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Processo n.º 18/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
(Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira)
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 25 de novembro de 2010.
2. O recorrido foi condenado, em primeira instância, pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punível no artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de suspensão da execução da pena de prisão. Recorreu então para o Tribunal da Relação de Lisboa, que acordou em absolver o arguido, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por outra que o absolve.
3. As assistentes recorreram deste acórdão absolutório da relação para o Supremo Tribunal de Justiça. Por decisão sumária do relator, o recurso foi rejeitado por inadmissibilidade legal, por ser materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal (CPP), na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.
A questão prévia da recorribilidade do acórdão absolutório foi apreciada e decidida da seguinte forma:
«Em matéria de recorribilidade no processo penal rege o princípio geral que se encontra enunciado no art.º 399.º do código respetivo, onde se diz que “é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.”
Os casos em que as decisões judiciais não são recorríveis estão essencialmente tipificados no art.º 400.º do CPP e, por vezes, em normas avulsas, devendo interpretar-se, tanto uma como as outras, como leis de exceção, valendo, na dúvida, a regra geral.
A decisão recorrida é um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª Instância que condenara o arguido em pena de prisão suspensa na sua execução.
Será recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça?
A decisão recorrida é urna decisão final que conheceu do mérito e que não confirmou a condenação da 1ª instância e, por isso, a recorribilidade não está excluída pelas alíneas c) e d) do art.º 400.º do CPP07, a primeira a considerar irrecorríveis os acórdãos da relação que não conheçam, a final, do objeto do processo, a segunda a determinar a irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância.
Também não foi aplicada qualquer pena e, por isso, a situação não cabe nos casos de irrecorribilidade das alíneas e) e f) da mesma norma.
Assim, a decisão não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade.
Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, como faz o M.º P.º na Relação e no STJ, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade.
Mas, vejamos o que se diz com tal tipo de argumentos.
Se o sistema de recursos para o STJ já pecava por ser defeituoso antes da reforma de 2007, depois dela vieram a surgir muitas outras dúvidas, de natureza diferente, que terão resultado de alterações legislativas de última hora introduzidas no projeto inicial de revisão do CPP e que lhe desvirtuaram a linha orientadora.
Parecem existir duas claras linhas de força nas regras que constam das diversas alíneas da atual redação do art.º 400.º do CPP, quando conjugadas com os art.ºs 427.º e 432º.
Uma, a do primado da dupla conforme, pelo que, quando duas instâncias estão de acordo quanto à questão de mérito, só se permite uma tripla apreciação em sede de recurso ordinário em casos considerados de grande gravidade. Outra, a de que ao STJ, como última instância de recurso, só cabem os tais casos considerados de grande gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, dada a sua natureza de tribunal de revista, com função essencialmente uniformizadora da jurisprudência.
Assim, no que respeita ao princípio da dupla conforme, verifica-se que não há recurso para o STJ se a Relação confirmar uma absolvição da 1ª instância ou uma pena que aí tenha sido aplicada até 8 anos de prisão (art.º 400.º, n.º 1, als. d e f , do CPP). E quanto ao princípio de que ao STJ só chegam, pela via do recurso, os casos considerados de maior gravidade, veja-se a norma que não permite o recurso se a Relação condenar o arguido em pena não privativa da liberdade, qualquer que tenha sido a decisão da 1ª instância (absolvição, condenação em multa ou em prisão, etc.) e atente-se na norma que não permite o recurso direto para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos (art.º 432.º, n.º 1, al. c).
Mas estas linhas orientadoras não surgem corno absolutas, pois sofrem de duas ou três exceções, cuja compreensibilidade não é evidente.
Com efeito, é admitida uma tripla apreciação em sede de recurso nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, condena o arguido em pena privativa da liberdade, ainda que fixada no mínimo de 30 dias de prisão (art.º 400º, n.º 1, al. e, “a contrario”). A gravidade do caso, aqui, não resulta da duração da pena, como noutras alíneas da mesma norma, mas da circunstância do arguido ter o direito de ver reapreciada a sua situação após a sua primeira condenação em pena privativa da liberdade.
