Imprimir acórdão
Proc. nº 92/91
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. - A., --------------, --------------------, residente em -----------------------, concelho de ----------------------, intentou em 15 de Dezembro de 1986, no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, acção popular contra a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, ao abrigo do art. 822º do Código Administrativo.
Na petição da acção, alegou que um outro munícipe, B., começara a realizar obras de construção de um edifício de carácter administrativo e fabril a menos de três metros da estrema do prédio do autor, com violação dos arts. 1º e 2º da postura municipal de 22 de Junho de 1983, que regulamenta os afastamentos a observar na constituição de novas edificações naquele concelho. A Câmara demandada ordenara o embargo da obra iniciada, instaurando um auto de transgressão policial contra o proprietário do prédio contíguo, bem como indeferira por duas vezes requerimentos deste último a pedir a legalização da obra embargada. Por deliberação de 25 de Agosto de 1986, a Câmara acabara por deferir novo pedido de legalização das obras, não tendo o autor sido notificado desse facto. Através da acção popular, pretendia recorrer da deliberação de legalização da obra, invocando a ilegalidade da mesma para fundamentar a respectiva anulação. Tal ilegalidade decorria não só da violação daquela postura, como ainda da ausência de fundamentação do acto administrativo e da insusceptibilidade de revogação dos anteriores indeferimentos.
A Câmara recorrida contestou a acção, invocando a extemporaneidade do pedido e a existência de fundamentação da deliberação impugnada. Além disso, considerou impróprio o meio processual utilizado pelo autor. Citado o recorrido particular, B., apresentou ele também contestação, sustentando que a acção era extemporânea, que a deliberação impugnada se achava fundamentada e que o prédio do autor se achava encravado, não se podendo nele construir edificações do tipo da construção cujo licenciamento viera a ser deferido.
Seguiram-se os demais trâmites processuais, tendo a acção popular sido julgada procedente por saneador-sentença de 24 de Abril de
1990, havendo aí sido considerado que a deliberação que autorizara a continuação das obras de construção a uma distância de um metro e oitenta centímetros do prédio do recorrente era ilegal, por violação do art. 2º do regulamento constante da postura municipal de 1983 (a fls. 82 vº a 90).
Desta sentença interpôs recurso o recorrido particular para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Nas respectivas alegações sustentou a inconstitucionalidade e a ilegalidade da postura de 1983, imputando-lhe a violação do art. 242º da Constituição e dos arts. 1360º e 1344º do Código Civil.
Por acórdão de fls. 108 a 113 vº, proferido em 13 de Dezembro de 1990, a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Sobre o vício de inconstitucionalidade da norma regulamentar aplicada pela decisão do Tribunal Administrativo de Círculo, pronunciou-se deste modo o acórdão daquele Supremo Tribunal, neste ponto por unanimidade dos juízes intervenientes no julgamento:
'O Regulamento acima citado estabelece normas a observar na construção de novas edificações, quando se levantem problemas de afastamento entre prédios vizinhos
[...].
No dizer do recorrente, porém, a Postura aludida nos autos «não se confina aos limites traçados no art. 242º da Constituição», ...
«não se contendo nas fronteiras delineadas no art. 1360º do Código Civil», que determina a possibilidade de o proprietário poder abrir portas e janelas no seu edifício até metro e meio do prédio do vizinho, acrescendo, ainda na afirmação do recorrente, que a manter-se a imposição do afastamento de 3 metros prevista pela Postura em causa, restringir-se-iam os limites materiais da propriedade consignados no nº 1 do art. 1344º do Código Civil.
Nos termos da primeira parte do art. 1305º deste mesmo diploma, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, mas a parte final do preceito já estabelece que o gozo desses direitos se exerce dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ele impostas.
Entre estas restrições avultam os condicionamentos ditados pela segurança, salubridade, estética e pelos interesses urbanísticos das povoações , como refere Osvaldo Gomes no seu Comentário ao Novo Regime de Licenciamento de Obras, p. 22.
