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Proc. nº 432/91 Plenário Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. - A., ----------, -----------------, residente no lugar da --------------------, ---------------------, --------------------, propôs no Tribunal de Trabalho do Porto, em 30 de Abril de 1991, acção com processo comum e forma sumária contra a sua entidade patronal, B., pretendendo a declaração judicial de nulidade da sanção disciplinar de três dias de suspensão de trabalho com perda de retribuição e antiguidade, aplicada no processo disciplinar nº --/---/-- que esta última tinha instaurado contra aquele. Atribuiu a essa acção o valor de 9.616$00.
A demandada apresentou contestação. Foi marcada tentativa de conciliação, seguida, se necessário, de julgamento para o dia 7 de Outubro de 1991 (despacho de 1 de Julho de 1991, a fls. 55 dos autos, notificado por carta registada, expedida em 2 de Julho desse ano).
Nesse dia, estando presentes todas as pessoas convocadas para a audiência, ditou para a acta o Senhor Juiz do Tribunal de Trabalho do Porto o seguinte despacho:
'Verifica-se em face dos autos mormente do teor do processo disciplinar e da sua nota de culpa que o comportamento do Autor configura a hipótese da alínea ii) do artigo 1º da Lei 23/91, de 4 de Julho, pelo que declaro extinta a instância por impossibilidade ou inutilidade da lide.
Custas pelo autor.' (a fls. 58)
2. - Deste despacho, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional a demandada B., nos termos do art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei deste Tribunal, considerando que a norma aplicada pelo despacho atrás transcrito se achava 'ferida de inconstitucionalidade material, por violação dos arts. 13º, 62º/1 e 82º/1 da Constituição da República' (a fls. 59 vº; requerimento apresentado em 11 de Outubro de 1991).
A recorrente invocou neste requerimento que se tratava de processo sumário com valor inferior à alçada do tribunal de trabalho, cuja tramitação só comportava 2 articulados. Tendo apresentado a sua contestação em 29 de Maio de 1991, não tivera oportunidade de suscitar nesse articulado a questão de inconstitucionalidade da norma da Lei da Amnistia, visto que esta lei só fora publicada cerca de um mês depois. Só após a publicação da referida lei e pela via do requerimento de interposição do recurso tinha tido oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma em causa, aplicada pelo despacho impugnado, não lhe sendo imputável a impossibilidade de indicação de todos os elementos previstos no art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 61.
3. - Os autos subiram ao Tribunal Constitucional.
Distribuído o processo, apenas apresentou alegações a entidade recorrente, a qual juntou com essa peça um parecer jurídico da autoria do Prof. Doutor C. (a fls. 69 a 95).
Nessas alegações, formulou as seguintes conclusões:
'1º) A amnistia é algo que apenas respeita ao Direito Penal e mais não é do que o fim, ou a extinção do direito de punir que o Estado, enquanto Nação politicamente organizada, detém.
A Amnistia é um acto de excepção, logo tem que ser vista, aplicada e interpretada em termos muito estreitos.
Aliás, é o que resulta da análise e do estudo das leis de amnistia que vieram à luz desde há algumas décadas a esta parte, e bem assim da jurisprudência que sobre elas se debruçou.
Sempre aí se cuidou, e aturadamente, em limitar as amnistias ao foro penal ou conexo, e sempre se teve a preocupação de evitar que direitos de terceiros, estranhos ao prevaricador e ao Estado, fossem atingidos.
2º) A figura de 'amnistia' Laboral não pode conceber-se, quando contende ou está em causa o Direito do Trabalho (privado).
Aqui não há qualquer espécie de direito de punir do Estado de que este possa abrir mão.
3º ) A assim se não entender, teriam de aceitar que o Estado estava autorizado a confiscar.
Na verdade, aceitar que o Estado pode suprimir o poder disciplinar, que pode suprimir uma prorrogativa da entidade empregadora, que não é separável da relação do trabalho, mais não é do que aceitar o confisco.
4º) Os preceitos constitucionais que autorizam a concessão de amnistias, quer por razões de natureza histórica, quer ainda dogmáticas apenas visam situações, ou casos, penais ou semelhantes.
As 'amnistias laborais' são constitucionalmente inviáveis, salvo as relativas a funcionários públicos, militares ou semelhantes, que aí não há intervenção de terceiros e antes uma relação exclusivamente pública.
5º) É impensável (e inadmissível) que o parlamento recorra à figura jurídica da amnistia para 'matar', extinguir posições do foro Jurídico-privado.
6º) Aliás mesmo quando em aplicação a empresas públicas - que todas elas, ou na quase totalidade - se regem pelo Direito do Trabalho, sempre se estaria a violar, materialmente, a Constituição da República, porque se trataria de arbitrariamente, invadir a propriedade pública privadamente tutelada (art.
62º/1) em desrespeito dos direitos dos cidadãos contribuintes.
7º) Aliás, a 'amnistia' laboral, tal como se configura na Lei 23/91 de 4 de Julho, e em qualquer caso, cria um estado de inadmissível e insustentável, porque injusta, diferenciação entre os trabalhadores, não apoiada em quaisquer níveis de valoração e antes é uma flagrante violação da harmonia do sistema jurídico e logo, por isso também, inconstitucional porque violadora do princípio da igualdade plasmado no artº 13º da Lei Fundamental uma vez que se trata de forma diversa situações iguais.
8º) O poder disciplinar é inseparável de uma relação - os poderes de direcção, fiscalização e de sancionar - como de louvar e promover, são essenciais à definição do contrato de trabalho, que tudo está legalmente definido.
9º) O poder disciplinar é algo de tão essencial e tão típico na relação de trabalho que sem ele não há relação de trabalho subordinado, mas antes uma simples prestação de serviços.
10º) Lícito é, pois, concluir que o poder disciplinar está em estrita ligação, melhor, comunga da natureza patrimonial privada das relações de Trabalho.
Pelo que tudo exposto:
11º) A alínea ii) do art. 1º da Lei 23/91 de 4 de Julho não tem aplicação à ora recorrente, está ferida de inconstitucionalidade material'. (a fls. 65 a 66)
4. - Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. - Verificam-se no presente recurso os pressupostos da respectiva admissibilidade, não obstante a recorrente só ter suscitado a questão de constitucionalidade em momento processual que, normalmente, não é já temporalmente adequado para o fazer.