Mas já não é permitido o recurso ao arguido, por força da mesma alínea e), no caso em que a Relação, em desconformidade com a 1ª instância, que até pode ter tido uma sentença absolutória, o vir a condenar em pena não privativa da liberdade. Aqui, apesar de não haver dupla conforme, o legislador terá entendido que a aplicação de uma mera pena de multa ou de outra não privativa da liberdade por um tribunal superior não tinha dignidade para seguir para a última instância de recurso.
Por fim, ainda como exceção ao princípio de que ao STJ só chegam os casos mais graves, aferidos pela dimensão da pena aplicada, há a situação presente, em que parece permitir-se o recurso para o STJ, como já vimos, nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª Instância, absolve o arguido do crime, qualquer que tenha sido a pena aplicada na 1ª instância, mesmo que não privativa da liberdade.
Esta última situação não parece enquadrar-se no restante esquema legal. Efetivamente, é pouco compreensível que o STJ não possa reapreciar em sede de recurso ordinário um caso em que a Relação confirmou uma condenação numa pena pesada de 8 anos de prisão, mas já o possa fazer se, como é o caso dos autos, o arguido foi condenado na 1ª instância em pena não privativa da liberdade e depois absolvido pela Relação.
Contudo, não parece que devamos seguir por esta via, pois aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República.
Para além de que a regra geral é a da recorribilidade.
Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação.
*
Já vimos que a simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:
- não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1 , al. e, do CPP);
- é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na lª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400º, este “a contrario”).
Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.
A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade.
Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
É indiscutível, portanto, que o direito ao recurso faz parte do núcleo fundamental dos direitos de defesa.
Sobre esta questão há jurisprudência firme do Tribunal Constitucional desde há muitos anos.
(…)
Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer ato do juiz admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do princípio da defesa, mas, já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24- 01-2006, 530/07 de 29-10-2007).
Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade.
Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.
Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).
Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.
É certo que o Processo Penal não é um processo de partes. Mas o direito de defesa, constitucionalmente protegido, exige a igualdade de armas, pelo menos após o encerramento do inquérito.
«O principio da igualdade de armas, em processo penal de um Estado de Direito, está ao serviço do arguido, visando garantir que ele não seja colocado em inferioridade no processo (...). O direito ao recurso, enquanto dimensão essencial do princípio de defesa não pode ser visto como uma garantia do assistente mas tão só do arguido» (Ac. do TC de 27-10-1992. proc. 277/91).
A “igualdade de armas” no processo prende-se também com o princípio constitucional da igualdade.
«O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição exige a dação de tratamento igual aquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efetivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias” (Ac. do TC de 01 -03-1994, proc. 504/92).
Ora, o tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!
Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.
Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal.
Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objeção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP)».
4. O Ministério Público reclamou desta decisão para a conferência, nos termos do artigo 417.º, n.ºs 6 e 8, do Código de Processo Penal (CPP), entendendo que “a decisão em causa não é recorrível para o STJ, por via da interpretação das normas legais em causa”, devendo o recurso ser rejeitado por esta razão e “não em função de uma inconstitucionalidade, a qual não existe (…) dentro de uma interpretação sistémica do regime de recursos”.
Pelo acórdão agora recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação do Ministério Público, com a seguinte fundamentação:
«O Ministério Público entende, na esteira de alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que não há recurso ordinário para este Tribunal de acórdão do Tribunal da Relação que conheça de recurso interposto de decisão - seja do tribunal singular, coletivo ou do júri - que aplique pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, pois assim ir-se-ia contrariar «de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432º, n.º 1, alínea c) do CPP. A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intrasistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido».
Não nos vamos alongar sobre este tema, pois a decisão sumária sob reclamação já contém suficiente resposta.
Recordemos, no entanto, que a referida jurisprudência refere que houve uma clara intenção do legislador da Lei nº 48/2007, de 29.08 de restringir os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade (esta conotada, por via da técnica usada para aferir da admissibilidade do recurso, com a espécie e medida da pena aplicada) e de que constituem manifestações bem paradigmáticas as limitações decorrentes:
a) tratando-se de recurso direto para o S.T.J., do preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 432º do C.P.P.
b) estando em causa decisões proferidas pelas relações, em recurso, do estatuído na al. f) do nº 1 do art. 400º do mesmo diploma legal.
