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Procº nº 169/92
2ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
(Consº Bravo Serra)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1 - A. recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra da sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Sátão que o havia condenado pela autoria material de um crime de ofensas corporais com dolo de perigo, previsto e punível pelo artigo 144º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Depois de desatendida, em acórdão interlocutório, uma questão prévia suscitada pelo Ministério Público, a Relação, por acórdão de 29 de Janeiro de 1992, conheceu do mérito, decidindo, para além do mais, confirmar a condenação do arguido.
Veio este, então, 'em sede de arguição de nulidades', apresentar um requerimento em que suscitava a questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 429º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
2 - Segundo o arguido recorrente, a referida norma, ao estabelecer que, na Relação, o tribunal é constituído, em audiência,
'pelo presidente da secção, pelo relator e pelo primeiro dos juízes-adjuntos', enquanto em conferência, para um julgamento sumário do recurso, intervém ainda o outro juiz-adjunto, não deveria ter sido aplicada, por inconstitucional, já que atingiria o princípio da igualdade.
Por este motivo, devendo ter intervindo no julgamento do recurso quatro juízes e não apenas três, como aconteceu, ocorreria a nulidade prevista na alínea a) do artigo 119º do Código de Processo Penal, devendo a mesma ser declarada, com a consequente repetição do julgamento, agora já com a intervenção do segundo juiz-adjunto.
Em acórdão de 18 de Março de 1992, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a mencionada arguição de nulidade, por entender que a norma do artigo 429º, nº 1, do Código de Processo Penal não sofria de qualquer vício de inconstitucionalidade, o que tornava insubsistente a invocação da alínea a) do artigo 119º do mesmo diploma.
Inconformado, o arguido interpôs, então, recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), recurso esse que lhe foi admitido pelo relator, na Relação.
3 - Distribuído o processo no Tribunal Constitucional, lavrou aqui o relator exposição prévia tendente ao não conhecimento do recurso, por considerar que não havia sido suscitada, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade.
Em tal exposição, escreveu-se:
7. É vasta e uniforme a jurisprudência deste Tribunal quanto ao sentido a conferir à expressão «durante o processo» utilizada nas normas atrás assinaladas.
De facto, tal jurisprudência tem-se manifestado no sentido de a aludida expressão ter o significado de a invocação da inconstitucionalidade haver de ser feita em momento tal que permita o tribunal
'a quo' ainda conhecer dessa questão, o que o mesmo é dizer que a suscitação de inconstitucionalidade de uma norma deve ser feita, em regra, antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a aludida questão respeita
(cfr., por todos, o Acórdão nº 450/87 'in' Acórdãos do Tribunal Constitucional,
10º vol., 573 e segs.).
Ora, em princípio, o poder jurisdicional do juiz esgota-se com a prolação da decisão ou seja, em regra, com a sentença.
Desta forma, a suscitação da questão de inconstitucionalidade haverá, igualmente em princípio, de efectivar-se antes da referida prolação.
Claro que poderão surgir hipóteses em que a mencionada questão só pode ser levantada após o proferimento da decisão, como, por exemplo, é o caso de o recorrente ter, com essa decisão, sido surpreendido com uma interpretação e/ou aplicação normativa de todo não usual ou ao arrepio de uma jurisprudência já corrente, ou o caso de esse mesmo recorrente, anteriormente à decisão, não ter, por qualquer forma, tido oportunidade processual para suscitar a citada questão.
8. Aceites estes parâmetros que, repete-se, têm tido consagração na jurisprudência do Tribunal Constitucional, há agora que apurar se, 'in casu', e porque, anteriormente ao acórdão lavrado na Relação de Coimbra em 30 de Janeiro de 1992, o ora recorrente não suscitou questão de inconstitucionalidade tocantemente a qualquer norma jurídica, o levantamento do problema da eventual desconformidade da norma ínsita no nº 1 do artº 429º do Código de Processo Penal, levantamento esse efectuado no requerimento através do qual arguiu de nulo aquele aresto, ainda pode ser considerado como uma suscitação «durante o processo».
É evidente que a resposta a este ponto não poderá deixar de ser negativa.
8.1. Efectivamente, a partir do momento em que foi notificado do acórdão tirado na Relação de Coimbra em 27 de Novembro de 1991
(o acórdão que não atendeu a questão prévia levantada pelo Ministério Público), sabia ele que aquele Tribunal Superior iria, seguidamente, debruçar-se sobre a questão de fundo, ou seja, sobre o mérito da causa objecto do recurso.