6. - Na verdade, uma jurisprudência constante e reiterada do Tribunal Constitucional exige que, no caso das alíneas b) e f) do nº 1 do art 70º da Lei do Tribunal Constitucional, as questões de inconstitucionalidade ou de ilegalidade hajam sido suscitadas durante o processo, entendida esta expressão, não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade ou ilegalidade pudessem ser suscitadas até à extinção da instância), mas num sentido funcional, tal que 'essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão'
(formulações reproduzidas no Acórdão nº 94/88, in Diário da República, II Série, nº 193, de 22 de Agosto de 1988). Nesta orientação, considera-se que não é, em regra, momento adequado para suscitar estas questões o requerimento de interposição do recurso. Simplesmente a mesma jurisprudência admite excepções a esta regra, nomeadamente em alguma hipótese 'de todo excepcional, «e certamente anómala», em que o interessado «não disponha de oportunidade processual para levantar a questão [de inconstitucionalidade] antes de proferida a decisão», hipótese em que deve ser-lhe salvaguardado, de todo o modo, o direito ao correspondente recurso. Semelhante ressalva fora já considerada, em tese, no Ac.
90/85, supracitado, e veio a ter efectiva e concreta aplicação no Ac. 136/85, já referido como precisamente invocado pelo reclamante. Estava em causa, neste
último aresto, o recurso de uma sentença de adjudicação da propriedade em processo de remição de colonia, proferida na vigência de um regime processual (o do Dec.-Leg. Reg. 1/83/M, de 5-3) que não prevê nem consente qualquer intervenção do remido no processo, para questionar a legitimidade da remição e da correspondente adjudicação, entes daquela sentença' (citado Acórdão nº
94/88).
Casos em que tem sido considerado ocorrerem tais hipóteses excepcionais e anómalas são, além do contemplado no citado Acórdão nº
136/85, os abordados pelos Acórdãos nºs 391/89 (in Diário da República, II Série, nº 212, de 14 de Setembro de 1989) e 61/92 (ainda inédito). No primeiro destes acórdãos, considerou-se que a aplicação imediata num recurso para tribunal pleno da norma de um assento do Supremo Tribunal de Justiça impedia a parte de 'levantar a questão de inconstitucionalidade de uma nova norma que foi aplicada ao caso antes de proferida a decisão final e esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria'. No Acórdão nº 62/91, considerou-se que a reclamante apenas fora confrontada 'com a estatuição da norma do artigo 89º, nº
3, do Código de Processo do Trabalho, quando lhe foi notificada a sentença que, ao abrigo deste preceito, a condenou no pedido'. Neste último acórdão, afirmou-se ainda que a reclamante não podia, 'em consequência, haver suscitado a sua inconstitucionalidade durante o processo nem, tão-pouco, lhe era exigido, no caso concreto, um qualquer juízo prévio de prognose relativo à sua aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão da inconstitucionalidade (cfr. sobre esta específica matéria o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/91, de 19 de Novembro de 1991, ainda inédito)'.
7. - Também no presente caso se entende ocorrer uma dessas 'situações excepcionais e certamente anómalas'. Quando a ora recorrente apresentou o articulado de defesa ainda não fora publicada a norma amnistiadora,
situação que se mantinha quando foi proferido despacho a marcar a data para tentativa de conciliação e eventual julgamento e ocorreu a notificação do mesmo
às partes. A lei de amnistia veio a ser publicada em Suplemento ao Diário da República, I Série-A, distribuído a escassos dias das férias judiciais de Verão e, na data da tentativa de conciliação, antes do início desta diligência, o juiz a quo proferiu logo o despacho recorrido sem dar oportunidade às partes para suscitar a questão de inconstitucionalidade da nova lei. Muito embora a ora recorrente pudesse ter suscitado a questão através de requerimento avulso, tal comportamento não lhe era exigível (cfr. as situações analisadas nos citados Acórdãos nºs. 94/88 e 391/89 e os respectivos votos de vencido em ambos os arestos).
Pode, por isso, passar-se ao conhecimento do objecto do recurso.
III
8. - Constitui objecto deste recurso a alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, com o seguinte teor:
'Desde que praticados até 25 de Abril de 1991, inclusive, são amnistiados:
----------------------------------------------
ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada;
----------------------------------------------
9. - Começar-se-á por analisar a história legislativa desta concreta norma amnistiadora, no contexto da Lei de Amnistia de
1991.
Em 4 de Junho de 1991 foi apresentado à Assembleia da República um projecto de lei de amnistia (Projecto nº 779/V), subscrito por deputados de cinco partidos políticos nela representados (veja-se esse projecto in Diário da Assembleia da República, II Série-A, V Legislatura, 4ª Sessão Legislativa, 1990-1991, nº 56, de 14 de Junho de 1991, págs. 1297 a 1300). Do preâmbulo do mesmo constam as razões de ordem política e social que inspiraram os seus subscritores:
'Considerando o clima de tranquilidade que se vive no País, fruto de uma notória melhoria da convivência social e de uma cada vez maior compreensão dos valores e princípios da democracia instaurada no 25 de Abril de 1974, cujo 17º aniversário há pouco ocorreu;
Considerando que, na sequência da campanha eleitoral que decorreu com o maior civismo, teve lugar a livre reeleição por sufrágio universal e directo do actual Presidente da República, facto político que mereceu ser assinalado com um acto de clemência, que diversas vicissitudes não permitiram fosse mais atempado;
Considerando que a recente visita a Portugal de Sua Santidade o Papa João Paulo II criou um justificado clima de aproximação e tolerância entre os Portugueses;
Considerando, ainda, que se espera que esse acto de clemência, consistindo sobretudo na concessão de medidas de amnistia e perdão de penas pela Assembleia da República, constitua estímulo para que quem delinquiu o não volte a fazer;
Considerando, por último, que na fixação do âmbito das medidas de clemência propostas houve a particular preocupação de não ferir os sentimentos colectivos e de não pôr em causa a segurança jurídica e social da comunidade; [...]'
Da alínea hh) do art. 1º do projecto constava a proposta de amnistia seguinte:
'As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei'.