Em consequência, a regulamentação dos referidos condicionamentos não implica com a disciplina jurídica decorrente dos princípios inseridos no art. 1360º do Cód. Civil, no que respeita à servidão de vistas, e nada tem a ver com os limites materiais da propriedade definidos no art. 1344º daquele Código, como se evidencia no parecer emitido a fls 101 pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal.
Ora, dispondo as autarquias locais de poder regulamentar conferido pelo art. 242º da Lei Fundamental e não se mostrando excedidos os limites impostos pela própria Constituição, não se verifica o invocado vício de inconstitucionalidade' (a fls. 111-112 dos autos).
3. - Inconformado com este acórdão, dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o referido B., o qual foi admitido por despacho de fls 117.
4. - Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, neles tendo o relator proferido despacho a convidar o recorrente a indicar os elementos em falta, nos termos do art. 75º-A do Lei do Tribunal Constitucional. O recorrente indicou em tempo esses elementos (requerimento de fls. 124).
Nas suas alegações, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:
'1) A decisão recorrida, mantendo a anulação da deliberação da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, que concedeu licença para construção de edifício a
1,80m do limite do prédio vizinho, fundamentou-se no art. 2º do Regulamento Municipal daquela Câmara, de 22 de Junho de 1983, cuja cópia adiante se junta.
2) Tal norma regulamentar impõe um afastamento de três metros do prédio vizinho.
3) O art. 1360º, 1 do Cód. Civil, aprovado pelo Dec. Lei 47344 de 25/11/66, impõe o afastamento máximo de 1,5m das construções com janelas, relativamente ao prédio vizinho.
4) O art. 1305º do Cód. Civil confere ao proprietário o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da Lei e com observância das restrições por ela impostas.
5) Os diplomas conhecidos que poderão versar tal matéria, designadamente o Código Administrativo, a Lei 100/84, de 29 de Março [trata-se de Decreto-Lei, de facto] e o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (R.G.E.U.) não contêm nenhuma disposição que atribua às Câmaras Municipais poder regulamentar para produzir normas de teor semelhante ao art. 2º do regulamento em causa.
6) Todo o regulamento emanado das autarquias tem, forçosamente, que se conter nos limites definidos pelas leis já existentes, no que respeita à matéria que as mesmas trataram.
7) Nesta conformidade, a imposição de afastamento de 3 metros consignada no art.
2º do citado regulamento da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, torna essa norma ilegal e inconstitucional, por não haver lei que a avalize e violar o disposto no art. 242º da Constituição Política' (a fls. 127 vº a 128).
O autor recorrido também apresentou, por seu turno, alegações em que preconiza a improcedência do recurso, atendendo a que as Câmaras Municipais sempre dispuseram de poder regulamentar, o que se acha plenamente consagrado no art. 242º da Constituição, e que o direito de propriedade tem o seu conteúdo e limites definidos por lei, onde se incluem os regulamentos, nomeadamente os de origem municipal em matéria de urbanismo.
5. - Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II
6. - Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade o disposto no nº 2 do regulamento aprovado por deliberação da Assembleia Municipal de Vila Nova de Famalicão, tomada em 14 de Maio de 1983, e que consta de edital de 22 de Junho de 1983, assinado pelo Presidente dessa Câmara Municipal (a fls. 29 a 31 dos autos). Tal norma foi aplicada pela decisão recorrida e acha-se impugnada, pelo recorrente, quanto à sua constitucionalidade. Este regulamento tem por objecto os 'afastamentos a observar na construção de novas edificações' e tem o seguinte teor:
'Considerando a necessidade de estabelecer, com a maior urgência, os critérios a seguir para o licenciamento de obras, nos casos em que se levantam questões de afastamento entre prédios vizinhos;
Considerando que à Câmara Municipal cabe a responsabilidade pela definição de tais critérios que não poderão ficar dependentes de autorização de terceiros, solução que permitirá sempre o funcionamento de soluções arbitrárias, desiguais e, eventualmente, injustas;
Considerando que o afastamento entre construções deverá sobretudo ser o corolário da salvaguarda das condições de estética, salubridade e insulação das construções, determina-se:
Art. 1º
Nas construções de novos edifícios ou na ampliação de edifícios já existentes, sejam de natureza habitacional ou qualquer outra, será exigido um afastamento entre a nova edificação e o limite do prédio vizinho.
