uma violação do princípio da unidade do Estado, pois a autonomia regional tem raízes históricas que remontam ao final do século XIX, tendo sobrevivido aos regimes políticos que se sucederam em Portugal e tendo crescido saudavelmente com a actual Constituição. Do art. 6º desta resulta que a autonomia regional é compatível com o carácter unitário do Estado português;
- Por último, não ocorre tão-pouco a invocada violação do princípio da igualdade, já que 'votar para deputado da emigração' nos Açores não é um privilégio, mas um 'direito'. Só haveria um privilégio se apenas um dado açoriano pudesse candidatar-se a tal círculo, o que não acontece. 'Embora discutível o critério do nascimento (Jus soli nunca foi princípio amado pelo direito nacional) está longe de ser inconstitucional embora devesse ser completado por critérios mais realistas e verdadeiramente regionais'.
Formula, depois, as seguintes conclusões, pedindo a revogação do despacho impugnado:
'1º O douto despacho recorrido alicerça-se em resolução do Conselho da Revolução aplicável ao Estado de 1976.
2º Tal resolução não sobreviveu nem à Revisão Constitucional de 1989 nem à Lei
9/87 que alterou o Estatuto.
3º O douto despacho recorrido apenas remeteu para aquela resolução pelo que carece de fundamentação.
4º Mesmo que assim não fosse, a existência do círculo da emigração não ofende os princípios da soberania popular, da unidade da cidadania ou do Estado e muito menos o da igualdade como atrás vem fundamentado.'
2. - A petição de recurso é acompanhada por cópia do despacho recorrido, proferido em 20 de Agosto do ano corrente.
3. - Foram solicitados esclarecimentos ao Tribunal recorrido sobre a data da notificação ao recorrente do despacho impugnado e sobre a eventual apresentação da reclamação respeitante a esse despacho, tendo sido informado, por ofício transcrito por telecópia em 27 de Agosto e subscrito pelo Sr. Juiz a quo, que o referido despacho foi notificado ao recorrente por telecópia em 21 de Agosto e que não foi apresentada por ele qualquer reclamação. Com este ofício, foram enviadas cópias do despacho impugnado e das notificações feitas.
II
3. - O despacho impugnado foi proferido ao abrigo do nº 2 do art. 26º do Decreto-Lei nº 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa Regional dos Açores), isto é, trata-se da decisão em que o juiz verifica a regularidade do processo de apresentação de candidaturas, a autenticidade dos documentos que o integram e a elegibilidade dos candidatos.
Depois de afirmar que a apresentação das listas pelos quatro partidos e duas coligações concorrentes foi tempestiva, que os respectivos mandatários se encontravam munidos de poderes de representação, passou a indicar o mesmo despacho as irregularidades detectadas, começando por se referir à apresentação pelo P.D.A. de uma lista pelo Círculo Eleitoral da Emigração. Escreve-se aí:
'Porém, nos termos da al. c) da Resolução nº 68/82 do Conselho da Revolução foi declarado inconstitucional o nº 3 do art. 12º do citado Dec-Lei [isto é, do Decreto-Lei nº 267/80, de 8 de Agosto], pelo que não existe o aludido círculo.
Assim sendo desentranhe-se a candidatura do P.D.A. pelo Círculo Eleitoral da Emigração e junte-se aos autos por linha' (a fls. 80 e nº dos autos).
Diferentemente do invocado pelo recorrente, a Resolução nº
68/82 do Conselho da Revolução, publicada no Diário da República, I Série, nº
93, de 22 de Abril de 1982, não declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de qualquer norma do Estatuto provisório da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto-Lei nº 318-B/76, de 30 de Abril, ou do primeiro Estatuto Político-Administrativo com carácter definitivo, aprovado pela Lei nº 39/80, de 5 de Agosto.
É o seguinte o teor da alínea c) da Resolução nº 68/82:
'Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 3º, do nº 2 do artigo 6º, dos nºs 3 e 4 do artigo 12º, do nº 2 do artigo
13º e dos artigos 176º, 193º e 195º do Decreto-Lei nº 267/80, por todos eles contrariarem o princípio da soberania popular, tal como a Constituição o configura na sua particular dimensão regional, o princípio da unidade da cidadania e o princípio da unidade do Estado e por alguns deles (nº 2 do artigo
3º, nº 3 do artigo 12º e artigos 176º, 193º e 195º desse diploma) violarem ainda o princípio da igualdade contido no artigo 13º, nºs 1 e 2, da Constituição'.
4. - A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral incidiu, assim, exclusivamente sobre normas da lei eleitoral da assembleia regional açoriana, não tendo sido impugnadas então pelo Presidente da Assembleia da República as normas dos nºs 3 do artigo 11º e nº 2 do artigo
12º do Estatuto Político-Administrativo de 1980 da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 39/80 já citada, normas essas que previam a existência dos dois círculos eleitorais para além dos nove referentes aos círculos constituídos pelas diferentes ilhas da Região, um dos açorianos residentes noutras parcelas do território português, e outro dos açorianos residentes no estrangeiro
(veja-se Parecer nº 11/82 da Comissão Constitucional, in Pareceres, vol. 19º, Lisboa, 1984, pág. 57).