Quanto a esta alínea, veio a ser apresentada uma proposta de alteração pelo Deputado D., do Partido Socialista, com o seguinte teor:
'---------------------------------------------
8. - In fine da alínea hh) do artigo 1º, deve ser aditada a expressão «ou sejam puníveis ou punidas com despedimento».
---------------------------------------------'
( In Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 60, de 21 de Junho de
1991, pág. 1418)
O projecto de lei de amnistia foi aprovado na generalidade por votação unânime na última sessão do Plenário da quinta legislatura, ocorrida no dia 21 de Junho de 1991.
Na mesma sessão de 21 de Junho de 1991, foi aprovada por unanimidade, durante a discussão na especialidade, a 'proposta de aditamento da expressão «ou hajam sido despedidos» no final da alínea hh) do artigo 1º, apresentada pelo PS'. (Diário da Assembleia da República, I Série, nº
96 - V Legislatura, 4ª Sessão Legislativa, de 21 de Junho de 1991, pág. 3339). A votação final global do projecto de lei nº 779/V realizou-se de seguida, tendo havido aprovação unânime. Em seguida a essa votação, o Deputado D. solicitou 'a activa intervenção' do Presidente da Assembleia da República 'no sentido do processamento rápido da parte burocrática desta lei', comunicando que o grupo de trabalho da redacção final ia fazer, 'em curtíssimo prazo', uma revisão final da redacção e do enquadramento de alguns preceitos, de tal modo que a publicação pudesse ser feita antes das férias judiciais, sob pena de ocorrer um adiamento de execução em termos de libertação de presos, dada a dificuldade de os juízes de turno conseguirem despachar os processos em tempo útil. No decorrer do uso da palavra, referiu ainda o mesmo Deputado:
'Não é só um problema pragmático, há um preceito regimental que, por si só, pode
«entupir» esta celeridade pretendida. Trata-se do artigo 162º, que permite a 10 deputados reclamar contra inexactidões do texto publicado. O que eu pretendia era sugerir a V. Exª que convidasse a Câmara (talvez não seja um processo muito curial, mas dados os valores em jogo...), em relação a este diploma, a renunciar expressa ou tacitamente ao exercício deste direito regimental, que tem um valor teórico, na medida em que a Assembleia cessa hoje funções, pelo que teria de reunir a Comissão Permanente se houvesse reclamações. Assim, no fundamental, sugeria que V. Exª convidasse a Câmara a, expressa ou tacitamente, aderir à solicitação de renunciar ao direito de reclamar que o artigo 162º do Regimento lhe confere' (mesmo número do Diário da Assembleia da República, I Série, pág.
3341).
O Presidente da Assembleia da República interveio em seguida, dizendo:
'Srs. Deputados, todos ouvimos com atenção aquilo que disse o Sr. Deputado D. e vamos proceder em conformidade. Começo por pedir à 3ª Comissão que produza o texto final tão rapidamente quanto possível para que siga a tramitação normal, e providenciarei a saída de um suplemento ao Diário da República'.
No decreto da Assembleia (Decreto nº 339/V) que veio a ser enviado para promulgação, surge a redacção introduzida pelo respectivo grupo de trabalho na parte final da alínea ii), correspondente a anterior alínea hh):
'... ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada' (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 61, de 21 de Junho de 1991, págs.
1442-1446).
10. - No caso sub judicio, a sanção aplicada pela entidade recorrente ao trabalhador recorrido não foi a de despedimento. Não importará, por isso, discutir agora as implicações jurídicas do modo como, e do momento em que, veio a ser redigida a parte final da alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho.
11. - Nos termos do art. 164º, alínea g), da Constituição compete à Assembleia da República conceder 'amnistias e perdões genéricos'. Na redacção originária da Constituição, a alínea f) do mesmo artigo atribuía competência à Assembleia da República para 'conceder amnistias'. Foi na primeira revisão constitucional que se aditou à alínea a expressão 'perdões genéricos' (em Espanha, por exemplo, a Constituição de 1978 confere, na alínea i) do art. 62º, competência ao Rei para 'exercer o direito de graça, com a observância da lei, que não poderá autorizar indultos gerais'.). Com tal aditamento, pretendeu deixar-se claro que, a par do indulto ou da comutação de penas de carácter individual, concedidos pelo Presidente da República, ouvido o Governo (art. 137º, alínea f), da Constituição), podia haver perdões ou comutações com carácter geral, determinados por lei, como sucedia na prática com sucessivas leis de aministia aprovadas a partir de 1974.
A palavra amnistia provém, através da língua latina, de um vocábulo grego que significa esquecimento. O Código Penal português de 1852 continha, no seu art. 120º, uma definição legal do instituto:
'o acto real da amnistia é aquele que, por determinação genérica, manda que fiquem em esquecimento os factos que enuncia antes praticados, e acerca deles proíbe a aplicação de leis penais'. Do § 1º do mesmo artigo constavam os efeitos da amnistia: 'o acto de amnistia extingue todo o procedimento criminal. e faz cessar para o futuro a pena já imposta e os seus efeitos, mas não prejudica a acção civil pelo dano e perda, nem tem efeito retroactivo pelo que pertence aos direitos legitimamente adquiridos por terceiros'.
Embora essa definição tivesse sido eliminada em
1884 e não tivesse sido incluída no Código Penal de 1886, a verdade é que se manteve neste diploma a regra de que a amnistia extinguia o procedimento criminal e as penas (art. 125º, nº 3). A doutrina penalista tradicional considerava que a amnistia eliminava todos os efeitos jurídicos da infracção, sob o ponto de vista criminal, ficando apenas ressalvados os direitos de terceiros.
O Código Penal de 1982 estabelece, no seu art.
126º, nº 1, que a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de já ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena principal como das penas acessórias. Aponta-se neste número para a distinção usual entre amnistia própria e amnistia imprópria. A primeira dirige-se à própria infracção, antes de proferida a condenação. A segunda tem a ver com a situação do sancionado depois da condenação. O mesmo artigo determina, no seu nº 2, que, no caso de concurso de crimes, a amnistia é aplicável a cada um dos crimes a que foi concedida. 'A amnistia pode ser subordinada ao cumprimento de certos deveres e não prejudica a indemnização de perdas e danos que for devida.' (nº 3 do art. 126º do Código Penal). Por último, na falta de disposição em contrário da lei amnistiadora, a amnistia 'não aproveita aos reincidentes nem aos condenados em pena indeterminada' (nº 4 do art. 126º). O art. 127º do Código Penal regula o indulto, dizendo o nº 1 do artigo que o indulto 'extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra prevista na lei'. Não há neste diploma qualquer referência a 'perdões genéricos'.