Art. 2º
Quando nenhuma disposição legal impuser maior afastamento ou quando esteja devidamente aprovada, em plano ou projecto, construção em banda contínua ou geminada, a distância entre a nova construção ou ampliação e o limite do prédio vizinho será de três metros.
Art. 3º
Apenas serão admitidas distâncias inferiores à prevista no artigo 2º, nos seguintes casos:
a) Quando se trate de pequenas construções consideradas anexos da construção principal que se destinem a garagem, arrumos de qualquer natureza ou outras finalidades desde que estas estejam relacionadas com o fim habitacional da construção principal;
b) Quando no prédio vizinho àquele onde a nova construção será implantada tenha sido licenciada construção a distância inferior à prevista no artigo 2º;
c) Quando no prédio vizinho não exista, nem possa vir a existir construção da mesma natureza da obra cujo licenciamento é requerido.
Art. 4º
As construções de anexos destinadas a garagem, arrumos ou outras finalidades, poderão ser implantadas até ao limite do prédio em que serão edificadas desde que obedeçam cumulativamente aos seguintes requisitos:
a) Terem, pelo exterior, pé-direito não superior a 2,30 metros;
b) Não ocuparem área superior a 1/10 do total disponível para logradouro;
c) Não serem implantadas em posição mais avançada que o plano definido pelo alçado da frente da obra principal;
d) Não confrontarem o mesmo prédio vizinho numa distância superior a sete metros.
Art. 5º
Será permitida distância inferior à prevista no artigo 2º quando se verificar que no prédio vizinho àquele onde será (edificada) a nova construção existe edifício implantado a menos de três metros da linha divisória dos prédios, caso em que, sem prejuízo das condições de salubridade, higiene e insulação, será exigida uma distância igual à existente no prédio confinante, mas nunca inferior a metro e meio.
Art. 6º
Serão ainda permitidas construções ou ampliações a distância inferior a três metros, mas nunca menor que metro e meio, quando se verifique que no prédio vizinho, pelas dimensões, natureza ou encargos de que está onerado, não seja possível implantação de obra semelhante à construção pretendida.
Art. 7º
As normas constantes deste regulamento entrarão em vigor imediatamente após a sua publicação em edital'.
7. Antes de se apreciar a questão suscitada de inconstitucionalidade, importa decidir se o regulamento municipal de 22 de Junho de 1983, que estabelece os afastamentos a observar na construção de novas edificações no concelho de Vila Nova de Famalicão, e que acaba de transcrever-se, é conforme à Constituição, encarado no conjunto das normas que o integram, isto é, enquanto acto normativo de natureza regulamentar. Está-se, efectivamente, perante um conjunto de regra gerais e abstractas, dimanado de um
órgão administrativo, no desempenho da função administrativa, para se utilizar a noção de regulamento perfilhada por Afonso Rodrigues Queiró.
Ora, o nº 7 do art. 115º da Constituição dispõe que os 'regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'.
Gomes Canotilho fala no princípio da pendência da lei ou da primariedade da lei, consagrado na norma acabada de transcrever, referindo, a este propósito o escopo desse número do art. 115º:
'(1) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; (2) dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta disciplina é, em princípio (...), extensiva a todas as espécies de regulamentos, incluindo os chamados regulamentos independentes (cfr. art. 115º/6 e 7), isto é, aqueles cuja lei se limita a definir a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão' (Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 924).