Não obstante ter sido publicada em 1987 a primeira revisão do Estatuto Político-Administrativo desta região (Lei nº 9/87, de 26 de Março) e de nela se manterem inalterados os nºs 3 do art. 11º e o nº 2 do artigo 12º da versão original do mesmo, a verdade é que não foi alterada até ao presente a referida Lei Eleitoral, constante do Decreto-Lei nº 267/80, não tendo sido substituídas por outras as normas declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral (vejam-se as considerações constantes do Parecer da Comissão Nacional de Eleições sobre o Regime Jurídico Aplicável aos Actos Eleitorais para as Assembleias Regionais dos Açores e da Madeira, in Diário da Assembleia da República, II Série-C, nº 28, de 4 de Junho de 1992, págs. 321 e seguintes).
A desconformidade existente entre o texto da lei eleitoral vigente e o do Estatuto Político-Administrativo de 1987 é patente. Em anotação ao texto do Decreto-Lei nº 267/80, publicado pela Comissão Nacional de Eleições, afirmam os Drs. Maria de Fátima Mendes e Jorge Miguéis que as indicadas normas do Estatuto de 1987 são 'de muito duvidosa constitucionalidade atendendo à fundamentação expendida no Parecer da C.C. nº 11/82 que baseou a Resolução do C. REV.', acrescentando que, mesmo que assim se não entendesse, sempre se poderia afirmar 'que os preceitos do EPAA não podem ser aplicados, por inexistência de regulamentação específica dessa matéria na lei instrumental' (Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional dos Açores, actualizada, anotada e comentada, sem data, pág. 11).
Seguramente por perfilhar este entendimento, a Comissão Nacional de Eleições não incluiu no mapa com o número de deputados da Assembleia Regional dos Açores e a sua distribuição por círculos, publicado no Diário da República ao abrigo do art. 13º, nº 3, do Decreto-Lei nº 267/80, os deputados a eleger pelos círculos dos açorianos residentes noutras parcelas do território nacional e dos açorianos residentes no estrangeiro (na I Série - A, nº 176, de 1 de Agosto de 1992). E esse acto de administração eleitoral não mereceu qualquer impugnação por parte das forças políticas concorrente às eleições.
5 - Traçado o quadro normativo em que surgiu o despacho impugnado pelo presente recurso, caberia conhecer do mérito do mesmo, se não se verificassem, como se verificam, razões que obstam ao mesmo conhecimento.
De facto, o despacho impugnado foi notificado ao ora recorrente em 21 de Agosto do corrente ano, 6ª feira, por telecópia transmitida
às 9 horas e 24 minutos (cópia da nota de transmissão, a fls. dos presentes autos).
Ora, se se considerar que o despacho de rejeição em bloco da lista com fundamento na inexistência do círculo eleitoral se configura como um acto de administração eleitoral, (para um caso com alguma similitude, veja-se o recente acórdão nº 287/92, ainda inédito, que versou sobre um despacho liminar de rejeição da lista por intempestividade) o prazo para interpor recurso do mesmo era de 1 dia, tendo terminado em 24 de Agosto (art. 102º-B, nºs 2 e 7, da Lei do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/82, de 30 de Setembro, na versão introduzida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
Se, pelo contrário, se considerar que este despacho é impugnável nos termos previstos pelo art. 32º do Decreto-Lei nº 267/80, por se tratar de decisão relativa ao processo de apresentação de candidaturas, continua este Tribunal impossibilitado de conhecer do objecto do recurso. De facto, a decisão não se podia considerar como final e, desde logo faltava a necessária reclamação, a apresentar ao juiz a quo no prazo de dois dias (art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 267/80), o que implicaria sempre a impossibilidade de conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional (neste sentido, vejam-se os Acórdãos nºs 240/85, 249/85 e 526/89, os dois primeiros publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6º, págs. 875 e segs. e 915 e seguintes respectivamente, e o último no Diário da República, II Série, nº 68, de 22 de Março de 1990).
6. - Por último, sempre se dirá que, ainda que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do objecto do recurso, ele não poderia ter
êxito, por várias razões.
Desde logo, verifica-se que o recorrente não impugnou em devido tempo o acto administrativo de elaboração do mapa de deputados, praticado pela Comissão Nacional de Eleições, nos termos do nº 3 do art. 13º do Decreto-Lei nº 267/80.
Depois, por um lado, as disposições que foram declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral são as normas da própria lei eleitoral e não do Estatuto Político-Administrativo de 1980, mantidas em 1987, o
que sempre impediria na prática a organização do processo eleitoral para esses círculos. E, por outro lado, porque este Tribunal teve já ocasião de reafirmar a posição da Comissão Constitucional que esteve na origem da referida Resolução nº
68/82 do Conselho da Revolução. E fê-lo, neste ponto de forma unânime, no acórdão nº 1/91, ao considerar inconstitucional a norma do decreto da Assembleia da República que aprovava o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, submetido à fiscalização preventiva de constitucionalidade. Esta norma previa a criação de um círculo eleitoral compreendendo os cidadãos portugueses nascidos na Região e residentes fora dela, em território nacional ou no estrangeiro (in Diário da República, I Série-A, nº 49, de 28 de Fevereiro de
1991; neste acórdão remete-se ainda para o Parecer nº 26/80 da Comissão Constitucional e para o Acórdão nº 136/90, do Tribunal Constitucional).
III
7. - Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional não tomar conhecimento do presente recurso.
Lisboa,1 de Setembro de 1992
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920288.html ]