Segundo os ensinamentos da doutrina penalista francesa recebidos em Portugal, a amnistia distinguia-se 'basicamente do perdão ou indulto, enquanto aquela era entendida como medida jurídica (pertencente ao mundo do Direito e, portanto, sujeita a controlo jurisdicional) e este, pelo contrário, como medida graciosa, pré-jurídica (e, portanto, jurisdicionalmente incontrolável)' (declaração de voto de Figueiredo Dias, anexa ao Parecer nº
13/79 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 8º volume, Lisboa, 1980, pág. 109; vejam-se ainda José de Sousa e Brito, Sobre a Amnistia, in Revista jurídica, Nova Série, AAFDL, nº 6, Abril-Junho 1986, págs.
15 e segs., Eduardo Correia e A. Taipa de Carvalho, Direito Criminal, III, 2, lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra, 1980, págs. 16 e 17; Gustavo Zagrebelski, Amnistia, Indulto e Grazia- Profili Costituzionali, Milão, 1974, págs. 68 e segs.; Blanca Lozano, El Indulto
y La Amnistia ante la Constitucion, in Estudios sobre la Constitucion Española-Homenaje al Professor Eduardo Garcia de Enterria, tomo II, De Los Derechos y Deberes Fundamentales, Madrid, 1991, págs. 1027 e segs.) Entre a amnistia e o perdão genérico (incluindo a figura da comutação genérica de penas) existe uma diferença de regimes jurídicos importante: a amnistia tem efeitos retroactivos, afectando não só a pena aplicada mas o próprio acto criminoso passado, que é 'esquecido', considerando-se como não praticado (abolição retroactiva do crime). O perdão genérico incide, segundo a doutrina maioritária, apenas sobre as penas determinadas pela decisão condenatória e para o futuro
(sobre a distinção entre as várias medidas de clemência, remete-se para José de Sousa e Brito, estudo citado, págs. 19 e segs; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol II, Coimbra, 1985, pág. 182).
12. - De um modo geral, pode dizer-se que as medidas de clemência tinham mais lógica nas comunidades da Antiguidade e nos Estados medievais e do Antigo Regime do que nos Estados democráticos contemporâneos, pois correspondiam à vontade discricionária exercida por acto do Chefe ou Soberano, sendo os juízes seus delegados. A verdade, porém, é que os actos de clemência que se traduzem numa renúncia ou abstenção do exercício do jus puniendi pelo Estado se encontram ainda hoje nos Estados de direito contemporâneos - em que é acolhido o princípio da separação de poderes - estando previstos nas respectivas constituições, muito embora a sua justificação racional suscite forte polémica e cause diferentes perplexidades, ao procurar-se o elenco das causas da subsistência do conjunto dos actos de clemência (cfr. Gladio Gemma, Parlamento e Abuso di Clemenza, in Diritto e Società, 1985, nº 4, págs. 657 a 677, referindo-se à experiência parlamentar italiana na matéria e a uma proposta sem êxito de revisão constitucional formulada no seio da comissão Bozzi em 1984 no sentido de limitar a concessão de amnistias e indultos a
«situações excepcionais e irrepetíveis»).
Em especial no que toca à amnistia, medida de clemência de carácter genérico e efeito retroactivo, tem sido sustentado que a sua concessão, sem embargo de revestir a forma de lei, não se consubstancia em lei geral, mas antes em acto político ou, pelo menos, em acto não normativo, necessariamente ofensivo do princípio da igualdade, em suma, através de um acto contra legem (cfr. Afonso Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1976, policopiado, págs. 93 a 95, nota). A evolução do constitucionalismo liberal até ao Estado de direito social ou democrático no nosso século tendeu a fazer prevalecer, porém, a ideia contraria de que a amnistia é um acto normativo, de natureza legal e carácter retroactivo, que se contrapõe ao acto de perdão ou indulto individual. Como refere Figueiredo Dias, na sua já citada declaração de voto:
'Com a institucionalização do Estado de Direito social e democrático, porém, a ideia base desta construção [de que os actos de clemência eram medidas graciosas ou pré-jurídicas] - a crença numa «graça» salvífica que viveria antes e fora do Direito - foi sujeita a cerrada contestação [...]- todos os actos de graça, se e na medida em que sejam admissíveis, são actos que se movem no mundo do Direito - desde logo, mas não só, no do direito constitucional -, estão sujeitos ao seu império e, portanto, ao controlo jurisdicional. O que não deixou de se reflectir nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto: por um lado, acentuando os diferentes órgãos de soberania a que cada um devia caber (aquela
às câmaras legislativas, este ao mais alto representante do Estado); por outro lado, evidenciando que na amnistia se trata sempre de uma medida ao menos formalmente legal e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade; por fim, sugerindo a restrição do conceito de amnistia às medidas legislativas que visem assegurar a isenção de efeitos penais, ou equivalentes, por certos factos, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, diminuídas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, ou equivalente, passada em julgado'. (in Pareceres cit., 8º volume, pág 109).
E, de facto, as jurisprudências constitucionais alemã, italiana, portuguesa e espanhola têm considerado as leis amnistiadoras como verdadeiras leis gerais e abstractas, embora tendo como objecto factos passados, sendo susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade respectiva. O Tribunal Constitucional Federal alemão teve ocasião em 1953 de decidir que a concessão de isenção de pena através de amnistia não era um puro acto administrativo em forma de lei, mas uma lei em sentido material, visto dela constar a previsão de um número incalculável e indeterminado de casos, caracterizados por tipos (cfr. José de Sousa e Brito, estudo citado, pág. 33; vejam-se as decisões do 1º Senado de 15 de Dezembro de 1959 e de 25 de Fevereiro de 1960, em Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, 10º vol., 1960, págs,
246 e segs. e 344 e segs). Em especial no que toca à Comissão Constitucional, teve ocasião este órgão de fiscalizar a constitucionalidade de normas amnistiadoras constantes de decretos-leis emanados do Governo em recursos de constitucionalidade (cfr. entre outros, os Acórdãos nºs 186 e 362, in Apêndice ao Diário da República, de 3 de Julho de 1980, págs. 34-35, e de 18 de Janeiro de 1983, págs. 23 e segs, respectivamente) e de se pronunciar sobre questões de constitucionalidade de uma lei de amnistia aplicável a militares no já citado Parecer nº 13/79, e nos acórdãos nºs 308, 309 e 310 (publicados estes últimos no Apêndice ao Diário da República, de 22 de Dezembro de 1981, págs. 21 a 27).