Todavia, se, na verdade, como vem referido na decisão sumária, uma das linhas de força que orientou o legislador da reforma de 2007 na configuração normativa dos casos de recorribilidade para o STJ é a de que a este tribunal, como última instância de recurso, só devem caber os casos considerados de maior gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, o que é certo que tal não foi configurado como regra absoluta, impossível de ultrapassar, pois o próprio legislador logo admitiu pelo menos uma exceção, a que vem configurada no art.º 400.º, n.º 1, al. e), “a contrario”. Com efeito, através desta norma, o legislador quis fazer intervir o STJ numa terceira apreciação de recurso, nos casos em que a relação, julgando em recurso, aplique pena de prisão que não confirme a decisão da 1ª instância, ainda que a mesma seja fixada no mínimo de 30 dias. Bem longe, portanto, dos tais 5 anos de prisão que a referida jurisprudência considera como a pena a partir da qual se pode colocar o caso ao mais alto Tribunal.
Assim, se o próprio legislador abriu exceção à “regra”, não faz sentido erigir agora a «regra» como barreira inultrapassável, cuja violação constituiria uma «contradição intrínseca» do sistema.
Por outro lado, a regra geral não é a de que ao STJ só se apresentam os casos de maior gravidade, mas a de que todas as decisões são recorríveis se nada tiver sido disposto em contrário (art.º 399.º), pelo que não parece pertencer à melhor técnica jurídica a interpretação restritiva de certa norma ou de certo conjunto de normas, como faz agora o M.º P.º, visando demonstrar que não é admissível o recurso de determinada decisão. A interpretação restritiva não pode servir para aumentar o número de exceções à regra e sim para as diminuir, pelo que só deverá ser usada para confirmar que certa decisão é recorrível, não para lhe negar recorribilidade.
Pensa-se, de resto, que na jurisprudência que pretende, tal como o ora reclamante, que tem de haver uma redução teleológica da norma do artigo 400º, n.º 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base do artigo 432º, n.º 1, alínea c) do CPP, é feita uma transposição desta última norma para um sentido que a mesma não autoriza. Aí o que se proíbe é o recurso direto para o STJ de decisões condenatórias que tenham aplicado pena de prisão até 5 anos, não o recurso para o STJ de decisões da relação, proferidas em recurso, que apliquem essas penas em desconformidade com a 1ª instância.
Por isso, confirma-se a decisão sumária na parte em que decidiu que a interpretação dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite a recorribilidade do acórdão da relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido, anteriormente condenado em 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.
E nada há a acrescentar nem a alterar sobre a inconstitucionalidade a que alude o relator na mesma decisão sumária, pois o ora reclamante, embora afirme que a mesma não se verifica, não refere minimamente as razões dessa discordância».
5. O presente recurso foi interposto desta decisão, para apreciação dos artigos 399.º e 400.º do CPP, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretados «no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo MP ou pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade».
6. Notificado para alegar, o Ministério Público concluiu o seguinte:
«1º
Uma vez assente que o núcleo essencial dos direitos de defesa do arguido fica ressalvado com o duplo grau de jurisdição, e que não viola a Constituição o facto do arguido, no caso das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP (versão da Lei n.º 48/2007), não dispor de um terceiro grau de recurso -mesmo no caso de ter sido absolvido na 1ª instância e condenado pelo Tribunal da Relação, no seguimento do recurso interposto pelo Ministério Público -, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do CPP, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa de liberdade, poderá afrontar o princípio da igualdade de armas e o núcleo fundamental do direito de defesa do arguido.
2º
Pelo que, pode revelar-se materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
3º
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso”».
7. Notificado, o recorrido não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Considerando que o recurso do acórdão absolutório da relação foi interposto somente pelas assistentes, é de concluir que o presente recurso tem como objeto os artigos 399.º e 400.º do CPP, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade.
As disposições legais a que se reporta a norma têm a seguinte redação:
«Artigo 399.º
Princípio geral
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à material penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil».
2. O Supremo Tribunal de Justiça decidiu que é irrecorrível o acórdão absolutório proferido, em recurso, pelas relações, que revogue decisão condenatória de 1.ª instância em pena não privativa da liberdade. Para assim decidir recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação daqueles artigos do CPP, interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade. De acordo com a decisão recorrida, esta norma viola o princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio (artigo 13.º, n.º 1, da CRP), e uma das garantias de defesa do arguido – a garantia de defesa através do recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP).