E, como em vigor se encontrava, como se encontra, a norma constante do nº 1 do arº 429º do Código de Processo Penal, era perfeitamente previsível que o dito Tribunal, na audiência, viesse a ser constituído pelo presidente da secção criminal, pelo relator dos autos e pelo primeiro dos juízes-adjuntos.
Assim, a efectivação da audiência pelos três juízes que constam da acta de fls. 289 e, bem assim, a subscrição do acórdão de 30 de Janeiro de 1992 por esses mesmos magistrados, nunca poderia constituir para o recorrente qualquer surpresa ou algo de inopinado.
8.2. Consequentemente, se, para o recorrente, a norma ao abrigo da qual a audiência iria ser realizada enfermava de inconstitucionalidade, cumprir-lhe-ia, antes dessa realização, suscitar uma tal questão, a fim de o Tribunal da Relação, debruçando-se sobre ela, poder tomar uma decisão a seu respeito.
Silenciando a sua postura sobre essa questão, não a colocando, pois, o recorrente ao tribunal antes de esgotado, no caso, o seu poder jurisdicional, não tinha aquele órgão de administração de justiça, atentos os seus poderes cognitivos (e isto considerando que o mesmo não tinha a norma do nº 1 do artº 429º do C.P.P. por feridente da Lei Fundamental como, aliás, transpareceu do seu acórdão de 18 de Março de 1992), o dever de sobre ela tomar uma decisão.
De onde a consideração de que o recorrente não suscitou atempadamente - o que é dizer, até ao momento adequado, isto é, «durante o processo» - uma questão de inconstitucionalidade.
E nem se diga que, de todo o modo, o recorrente suscitou tal questão ainda antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal 'a quo', por isso que o fez em requerimento em que veio arguir de nulo o acórdão de 30 de Janeiro de 1992, logo, antes de, concretamente e no presente caso, se ter esgotado tal poder.
Na realidade, como tem afirmado este Tribunal [cfr., por todos, o Acórdão nº 94/88 publicado no Diário da República, 2ª Série, de 22 de Agosto de 1988 (nessa publicação, por lapso, indica-se como número do Acórdão n.º 94/86)], o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade, já que o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitiu um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua'.
Por outro lado, e por fim, atento o que acima se disse em 8.1., não se pode dizer que a presente situação se nos depara como um daqueles casos excepcionais e anómalos em que o recorrente tivesse sido surpreendido com a circunstância de a Relação de Coimbra ter realizado a audiência com a presença do presidente da secção criminal, com o juiz relator e com o primeiro dos juízes-adjuntos, ou em que o mesmo recorrente não dispusesse, antecedentemente ao acórdão de 30 de Janeiro de 1992, de oportunidade, perante as regras ordenadoras do 'iter' processual, de levantar a questão de inconstitucionalidade.
O Ministério Público manifestou a sua inteira concordância com a exposição prévia do relator, enquanto o recorrente e o recorrido (assistente nos autos) nada disseram.
Todavia, apresentado o processo à conferência, não logrou vencimento a tese constante da citada exposição prévia, pelo que se verificou mudança de relator.
Cumpre, pois, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
4 - De acordo com o disposto no artigo
280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
O que se deva entender por questão suscitada durante o processo é matéria sobre a qual o Tribunal se tem debruçado frequentemente, afirmando logo no Acórdão nº 3/83 que 'é necessário assim que ela tenha sido debatida na pendência da causa', isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz a quo sobre a matéria - como decorria, aliás, do exposto também no Acórdão nº 2/83 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., págs. 245 e segs. e 233 e segs.).
Do estado de reflexão do Tribunal sobre esta questão dá minuciosa conta o Acórdão nº 450/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol., págs. 573 e segs.):
Tem este Tribunal entendido, em jurisprudência reiterada, que o pressuposto da invocação prévia da inconstitucionalidade 'durante o processo', exigido para a admissibilidade do recurso previsto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição [e no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional], deve ser tomado, 'não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas num 'sentido funcional', tal que 'essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão'. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que [a mesma questão de inconstitucionalidade] respeita'. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional - o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de inconstitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitui um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', há-de ainda entender-se - como tem este Tribunal entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade [neste sentido podem ver-se, designadamente, os Acórdãos nºs. 62/85 (Diário da República, 2ª série, de 31 de Maio de 1985) e 90/85 (Diário da República, 2ª série, de 11 de Julho de 1985) e, depois, v. g., os Acórdãos nºs. 100/85 (Diário da República,
2ª série, de 11 de Julho de 1985), 147/85 (Diário da República, 2ª série, de de 18 de Dezembro de 1985), 44/86 (Diário da República, 2ª série, de 16 de Maio de 1986) e 349/86 (Diário da República, 2ª série, de 20 de Março de 1987)].