Ainda que se possa pôr em dúvida, num plano doutrinário, que as leis de amnistia contenham verdadeiras normas jurídicas - dúvida que se pode colocar em função do conceito de norma que se perfilhe - não restam dúvidas de que as disposições amnistiadoras se têm de considerar como normas para efeitos de fiscalização da sua constitucionalidade, de um ponto de vista funcional, sendo certo que as mesmas se revestem de natureza prescritiva, implicando tarefas ulteriores de aplicação pelos destinatários, em especial pela Administração Pública e pelos tribunais, envolvendo juízos de natureza jurídica, tanto mais quanto é certo que as amnistias constam de lei em sentido formal, como resulta do art. 169º, nº 3, da Constituição.
Questão mais controvertida é a de saber se é possível aos tribunais constitucionais declararem inconstitucionais normas de leis de amnistia por violação de certos princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade. De facto, sendo a amnistia um acto de abolição retroactiva da prática de um acto criminoso ou equiparado, sempre se poderia dizer que a norma amnistiadora viola a lei penal ou uma decisão judicial, introduzindo uma correcção a posteriori, mas com efeitos para o passado, na normatividade, pelo que não poderia ser aferida por outras regras normativas ou pelo princípio de igualdade (no Parecer nº 13/79 afirma-se que 'as leis de amnistia correspondem a limitações ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei' - in Pareceres, vol. 8, pág. 104; idêntica afirmação aparece incidentalmente na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão - cfr. a citada decisão do 1º Senado, de 15 de Dezembro de 1959, e a decisão de 27 de Novembro de 1973 in Entscheidungen cit, vol. 36, 1974, págs 191, onde se afirma que o legislador dispõe aí de uma ampla liberdade de conformação ). Toda a lei de amnistia seria ex natura limitadora da ideia da igualdade.
Contra este ponto de vista, tem sido, porém, sustentado que as leis de amnistia são actos normativos soberanos de graça ou clemência, de carácter geral e abstracto, que só podem subsistir no ordenamento constitucional se o seu regime não violar, de forma arbitrária e intolerável, certos princípios constitucionais fundamentais, nomeadamente o do Estado de direito, o da proporcionalidade e até o da igualdade, sendo para isso necessário que as previsões das condutas amnistiadas sejam individualizadas através da utilização de elementos já totalmente realizados e que não possam repetir-se no futuro, tendo carácter excepcional, de tal forma que a negação das consequências de um direito anterior possa fundamentar-se em razões de justiça, não devendo ter-se o acto amnistiador como ofensivo da consciência da comunidade
(cfr. Zagrebelsky, ob. cit, págs 80 e segs., 121 e segs., analisando criticamente a jurisprudência do Tribunal Constitucional italiano; Blanca Lozano, artigo citado, pág. 1039-1041, referindo dados da jurisprudência espanhola). Há quem sustente que uma lei de amnistia só pode ser editada desde que exista uma justa causa, indo ao ponto de afirmar-se que se têm de verificar situações 'excepcionais e irrepetíveis', mas afigura-se, no mínimo, duvidoso que se possa ir tão longe quanto a um juízo sobre a globalidade de certa lei de amnistia, ainda que se possa admitir a controlabilidade pela jurisdição constitucional da exigência de que a delimitação dos factos amnistiados constantes de uma concreta norma da lei amnistiadora tenha de ser 'feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de Direito'.
(José de Sousa e Brito, artigo citado, pág. 44). Tal controlabilidade poderá estender-se a outros limites materiais da amnistia, embora seja controvertido determiná-los em concreto (fala-se em proibição de eficácia ultra-activa e de amnistia individual, de proibição de auto-favorecimento, etc.). Seja como for, se se admitisse levar o controlo mais longe, permitir-se-ia aos tribunais constitucionais uma fiscalização muito apertada sobre a liberdade de conformação do legislador parlamentar ao optar pela concessão de uma amnistia em certo momento de tempo e ao escolher certos tipos criminais para serem amnistiados, em vez de outros. Importa acentuar, citando de novo José de Sousa e Brito, que a legitimação ou justa causa de uma amnistia não pode medir-se só em conformidade com o princípio da igualdade, ou com outros princípios constitucionais isolados, mas antes deverá medir-se tendo em vista a 'totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito', fins que se não 'limitam à justiça, no sentido de realização do direito', valendo aí também 'razões de conveniência pública e a razão de Estado' (ob. cit., págs 43-44).
13. - As amnistias incidem tradicionalmente sobre condutas punidas pelo direito criminal, mas têm-se estendido a outras condutas sancionadas por normas de direito público (direito de mera ordenação social, direito disciplinar das escolas públicas ou da função pública, abrangendo neste caso funcionários civis e/ou militares; direito disciplinar das associações públicas; direito sancionatório fiscal). Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que 'nada parece excluir que as amnistias e os perdões genéricos tenham por objecto, não apenas os crimes e as respectivas penas, mas também as demais categorias punitivas públicas (infracções disciplinares, etc.)' (Constituição cit., 2ª ed., 2º vol., pág. 182).
Historicamente, as primeiras amnistias de âmbito laboral surgiram em Espanha, em 1931 (abrangendo os empregados ferroviários e os trabalhadores do Instituto Geográfico, Cadastral e de Estatística, despedidos pela sua participação numa greve geral ocorrida em 1917), e em França, em 1937, durante o governo da Frente Popular.