O juízo de inconstitucionalidade assenta nas seguintes linhas argumentativas: não estando o acórdão absolutório proferido, em recurso, pela relação, que revogue decisão condenatória de 1.ª instância em pena não privativa da liberdade, abrangido por qualquer alínea do n.º 1 do artigo 400.º, vale a regra geral da recorribilidade que está consagrada no artigo 399.º; o acórdão condenatório em pena não privativa da liberdade proferido, em recurso, pela relação, que revogue decisão absolutória da 1.ª instância já é irrecorrível, por força do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, o que redunda num tratamento legislativo diferente onde é manifesta a semelhança das situações; ainda que a CRP não imponha um duplo grau de recurso, não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa que ao arguido esteja vedado o direito de recorrer daquele acórdão condenatório, quando o Ministério Público e o assistente podem recorrer daquele acórdão absolutório, o que cria uma desigualdade de armas; o tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade, simetricamente opostos, que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, havendo ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.
Desta forma, a decisão recorrida distancia-se do entendimento jurisprudencial no sentido de a irrecorribilidade daquele acórdão absolutório ser imposta por interpretação do direito ordinário (cf. voto de vencido aposto ao acórdão recorrido e, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3-9-2008 [08P1883], de 7-7-2009 [2554/04.3TBACB.C1.S1] e de 6-7-2011 [1209/09.7TDPRT.P1.S1]. Contra este entendimento, relativamente a acórdãos condenatórios da relação que, divergindo do decidido em 1.ª instância, apliquem pena de prisão não superior a cinco anos, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, “Irrecorribilidade para o STJ: redução teleológica permitida ou analogia proibida? Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de fevereiro de 2009”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2010, p. 632 e ss.).
2.1. Ainda que perspetivado enquanto exigência do direito de defesa do arguido, o tribunal recorrido não deixa de convocar o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Trata-se, porém, de um princípio que, como vem sendo assinalado pela jurisprudência constitucional, “perde a nitidez, no próprio direito ordinário, por o modelo de processo penal não assumir (…) uma estrutura acusatória pura, num sentido formal”, de harmonia com as funções que são constitucionalmente cometidas ao Ministério Público no n.º 1 do artigo 219.º e com o estatuto que a CRP reconhece a esta magistratura no n.º 2 do mesmo artigo (cf. Fernanda Palma, “Direito penal e processual penal e Estado constitucional” La Constitución Española en el Contexto Constitucional Europeo, Madrid, 2003, p. 1742, nota 13. Na jurisprudência constitucional, entre outros, Acórdãos n.ºs 356/91, 132/92 e 160/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
E a nitidez perde-se, de forma particular, em matéria de recursos, na medida em que, de acordo com os artigos 53.º, n.º 2, alínea d), e 401.º, n.º 1, alínea a), do CPP, compete ao Ministério Público interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa, entendendo-se, até, que o artigo 32.º, n.º 1, da CRP é invocável, relativamente a recurso do Ministério Público, quando seja interposto no exclusivo interesse da defesa (assim, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 530/2001 e 160/2010, disponíveis no mesmo sítio). O que significa, também, que o acórdão condenatório em pena não privativa da liberdade proferido, em recurso, pela relação, que revogue decisão absolutória da 1.ª instância, é irrecorrível quer para o arguido quer para o Ministério Público quando o queira interpor no exclusivo interesse da defesa (artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP). Bem como, saliente-se, quando o queira interpor em prejuízo do arguido, pedindo a modificação, na sua espécie ou medida, da sanção constante da decisão recorrida.
Nos presentes autos a nitidez do princípio da igualdade de armas perde-se ainda mais, uma vez que a norma do caso não contrapõe ao arguido o Ministério Público, mas sim o assistente que, não obstante ter o estatuto de sujeito processual, tem a posição de colaborador do Ministério Público a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo, ressalvadas as exceções previstas na lei (artigo 69.º, n.º 1, do CPP).