Só não será assim quando justamente o poder jurisdicional se não haja esgotado na sentença [como acontecia nas situações considerads nos Acórdãos nºs. 3/83 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Janeiro de 1984) e
206/86 (Diário da República, 2ª série, de 23 de Outubro de 1986)]; ou então nalguma situação de todo excepcional em que o interessado 'não disponha da oportunidade processual para levantar a questão (de inconstitucionalidade) antes de proferida a decisão' [como se ressalvou no Acórdão nº 90/85, e veio a admitir-se, concretamente, no Acórdão nº 136/85 (Diário da República, 2ª série, de 28 de Janeiro de 1986)].
5 - Quer isto dizer que sempre que a questão de inconstitucionalidade tiver sido suscitada perante o tribunal a quo em momento e por forma tais que ele a pudesse ainda resolver - o que, o mesmo é dizer, ele a devesse decidir, sob pena de ocorrer em omissão de pronúncia - se há-de concluir que ela foi suscitada durante o processo.
Habitualmente, daqui decorre que a questão de inconstitucionalidade tem de ser levantada antes da prolação da sentença, já que, em princípio, nesse momento se esgota o poder jurisdicional do juiz; isto é, a reclamação por nulidades, na quase totalidade dos casos, 'não é meio processual idóneo nem tempestivo para suscitar a questão da constitucionalidade de normas jurídicas, em ordem à utilização subsequente do recurso previsto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição' (Acórdão nº
206/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º vol., tomo II, pág. 980). Contudo, diferentemente acontece quando da invocada inconstitucionalidade possa resultar uma questão jurídica relativamente à qual se não tivesse ainda esgotado o poder jurisdicional do juiz a quo.
É o que acontece no caso da incompetência absoluta, face ao disposto no artigo 102º, nº 1, do Código de Processo Civil, como se reconheceu no já referido Acórdão nº 3/83. E é o que acontece quando a norma tida por inconstitucional seja de natureza processual e da sua aplicação se procure extrair a ocorrência de uma nulidade.
A este propósito escreveu-se no já citado Acórdão nº 206/86, depois de se ter mencionado que, em princípio, se não podia suscitar a questão de inconstitucionalidade na reclamação por nulidades:
No caso, porém, não cabe aplicar tal doutrina. É que - como nos acórdãos referidos tem sido salientado - ela pressupõe uma questão de constitucionalidade sobre a qual o tribunal a quo devesse já ter-se pronunciado na decisão final, de tal modo que o seu poder de jurisdição, quanto a ela, se terá esgotado entretanto; mas justamente não exclui a possibilidade de na reclamação vir arguir-se a constitucionalidade de normas relevantes para a decisão de questões sujeitas ainda ao poder de jurisdição do tribunal (como serão as questões processuais autonomamente postas em tal reclamação), hipótese em que estará ainda aberto, subsequentemente, o recurso para o Tribunal Constitucional. Nesta hipótese, com efeito, já deverá dizer-se que a inconstitucionalidade foi 'suscitada durante o processo' [...].
E, no mesmo sentido, adiantou-se no Acórdão nº 176/88 (ainda inédito), depois retomado no Acórdão nº 270/92 (Diário da República, 2ª série, de 23 de Novembro de 1992):
[...]Ora, como o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e como a eventual aplicação duma norma reputada inconstitucional não é, de si mesma, fundamento de nulidade da decisão, susceptível de ser invocada nos termos e para os efeitos do art. 668º, nº 3, primeira parte, do Cód. Proc. Civil (traduzindo-se antes, se a norma for efectivamente contrária à Constituição, num simples 'erro de julgamento') - como
é assim, segue-se necessariamente a apontada consequência de, em princípio, já não poder ter-se por atempada a invocação da inconstitucionalidade em reclamação duma decisão 'final'.