Mais recentemente, em alguns países europeus, foram aministiadas infracções a direitos sancionatórios não públicos, nomeadamente no domínio laboral. Tal aconteceu em Espanha com a Lei de Amnistia de 15 de Outubro de 1977, Lei nº 46/77, (arts. 5º e 8º), através da qual foram amnistiadas infracções disciplinares sancionadas na legislação laboral do regime de Franco, mas em que as condutas dos trabalhadores deixaram de ser contrárias às normas laborais internacionais que passaram a vigorar em Espanha, após a restauração do regime democrático (sobre a amnistia de 1977 e o debate da jurisprudência sobre a respectiva constitucionalidade, vejam-se Luís Henrique de la Villa e A. Desdentado Bonete, La Amnistia Laboral, Madrid, 1978, págs. 40 e segs.). Em França, por ocasião da eleição presidencial de 1981, a Lei nº 81-736, de 4 de Agosto de 1981, estabeleceu no seu art. 13º a amnistia 'dos factos cometidos anteriormente a 22 de Maio de 1981, na medida em que constituam infracções
(fautes) passíveis de sanções disciplinares ou profissionais', ficando, porém, dependente a amnistia disciplinar ou laboral da concessão de amnistia penal quando os mesmos factos tivessem dado lugar a uma condenação penal. Por outro lado, o art. 14º amnistiou, nas mesmas condições, os factos reconhecidos como motivos de sanções aplicadas pelas entidades empregadoras, podendo os trabalhadores, despedidos após 1 de Janeiro de 1975 em virtude do exercício das suas funções de representantes eleitos dos trabalhadores ou de delegados sindicais, exigir a sua reintegração no posto de trabalho anterior. Ficaram excluídos do benefício da amnistia os factos que constituíssem faltas de probidade, violações dos bons costumes ou da honra. E nova lei de amnistia em idênticos termos foi publicada em 1988 em França, reformulada após um primeiro juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Conselho Constitucional. A Constituição brasileira de 1988 contém uma disposição transitória, de conteúdo amplo, de amnistia de servidores públicos e de trabalhadores do sector privado, dirigentes e representantes sindicais, relativamente às infracções cometidas por motivos exclusivamente políticos (art. 8º e § 2º do Acto das Disposições Constitucionais Transitórias).
Em Portugal, a par de amnistia no domínio do direito penal geral, do direito penal económico e do direito penal militar, tem havido amnistias no domínio do direito disciplinar dos funcionários públicos civis e no domínio do direito disciplinar militar. Mas também têm sido amnistiadas infracções disciplinares de profissionais liberais (art. 1º, alínea ff), da Lei nº 16/86, de 11 de Junho), infracções desportivas (alínea bb) do nº
1 dessa Lei nº 16/86), infracções praticadas por estudantes (Decreto-Lei nº
259/74, de 15 de Junho, art. 2º, alínea l), por jornalistas (art. 1º da Lei nº
17/85, de 17 de Julho) e infracções praticadas por trabalhadores de empresas públicas (art. 1º da citada Lei nº 17/85; alínea ee) do art. 1º da Lei nº
16/86, de 11 de Junho). No que toca às amnistias laborais de 1985 e de 1986, importa pôr em realce que a primeira contemplou infracções disciplinares praticadas nos meios de comunicação social previstos no art. 39º da Constituição
(versão de 1982), isto é, nos órgãos de comunicação social pertencentes a entidades públicas ou delas dependentes, quando tivessem decorrido da 'legítima expressão da liberdade individual ou colectiva dos respectivos trabalhadores, bem como da livre afirmação das suas opções políticas e ideológicas'; a segunda abrangeu apenas as 'infracções disciplinares cometidas por membros representativos de trabalhadores de empresas públicas no exercício das correlativas funções ou por causa delas, quando não puníveis ou punidas com despedimento'.
Embora tenha sido sustentado recentemente na doutrina que é inconstitucional a extensão da amnistia a infracções não penais, nomeadamente quando estejam em causa infracções sancionadas por normas de direito privado, não pode afirmar-se que a alínea g) do art. 164º da Constituição, restringe as amnistias à matéria penal, isto pela circunstância de a Constituição atribuir competência reservada à Assembleia da República para definir crimes e penas (veja-se, considerando exclusiva a competência da Assembleia da República para conceder amnistias, o Parecer nº 13/79 da Comissão Constitucional, já citado; em sentido diverso, o voto de vencido de Figueiredo Dias nesse parecer; também em sentido crítico sobre a posição de Figueiredo Dias, veja-se ainda Afonso Rodrigues Queiró, comentário ao Acórdão nº 308 da Comissão Constitucional, in Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 114º, págs. 242-245. Este último autor sustenta que o exercício da prerrogativa de amnistia não constitui, numa perspectiva substancial, actividade legislativa, por não ocorrer a generalidade no tempo, defendendo igualmente que o Governo pode amnistiar o ilícito de ordenação social, salvo quando exista um recurso jurisdicional de plena jurisdição). Por outro lado, o poder de amnistiar infracções não penais não pressupõe que o Estado tenha de ter poder disciplinar sobre os autores das infracções amnistiadas: o Parlamento tem competência conferida pela Constituição para amnistiar infracções como órgão de soberania, no exercício de um poder soberano. Não se confunde com o Estado-Administração, nem o exercício do seu poder soberano de clemência está dependente da existência de uma relação de serviço com os autores das infracções. Já atrás se viu que Gomes Canotilho e Vital Moreira admitem que as amnistias possam incidir sobre as demais categorias punitivas públicas. Do mesmo modo, na doutrina alemã, é corrente a afirmação de que as amnistias têm por objecto não só infracções criminais em sentido estrito, mas também as infracções análogas às criminais, nomeadamente as contra-ordenações. E os indicados casos de amnistia laboral em França, em Espanha e no Brasil mostram mesmo que, em certos ordenamentos, se foi ao ponto de amnistiar trabalhadores do sector público e de empresas privadas, quer por norma constante de legislação ordinária, quer por norma constitucional, devendo pôr-se em relevo que, nos casos espanhol e brasileiro, a amnistia surgiu em momentos de mutação constitucional e que, na primeira amnistia francesa, se pretendeu comemorar a primeira vitória de um candidato presidencial da oposição, após mais de vinte anos de vigência da Constituição de 1958.