2.2. De acordo com a decisão recorrida, a norma cuja aplicação foi recusada viola o direito de defesa através do recurso, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 1, onde se estatui que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
Embora aceite, na esteira da jurisprudência constitucional, que a CRP não impõe o duplo grau de recurso, na medida em que o núcleo essencial do direito de defesa do arguido é assegurado pelo duplo grau de jurisdição, o Supremo Tribunal de Justiça conclui pela inconstitucionalidade, por não ser tolerável, do ponto de vista dos direitos de defesa, que em “caso simetricamente oposto” o Ministério Público e o assistente já possam desencadear, através da interposição de recurso, o terceiro grau de jurisdição. Isto é: não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão da relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade e que, assim, revogou a absolvição da 1.ª instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP; mas já é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão da relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade (artigos 399.º e 400.º, este a contrario). Mas se assim é, o parâmetro que deve aferir da conformidade constitucional da norma cuja aplicação foi recusada é o princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio (artigo 13.º, n.º 1).
3. Muito embora não seja constitucionalmente exigível um triplo grau de jurisdição, o legislador não poderá eximir-se de respeitar o princípio constitucional da igualdade quando preveja o acesso ao segundo grau de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça. Em geral, a jurisprudência constitucional vem dando relevância ao princípio de igualdade processual, “perspetivado como simples reflexo, no domínio do processo, da proibição do arbítrio legislativo, vigente em todo o ordenamento jurídico, implicando a inadmissibilidade do estabelecimento de regimes adjetivos especiais, carecidos de fundamento razoável, de justificação objetiva e racional” (na conclusão Lopes do Rego, “O Direito fundamental do acesso aos Tribunais e a reforma do Processo Civil”, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, p. 745 e ss.).
3.1. O Tribunal já julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, norma sobre a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos das relações sobre controlo da legalidade dos atos das associações sindicais (artigo 47.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 215-B/75, de 30 de abril), face à regra geral da lei processual civil de acordo com a qual as decisões respeitantes a questões de legalidade dos estatutos das associações, do tipo dos que estavam em causa, são recorríveis até ao Supremo Tribunal de Justiça (Acórdãos n.ºs 68/85 e 359/86, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Lê-se no primeiro acórdão o seguinte:
«O recurso para o STJ é uma garantia suplementar de defesa judicial. Poder dispor dela é, a todas as luzes, um bem valioso. Mesmo que se admita que o «programa normativo» do direito de acesso aos tribunais, garantido no artigo 20º da CRP, não integra necessariamente o acesso ao STJ — e que, portanto, não é constitucionalmente obrigatória a existência de recurso para ele —, há de considerar-se que, ao regular o acesso ao STJ, a lei não pode eximir-se ao respeito pelo princípio constitucional da igualdade.
Tal princípio consiste fundamentalmente em tratar de igual forma aquilo que é idêntico e tratar desigualmente o que é distinto. Saber se duas situações são ou não idênticas depende naturalmente do ponto de vista: o que é igual de uma certa perspetiva, pode ser essencialmente distinto visto de outra, ou seja, tomados em conta outros critérios. Por isso, a perspetiva a adotar para efeitos de aferição do princípio da igualdade tem de ser adequada à finalidade a que se destina o confronto; o critério de igualdade-desigualdade escolhido tem de ser significativo sob o ponto de vista da questão em causa, não podendo ser um critério arbitrário, sem qualquer ligação direta com ela.
O princípio da igualdade é uma regra fundamental de disciplina das relações entre o poder público (a começar no poder legislativo) e os cidadãos, no que respeita à atribuição de direitos ou vantagens e à imposição de deveres ou sacrifícios. Por aquele princípio, quem se encontre em situação igual deve beneficiar de iguais direitos e vantagens e deve estar sujeito aos mesmos deveres e sacrifícios. Se na atribuição de um direito ou vantagem são contemplados apenas alguns dos que, de acordo com o princípio da igualdade, deveriam gozar dele, então existe um privilégio ilegítimo; se são contemplados todos menos alguns, então existe uma discriminação ilegítima. O mesmo se diga, invertendo os dados do problema, para o caso da imposição de deveres ou sacrifícios.
O regime do direito de recurso para o STJ também deve respeitar o princípio da igualdade? Sem dúvida! A vantagem que é dispor dele deve ser igualmente atribuída. Sem dificuldade se concede — já acima se disse — que nem todas as decisões tenham de admitir recurso para aquele tribunal supremo da hierarquia dos tribunais judiciais, podendo a lei fechar mais ou menos o acesso, desde que com base em critérios objetivos que sejam relevantes para o efeito (designadamente a importância das causas, a natureza das questões, etc.). Existirá aqui, porventura, uma margem de discricionariedade legislativa relativamente ampla.