Mas é claro que da doutrina exposta já decorre que, quando a questão de constitucionalidade se conexione com uma outra relativamente à qual, ao contrário do que é regra geral, o poder de jurisdição do tribunal a quo se não haja esgotado com a anterior decisão, e de tal forma que esse tribunal ainda possa reexaminar, por via de reclamação, essa outra questão, então estará o interessado ainda a tempo de, nessa reclamação, invocar a inconstitucionalidade - designadamente para o efeito de 'abrir' a possibilidade de recurso prevista no art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Assim, precisamente, já o julgou este Tribunal no seu Acórdão nº 3/83, em Acórdãos,1º vol., p. 245 (numa espécie em que estava em causa a incompetência absoluta do tribunal de cuja decisão se pretendia recorrer: cfr. art. 102º, nº 1, do Cód. Proc. Civil), bem como no Acórdão nº
206/86, no DR, II, 23.10.86 (respeitante a hipótese em que na reclamação se suscitara uma questão processual nova, i. é, não abrangida na decisão anterior).
Ora, o que temos no caso vertente é uma situação deste outro tipo
(e, de resto, com um recorte similar à da primeira das espécies acabadas da referir). Ou seja: uma situação em que a questão de inconstitucionalidade se insere numa questão processual (sendo relevante para a respectiva decisão) com referência à qual - [...] - o poder de jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça não se esgotara com a prolação do seu primeiro Acórdão. Consequentemente, ainda era possível invocar tal inconstitucionalidade em reclamação deste aresto. [E era-o porque - [...] - nessa invocação não está a reconduzir-se a inconstitucionalidade a uma pretensa 'nulidade da decisão', mas sim a fundamentar nela uma 'nulidade de processo', de que o Tribunal a quo ainda podia (excepcionalmente, é certo) conhecer].
6 - No caso vertente, ocorre uma situação em tudo idêntica, do ponto de vista jurídico: o que se contesta é a constitucionalidade da norma respeitante à composição do tribunal; a ter êxito tal impugnação da constitucionalidade da norma, o tribunal teria funcionado com um juiz a menos; desta situação, por seu turno, decorreria a existência de uma nulidade processual insanável, ainda invocável, pois, no momento em que o recorrente a invocou.
Assim sendo, o tribunal a quo podia - e devia - ter conhecido - como, aliás, conheceu - da questão de inconstitucionalidade que lhe foi colocada pelo ora recorrente. E daí decorre que tal questão foi suscitada na pendência da causa, ou seja, durante o processo.
Verifica-se, pois, o questionado pressuposto do recurso para o Tribunal Constitucional, consistente em a questão de inconstitucionalidade da norma aplicada pelo tribunal a quo ter sido suscitada durante o processo.
III - DECISÃO
7 - Nestes termos, decide-se ordenar o prosseguimento dos autos.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1993
Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Mário de Brito
Bravo Serra (vencido, de harmonia com a declaração de voto junta). José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido no tocante à questão prévia de não conhecimento do objecto do recurso e que suscitei na exposição efectuada ao abrigo do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, exposição essa com a qual o recorrente se conformou, visto à mesma não ter respondido, e à qual o Ministério Público expressamente deu a sua adesão.
Na verdade, continuo a entender que o recorrente, podendo fazê-lo, visto ter tido oportunidade processual para tanto, não suscitou, antes do momento em que o Tribunal a quo aplicou a norma constante do artº 429º, nº 1, do vigente Código de Processo Penal - e que, indubitavelmente, o mesmo recorrente sabia que iria ser aplicada - a respectiva inconstitucionalidade, não sendo, assim, surpreendido, por qualquer forma, por uma inopinada aplicação daquele preceito ou, sequer, por uma sua interpretação que fosse feita de molde estranho ou até ousado face ao modo como deve ser efectuada a interpretação das normas jurídicas.
Neste particular, aqui reitero as considerações efectuadas nos pontos 1. a 8.1., inclusivé, da aludida exposição.
É certo que a tese que fez vencimento no acórdão ao qual a presente declaração se encontra anexa, de um ponto de vista estritamente formal, não pode ser veementemente censurada. Na verdade, na leitura que faço daquela tese, se uma nulidade insanável 'deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento' (artº 119º, nº 1 do C.P.P), e se a nulidade, no caso, resultasse da aplicação da norma constante do artº 429º, nº 1, do mesmo diploma e, já que, na hipótese de estar esta norma eivada de inconstitucionalidade, tal aplicação necessariamente que se repercutiria na constituição do tribunal da Relação por três juízes, em audiência, então o mencionado tribunal ainda estava em tempo de apreciar esta 'violação ou inobservância da lei do processo penal', motivo pelo qual, tocantemente a tal matéria, ainda não estava esgotado o seu poder jurisdicional. E, se o não estava - ou seja, se ainda era possível à Relação poder debruçar- -se sobre a matéria - , então, porque a suscitação feita pelo recorrente ocorreu antes do momento em que ainda era possível aquele debruçar, é de considerar essa suscitação atempada.