No que toca à concessão de amnistias no domínio laboral quanto a infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial do Estado (no domínio da comunicação social ou noutros domínios), não se vê como se possa sustentar que tais amnistias são de todo em todo impossíveis ex natura rerum. De facto, o poder disciplinar não é configurável no nosso ordenamento jurídico como um poder absoluto, como é confirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a legitimidade constitucional da Lei nº 68/79, quando conferiu aos tribunais a competência para aplicar a sanção de despedimento aos dirigentes sindicais (vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs 126/84, da 1ª Secção, e 204/85, da 2ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 4º, págs. 393 e segs, e 6º, págs. 511 e segs., respectivamente).
Não sendo um poder absoluto, não pode dizer-se que esteja vedado ao legislador amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de entidades de natureza pública, como sucede no caso dos autos. Não há que falar em expropriação ou confisco do poder disciplinar de entidades autónomas quando o Estado é, directa ou indirectamente, o único titular do capital social dessas empresas, - é o que sucede no caso da entidade recorrente - não tendo sentido aludir neste contexto à iniciativa económica privada (cfr. art. 82º, nº 2, da Constituição). Tão-pouco se pode ver nessa amnistia uma ofensa ao direito de propriedade privada, visto que o Estado é proprietário, directa ou indirectamente, das empresas do sector público, não sendo fundado invocar aquele artigo constitucional para disciplinar as relações do titular das empresas com os órgãos das mesmas. Do mesmo modo, não pode encontrar-se no nº 2 do art. 87º da Constituição qualquer apoio para considerar ilegítima a presente amnistia laboral, visto que o Estado não está a intervir em empresas privadas, mas em empresas, como é o caso da B., cujo capital lhe pertence integralmente, empresas do sector público da economia, portanto.
Conclui-se, por isso, que o órgão parlamentar pode, em tese geral e observadas certas regras, fazer abranger por leis de amnistia o ilícito disciplinar laboral, ainda que regulado pelo direito privado, desde que as entidades patronais sejam entidades públicas (empresas públicas ou sociedades de capitais públicos). Dado o teor das normas em apreciação, não tem o Tribunal Constitucional de curar agora da questão de natureza seguramente diferente, a saber, a da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de normas de amnistia que tivessem por destinatários trabalhadores de empresas privadas, autores de infracções disciplinares.
Finalmente, anote-se que a atribuição da natureza legislativa à norma amnistiadora em matéria laboral não permite que se fale a este propósito de legislação do trabalho, nomeadamente para efeito de exigência de audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais (art. 54º, nº 5, alínea d), e 56, nº 2, alínea a),da Constituição). De facto, uma amnistia
é um acto de clemência ou de graça do Poder Soberano, respeitante a condutas passadas, não se verificando, por isso, as razões que impõem tal audição quando se elabora legislação do trabalho para vigorar no futuro.
14. - Importa, por isso, averiguar se a amnistia constante da alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91 é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, como sustenta a recorrente, fundada no parecer jurídico do Prof. C. junto aos autos.
A violação do princípio de igualdade decorreria também da circunstância de o legislador não ter abrangido na amnistia as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores por conta de outrem cujas entidades patronais não são empresas públicas ou empresas de capitais públicos, isto independentemente de se averiguar se uma amnistia podia abranger estes
últimos trabalhadores. Quer dizer, pela óptica da empresa pública ora recorrente, o Estado tê-la-ia discriminado, face ao conjunto das empresas do sector privado, assistindo-lhe, assim, o direito de invocar face ao Estado, ainda que detentor de todo o seu capital social, a ofensa ao princípio constitucional da igualdade.
Sem curar agora de saber se as empresas públicas podem invocar direitos fundamentais que possam invocar contra o Estado e, em caso afirmativo, em que circunstâncias o poderão fazer, importa averiguar previamente se existe no caso uma violação do princípio constitucional da igualdade.
Em matéria de concessão de amnistias, como atrás se referiu, o controlo da jurisdição constitucional, em matéria de violação do princípio da igualdade, há-de ser feito com especiais cautelas, dada a intrínseca limitação desse princípio que vai envolvida em todo o acto de clemência. Assim, por exemplo, o Tribunal Constitucional italiano tem considerado em jurisprudência reiterada que 'cabe exclusivamente ao legislador a escolha do critério de discriminação entre infracções amnistiáveis e não
[amnistiáveis], precisando-se que as valorações respectivas deste não podem ser sindicadas, salvo quando ocorram casos em que a falta de perequação normativa, entre figuras homogéneas de infracções, assuma dimensões tais que não possam considerar-se fundadas em alguma justificação razoável'. (Sentença nº 215, de 20 de Maio de 1991, in Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXVI, 1991, 3, pág 1919; v. indicação de outras decisões na anotação na pág. 1920).
Há-de perguntar-se, pois, se a opção do legislador de confinar a amnistia das infracções laborais aos trabalhadores das empresas públicas ou de capitais públicos é totalmente arbitrária, insusceptível de ser fundada em uma qualquer justificação razoável.
A resposta deste Tribunal é que tal opção não é nem arbitrária, nem insusceptível de justificação racional.
Na verdade, o Estado estabeleceu uma medida de clemência para trabalhadores de empresas cujo capital lhe pertence (empresas do sector público, abrangendo as empresas públicas e as empresas de capitais públicos). No segmento da norma aplicada no caso sub judicio, a infracção amnistiada não se revestiu de gravidade especial, tendo a sanção aplicada sido a de suspensão da prestação de trabalho por período curto, com perda de retribuição.
Quer dizer, do mesmo modo que o Estado entendeu amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por agentes administrativos, funcionários ou não funcionários, da Administração Pública, central, regional e local, e por militares (alíneas gg) e hh) do art. 1º da Lei nº 23/91), entendeu também amnistiar as infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial, sem distinguir entre os que estão sujeitos à lei do regime do contrato individual de trabalho e os que estão sujeitos a um regime laboral de direito administrativo (art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76 de 8 de Abril). A circunstância de ficarem excluídas as infracções disciplinares punidas com sanção expulsiva, no caso de funcionários públicos, não implica que o legislador não pudesse ter contemplado com a amnistia as infracções cometidas pelos trabalhadores de empresas públicas e de sociedades de capitais públicos, puníveis com despedimento ou punidas com despedimento não definitivo nem transitado.