O que a lei já não poderá fazer é admitir o recurso em toda uma categoria de casos e depois excluí-lo apenas em relação a um setor dessa categoria, sem que nenhuma justificação objetiva se verifique para tal discriminação».
3.2. Mas não julgou inconstitucional, também por referência ao princípio da igualdade, a norma do artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo Penal de 1929, interpretada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de maio de 1987, na parte em que dispõe não haver recurso dos acórdãos absolutórios das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correcional (por parte do assistente e do Ministério Público, sendo certo que tal não era vedado ao arguido relativamente a acórdãos condenatórios).
É particularmente elucidativa daquele julgamento de inconstitucionalidade a passagem que, de seguida, se transcreve do Acórdão n.º 132/92:
«(…) este Tribunal considera que, independentemente da natureza de «parte» ou de «sujeito» que se queira atribuir ao arguido e ao assistente em processo penal, a nossa Constituição não consagra, não quis consagrar, quanto a eles, um princípio de igualdade em matéria do direito ao recurso.
Ou seja: o princípio da igualdade de armas é um princípio que opera essencialmente no âmbito do direito de defesa, no âmbito da preocupação de não colocar o arguido em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação com vista à formação da convicção do tribunal.
E qualquer dúvida que possa subsistir nesta matéria logo se dissipará se tomarmos em consideração o direito constitucional comparado, e mais propriamente o do sistema jurídico onde o processo penal mais aparece configurado como um «processo de partes», o sistema constitucional-penal dos Estados Unidos da América.
Pois bem: aí onde o processo penal mais está orientado pelo princípio do dispositivo, aí onde o processo penal mais se configura como um «processo de partes», caracterizando-se pela plea bargaining, aí justamente também nunca se admitiu um direito igual ao recurso entre a acusação e a defesa. O princípio da proibição da double jeopardy, duplo risco, impede em absoluto que o arguido, depois de absolvido em primeira instância, possa ser novamente julgado num tribunal superior, por via de recurso. Eis o que dizem perentoriamente a este respeito os comentadores da obra The Constitution of the United States of America. Analysis and Interpretation (ed. J. H. Killian e L. E. Beck, U. S. Government Printing Office, Washington, 1987, p. 1231):
Que um arguido não pode ser novamente julgado após uma absolvição [acquittal] é «a regra mais fundamental na história da teoria [jurisprudence] do duplo risco». «A lei liga particular significado a uma absolvição. Permitir um segundo julgamento após uma absolvição, por errada que a absolvição possa ter sido, representaria um risco inaceitavelmente elevado de que o Governo, com os seus recursos vastamente superiores, pudesse vencer a resistência do arguido, de modo que, ‘mesmo apesar de inocente, ele pudesse ser considerado culpado’». Ao passo que em outras áreas da doutrina do duplo risco é dada consideração ao interesse público em se poder chegar, para fins de segurança pública, a uma conclusão do julgamento criminal isenta de erros, tal equilíbrio de interesses não é permitido em relação a absolvições, «não importando quanto erróneas», não importando sequer que elas fossem «extraordinariamente erróneas».
Sendo final a absolvição, não há recurso [appeal] governamental constitucionalmente possível de tal julgamento (…)
Conclui-se, pois, que o princípio da igualdade de armas não é um princípio absoluto em processo penal, e, portanto, só tem de ser aplicado, em toda a sua plenitude, para nivelar a posição dos sujeitos, processuais dentro do âmbito do direito de defesa, e em favor da mesma defesa.
Isto, sem prejuízo de se constatar que os ventos da moderna política criminal vão hoje no sentido de conceder uma particular atenção à tutela dos direitos da vítima, que ainda mais parece justificar-se em casos como o que se discute nos presentes autos. Lembremos a este propósito a Convenção Europeia relativa à reparação das vítimas de infrações violentas, aberta à assinatura em 24 de novembro de 1983, em que os Estados-Partes se obrigam a adequar a legislação e prática administrativa à efetivação de tal reparação; a Recomendação R(85)11 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que faz várias sugestões sobre a posição da vítima no quadro do direito e processo penal, com vista a responder às necessidades e interesses desta [v. pormenores em G. Casaroli, «Un altro paso europeo in favore della vitima del reatto», Riv. It. Dir. Proc. Penale, XXX, 623-635, 1987; e a Recomendação R(87)21, do mesmo Comité, sobre assistência às vítimas e prevenção da vitimização].