Este princípio obteve, assim, consagração no nº 7 do art. 115º da Lei Fundamental, norma introduzida pela primeira revisão constitucional (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., 2º volume, Coimbra, 1985, págs. 65-67), parecendo acharem-se proibidos regulamentos autónomos na nossa ordem jurídica (sobre este ponto, aliás controvertido, vejam-se Afonso Rodrigues Queiró, Teoria dos Regulamentos, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVII, 1981, págs.
14 e segs.; Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, págs. 198 e segs.; J. Coutinho de Abreu, Sobre os Regulamentos Administrativos, Coimbra, 1987, págs. 74 e segs.).
A assembleia municipal tem competência para elaborar posturas e regulamentos, de harmonia com a legislação respeitante à organização, atribuições e competências das autarquias locais (art. 39º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, Lei das Autarquias Locais, na redacção dada pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho; vejam-se ainda, quanto ao aspecto objectivo, as atribuições das autarquias locais constantes do art. 2º, nº 1, alíneas b), d) e i) da mesma Lei das Autarquias Locais).
Simplesmente, do regulamento em apreciação não consta qualquer indicação da norma ou normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. Há-de, assim, considerar-se que todo o regulamento - e não só o seu art. 2º, disposição aplicada pelo acórdão recorrido
- viola o nº 7 do art. 115º da Constituição e tem de considerar-se, por isso, inconstitucional.
Como se escreveu no Acórdão nº 76/88 deste Tribunal, a propósito de um regulamento independente emanado de uma câmara municipal:
'Para a perfeita compreensão do sentido e alcance do preceito [o nº 7 do art.
115º da Constituição], indispensável é estabelecer-se o confronto do nº 7 com o nº 6 do artigo 115º.
De facto, enquanto o nº 6 do artigo 115º da CRP estipula que «os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes», limitando, por conseguinte e de modo expresso, a determinação dele constante aos regulamentos do Executivo, já o nº 7 do mesmo artigo se refere a regulamentos tout court, sujeitando, assim, todo e qualquer regulamento, independentemente da consideração do órgão ou da autoridade donde tiveram emanado, à imposição de tipo alternativo nele prevista.
É pois, claro, face a este simples cotejo normativo, que abrangidos pela regra bidireccional do nº 7 do artigo 115º da CRP estão todos os regulamentos, nomeadamente os [...] dos órgãos próprios , das autarquias locais (artigo 242º da CRP). Todos estes regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e que, por força do disposto no nº 7 do artigo 115º da CRP, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento'. (in Diário da República, I Série, nº 93, de 21 de Abril de 1988; no mesmo sentido, vejam-se ainda os Acórdãos nºs 63/88 e
307/88, o primeiro publicado na II Série do mesmo Diário, nº 108, de 10 de Maio de 1988 e o segundo na I Série, nº 18, de 21 de Janeiro de 1989).
Tem, assim, de concluir-se pela ilegitimidade constitucional do presente regulamento, em virtude de um vício de ordem formal, a não citação expressa e, portanto, a não individualização do seu fundamento legal, no caso a ausência da indicação das normas que conferiam competência subjectiva e objectiva à identificada assembleia municipal para o editar. Ainda que se pudessem identificar, com elevado grau de probabilidade, as normas da Lei das Autarquias Locais que habilitaram o órgão autárquico a aprovar este regulamento, a verdade é que a inconstitucionalidade formal se mantém, 'pois a função da exigência de identificação expressa consiste, não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento), mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático (...)' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2º vol., pág. 67).
8. Alcançado este juízo sobre a inconstitucionalidade formal da norma aplicada pelo acórdão recorrido, torna-se despiciendo prosseguir na análise do objecto do recurso, no que toca à invocada inconstitucionalidade por violação do art. 242º da Constituição.
III
9. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando-se em consequência o acórdão recorrido.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
José Manuel Cardoso da Costa