Não nego que haja invalidade de um acto processual praticado com respeito e observância de disposições de leis de processo, quando essas disposições, todavia, forem conflituantes com a Constituição.
Simplesmente, o que para mim não é líquido é que se possa daí extrair, sem mais, que a prática desse acto, que totalmente observou as leis de processo, represente uma nulidade processual do ponto de vista da sua conceptualização teórica e dogmática. É que, se a norma ao abrigo da qual o acto foi praticado é desrespeitadora da Lei Fundamental, é óbvio que à mesma não deve ser dada obediência. Ora, se um acto for realizado por respeito a essa norma, uma vez alcançada a inconstitucionalidade desta, tal acto deverá deixar de produzir os seus efeitos.
Contudo, sobram-me dúvidas sobre se esta não produção de efeitos pode, verdadeiramente, ser considerada, ao menos em todos os casos, como uma nulidade processual, tal como deve ser delineada esta figura do ponto de vista doutrinário e conceptual.
Se o não puder ser, então naqueles casos em que - não obstante haver invalidade do acto baseada na circunstância de a norma à sombra da qual ele foi realizado padecer de inconstitucionalidade - não ocorra, realmente, uma nulidade (de harmonia com a concepção doutrinária que a esta figura deve ser conferida), não se pode dizer que seja possível reconduzir a suscitação, por um interessado, da questão da invalidade do acto, a uma questão de arguição de nulidade. E identicamente, não se pode dizer que impenda nesses mesmos casos sobre o tribunal o dever de, oficiosamente, declarar inválido o acto processual que praticou, bem como os que dele dependeram ou que por ele foram afectados. Antes, o que cumprirá ao tribunal é, pela obrigação que tem de não aplicar normas ou princípios que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados, não praticar aquele acto que é imposto por um comando processual feridente da Lei Básica.
A ser assim, efectivamente, na minha perspectiva, nas citadas hipóteses, é a não prática pelo tribunal do acto determinado processualmente que
poderá, conceptualmente, integrar a nulidade. Só que, como a abstenção da realização do acto se deve à recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma processual impositora dessa realização, será, por via disso, que se não devem tirar quaisquer efeitos da «pretensa» nulidade cometida.
Na senda deste raciocínio e revertendo ao caso concreto, porque é indubitável face à clareza da norma ínsita no artº 429º, nº 1, do C.P.P., que o recorrente sabia que o Tribunal da Relação de Coimbra, ao decidir sobre a questão jurídico-criminal de fundo, iria, na audiência, ser composto por três juízes - o que o mesmo é dizer que sabia, seguramente, que o aludido Tribunal iria dar observância a tal disposição da lei de processo penal e, assim, não cometer aquilo que, nos termos do artº 118 do mesmo corpo de leis, é considerado como uma nulidade - caso reputasse aquele artº 429º, nº 1, de inconstitucional, cumprir-lhe-ia colocar essa questão ao mencionado órgão de administração de justiça, a fim de ele ponderar se tal artigo era conflituante com a Constituição e, caso concluísse pela afirmativa, não respeitar o ali estatuído, assim praticando, em abstracto (ou teoricamente), a nulidade processual, só que não extraindo dessa prática as consequências consignadas no artº 122º do referido diploma.
Nesta postura, o colocar da questão pelo interessado não se reconduziria (e, no meu entender, isso nunca seria possível) a uma questão da suscitação de nulidade.
Se o interessado silenciasse esta questão, esperando pela prática, pelo tribunal, do acto totalmente observador das disposições da lei de processo, para depois, pretextando arguir uma nulidade, vir colocar o problema, parece-me que não deveria esse tribunal dela tomar conhecimento.
Perante esta posição, que assumo, a «pretensa» arguição de nulidade, ocorrida no momento em que, no presente caso, ocorreu, não deveria ser perspectivada como tendo relevância para efeitos de se considerar como se postando aqui o levantamento atempado da questão de inconstitucionalidade. É que, na situação dos autos, a meu ver, não havia uma verdadeira arguição de nulidade - por isso que não foi, pelo Tribunal da Relação, praticado qualquer acto violador ou inobservante de disposição da lei de processo penal (e nem isso alguma vez foi referido pelo recorrente) - e, logo por aí, não se pode dizer que ainda estivesse «aberto» o poder cognitivo daquele Tribunal.