Mas em lado nenhum se ousa postular a necessidade de, em defesa da vítima, se lhe atribuir uma posição exatamente igual à do arguido em matéria de recursos penais».
3.3. Quanto a um aspeto específico do regime de recursos em processo penal, o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 431.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar, na medida em que consagra um prazo de 5 dias (prazo inferior ao do processo penal comum) para apresentar as alegações do recurso interposto em ata, também por violação do disposto no artigo 13.º da CRP (Acórdão n.º 13/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
4. O que importa apreciar e decidir nos presentes autos é, então, a questão de saber se os artigos 399.º e 400.º do CPP, interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, violam ou não o princípio segundo o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei (artigo 13.º, n.º 1, da CRP), o que postula o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais.
A jurisprudencial constitucional sobre o princípio da igualdade é abundante e tendencialmente uniforme, tendo raízes significativas na jurisprudência da Comissão Constitucional (sobre o princípio da igualdade, por referência à jurisprudência constitucional, Gomes Canotilho, “A Concretização da Constituição pelo Legislador e pelo Tribunal Constitucional, Nos dez anos da Constituição, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 353 e ss., Martins Claro, “O princípio da igualdade”, Nos dez anos da Constituição, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 31 e ss., Maria Lúcia Amaral, “O princípio da igualdade na Constituição portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra Editora, 2004, p. 50 e ss., Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, p. 115 e ss., e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada2, Tomo I, anotação ao artigo 13.º, pontos VI a XI).
Relativamente a este princípio, o Tribunal tem entendido, de forma reiterada, que o que lhe cabe controlar é o respeito pela proibição do arbítrio, enquanto critério negativo e limitador da liberdade de conformação do legislador ordinário. Da jurisprudência constitucional resulta que o princípio enquanto parâmetro de controlo não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional (entre muitos outros, Acórdãos n.ºs 142/85, 231/94, 455/2002, 323/2003, 633/2006 e 184/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O legislador ordinário detém uma liberdade de conformação, com margem para diferenciações de tratamento, que lhe é permitida pelo princípio constitucional da separação de poderes, pertencendo-lhe, desde logo, “dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 13.º, ponto V). O princípio da igualdade enquanto “norma de controlo” face ao legislador proíbe-lhe, porém, as diferenciações de tratamento desprovidas de fundamento material bastante. Devendo concluir-se neste sentido quando os fatores materiais de um tratamento normativo desigual não comportem, designadamente, uma justificação que busque suporte na consonância entre os critérios adotados pelo legislador e os objetivos da lei, por um lado, e entre estes e os fins cuja prossecução o texto constitucional comete ao Estado, por outro. A desigualdade de tratamento só “será consentida quando, depois de adquirido que os critérios de distinção erigidos pelo legislador se compatibilizam com os objetivos da lei, se concluir no sentido de a Constituição, à luz dos princípios que adota e dos fins que comete ao Estado, autorizar o tratamento diferenciado das situações delimitadas na lei ordinária”, isto é, quando se conclua que a diferenciação está em consonância com o sistema jurídico (Acórdãos n.ºs 76/85, 155/92, 232/2003, 370/2007 e 270/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Impõe-se, por isso, que a problemática da recorribilidade das decisões em processo penal e, mais amplamente, o direito ao recurso por parte do arguido e do assistente seja enquadrada no sistema jurídico, nas normas e princípios constitucionais pertinentes e nas disposições integrantes do regime legal dos recursos. Até porque o critério de qualificação das situações como iguais tem de ser significativo sob o ponto de vista da questão em causa, com a certeza, porém, de que a igualdade nunca pode ser total, importando distinguir quais os elementos de semelhança que têm de registar-se – para além dos inevitáveis elementos diferenciadores – para que duas situações devam dizer-se iguais em termos de merecerem o mesmo tratamento jurídico (Acórdãos n.ºs 68/85 e 231/94, disponíveis em www.tribunalconstitucional. Na doutrina, sobre o conceito relativo de igualdade, Maria da Glória Garcia, “Princípio da igualdade: fórmula vazia ou “carregada” de sentido?”, Estudos sobre o princípio da igualdade, Almedina, p. 44 e ss.).