Sustenta o Prof. C., no parecer junto aos autos, que tal amnistia viola o princípio da igualdade, já que o instituto do poder disciplinar, configurado por normas jurídicas de direito laboral, existe tanto no ordenamento jurídico das empresas públicas (salvo poucas excepções, entre as quais não figura a ora recorrente), como no das empresas privadas, pelo que é legítimo comparar o tratamento dado (e não dado) a ambos os tipos de empresas pela alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, havendo de concluir-se que a lei em causa tratou desigualmente situações jurídicas qualificáveis como iguais.
Todavia, não pode aceitar-se tal posição. Bastará notar que a natureza empresarial pública da entidade patronal pode condicionar as relações laborais, nomeadamente pela sujeição dos trabalhadores a um regime de direito público (art. 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 49.408, de 11 de Novembro de 1969; art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril), sucedendo mesmo que certos trabalhadores do sector público têm determinados ónus, que não impendem sobre trabalhadores de empresas privadas, mesmo quando sujeitos ao regime da lei geral do contrato individual de trabalho. A título exemplificativo, refiram-se certas incompatibilidades legais para o exercício de funções remuneradas em regime de acumulação que atingem apenas os trabalhadores de empresas públicas do sector bancário (cfr. art. 30º, nºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 729-F/75, de 22 de Dezembro; cfr. José Acácio Lourenço, As Relações de Trabalho nas Empresas Públicas, Coimbra, 1984, págs. 37 e segs.), bem como as amplas possibilidades de exercício de funções por funcionários públicos e trabalhadores de outras empresas públicas em regime de requisição
(art. 32º do Decreto-Lei nº 260/76).
Entende-se, assim, que o legislador tinha a possibilidade constitucional de decretar uma amnistia laboral restrita aos trabalhadores do sector público, atendendo a que se tratava de cidadãos que desenvolvem a sua actividade no interesse e por conta do empresário público, que
é o Estado, não tendo por isso uma situação igual às dos trabalhadores das empresas do sector privado (cfr. arts. 54º, alínea b), e 90º da Constituição). . Não se vê como poderão resultar violados os arts. 13º e 82º, nº 1, da Constituição pela diferenciação introduzida pela lei amnistiadora. Nesta lei de
1991 há normas amnistiadoras que englobam os trabalhadores da Administração directa do Estado e os de chamada Admnistração indirecta (cfr. sobre estas noções, por todos, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1986, págs. 205, 303 e segs.), por o legislador ter dado prevalência à natureza pública da entidade patronal, em vez de ter valorizado a distinção entre trabalhadores vinculados a empresas do sector público por regimes laborais de direito administrativo ou de direito privado, distinção que se reveste de carácter essencialmente técnico ou formal. Tal opção do legislador não é arbitrária ou irrazoável, não podendo este Tribunal censurá-la, já que continua garantida a existência de um sector de propriedade pública dos bens de produção, o qual se não confunde com o sector privado da economia (art. 82, nºs
1 e 2, da Constituição).
15. - De igual modo, assim como não se vê que seja violado o princípio da igualdade pela diferenciação de tratamento dos trabalhadores do sector público e do sector privado, não se vê como tal opção do legislador possa violar os arts. 62º, nº 1, e 87º, nº 2 da Constituição, ao contrário do que tem sido afirmado por certa doutrina: as empresas públicas e a propriedade pública dos meios de produção têm um regime diverso do das empresas privadas e da propriedade privada dos meios de produção. Como já se referiu, não pode falar-se, tão-pouco, em 'expropriação' inconstitucional do poder disciplinar das empresas públicas, fazendo uma equiparação integral deste ao poder disciplinar dos empresários privados. Não há qualquer ofensa da garantia da 'propriedade privada' das empresas públicas, seja qual for o sentido que tal expressão possa assumir.
E, como atrás se deixou dito, não ocorreu igualmente qualquer violação da garantia institucional do sector público empresarial.
IV
16. - Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Messias Bento (vencido quanto à questão prévia do conhecimento do recurso, nos termos da declaração de voto junta)
Mário de Brito
Bravo Serra
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa
Proc. 432/91 Cons. Messias Bento Declaração de voto:
Entendi que não devia conhecer-se do recurso, em virtude de a questão de inconstitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo.
De facto, a recorrente (B.) só suscitou a questão de inconstitucionalidade da norma da alínea ii) do artigo 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho (Lei da Amnistia) no requerimento de interposição de recurso para o TC
(não dando assim oportunidade ao juiz a quo de decidir tal questão), sendo certo que teve oportunidade processual de suscitar essa questão antes de proferido o despacho recorrido.
Na verdade, o despacho a designar dia para a tentativa de conciliação (seguida de julgamento, se ela se gorasse), a realizar em 7 de Outubro de 1991, é de 1 de Julho e foi-lhe notificado por carta registada de 2 de Julho de 1991.
É certo que a publicação da lei da amnistia ocorreu em 4 de Julho de 1991 - portanto entre a data da notificação (carta registada de
2/7/91) e a do julgamento (7/X/91), - e a ora recorrente, nesse período, não tinha que fazer qualquer intervenção obrigatória no processo, pois que, tratando-se de processo sumário, com a contestação (apresentada em 29/5/91), teve ela logo que oferecer 'os documentos e as testemunhas' e que requerer
'quaisquer outras diligências de prova' (cf. artigo 86º, nº 3 do CPT). Simplesmente, não estava proibida de nele fazer requerimentos (cf. os artigos
150º e 152º, nº 2, e também o artigo 166º, nº 2, todos do CPP); e, no caso, tinha o ónus de fazer requerimento a suscitar a questão de inconstitucionalidade da referida norma - ónus que decorre do facto de a lei impor que tal questão seja suscitada durante o processo [cf. artigo 70º, nº 1, alínea b) da LTC]. [cf. identicamente a declaração de voto que apus ao Acórdão nº 94/88]. De outro modo, o Tribunal Constitucional intervirá em 1ª instância, e não como tribunal de recurso. Acresce que, ainda que assim não houvesse de entender-se, devia, pelo menos, exigir-se que a requerida suscitasse tal questão logo ao abrir da tentativa de conciliação, e ela não o fez.
Messias Bento