5. O processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o recurso e a garantia de que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP).
Já perante a redação anterior do artigo 32.º, n.º 1, da CRP – o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa – se entendia que o direito de o arguido recorrer em processo penal se insere no complexo de garantias que integram o direito de defesa, não tendo, por isso, sido decisiva a alteração introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, ao acrescentar que são asseguradas todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 178/88, 132/92, 322/93, 418/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. E, ainda, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 32.º, ponto III.)
Tal alteração tão-pouco modificou o entendimento de que a CRP não exige o duplo grau de jurisdição relativamente a todas as decisões proferidas em processo penal, impondo-se a consagração do direito de recorrer apenas quanto a decisões condenatórias e a decisões penais respeitantes à situação do arguido, face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 265/94, 387/99 e 430/2010, disponíveis no mesmo sítio. E, ainda, Lopes do Rego, “Acesso ao direito e aos tribunais”, Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, p. 74 e s., e Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 32.º, ponto VIII).
Bem como não alterou o entendimento de que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, entendendo-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 49/2003, 645/2009 e 353/2010, disponíveis no mesmo sítio. E, ainda, Lopes do Rego, “Acesso ao direito…”, p. 75 e s.). Havendo “fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias”, tais como “a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada”. Ainda que a decisão condenatória proferida em recurso tenha sido antecedida de decisão absolutória de 1.ª instância, já que a reapreciação foi feita por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido teve a possibilidade de expor a sua defesa (Acórdãos n.ºs 49/2003, 255/2005 e 353/2010).
Não valendo para o assistente o disposto no n.º 1 do artigo 32.º e não decorrendo do n.º 7 do mesmo artigo qualquer equiparação do estatuto deste sujeito processual ao do arguido, tem-se entendido que a questão da admissibilidade de recurso por parte do primeiro deve ser perspetivada à luz do que se dispõe no artigo 20.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 259/2002, 464/2003 e 399/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Porém, o direito de acesso aos tribunais que a todos é assegurado para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos não tem sido densificado no sentido de decorrer da norma constitucional um direito ao recurso por parte dos sujeitos processuais, com o consequente dever de o legislador consagrar, em regra, um duplo grau de jurisdição. “A existência de limitações à recorribilidade funciona como um mecanismo de racionalização do sistema judiciário e por isso se aceita que o legislador disponha de liberdade de conformação quanto à definição dos requisitos e graus de recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/2007 e jurisprudência aí citada).
Sem prejuízo de se dever entender que a CRP pressupõe a recorribilidade das decisões dos tribunais ao aludir a instâncias, estando, por isso vedado ao legislador “abolir o sistema de recursos in toto ou afetá-lo substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos (…). As limitações ou restrições ao direito de recurso estão, por isso, sujeitas aos limites constitucionais gerais e, de modo especial, aos princípios da igualdade e da proporcionalidade” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 20.º, ponto XXI. E, ainda, Lopes do Rego, “Acesso ao direito…”, p. 80 e s. Na jurisprudência constitucional Acórdãos n.ºs 638/98, 202/99 e 415/2001, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). E de se dever entender, também, que o direito constitucionalmente conferido ao ofendido de intervir no processo penal (artigo 32.º, n.º 7) obsta a que seja privado dos poderes processuais que se revelem decisivos para a defesa dos seus interesses, privando-o, nomeadamente, do poder de recorrer (em primeiro grau) de sentenças absolutórias (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/2003. E, ainda, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 32.º, ponto XIV.).
Por último, deve salientar-se que “a circunstância de o direito ao recurso no processo penal aparecer estruturado como emanação das garantias de defesa do arguido tem levado (…) a jurisprudência constitucional a entender que não violam o princípio da igualdade determinadas disposições processuais que regulam, em termos divergentes para acusação e defesa, a possibilidade de impugnar certo despacho ou sentença do juiz (…). Trata-se, afinal, de um afloramento da ideia (…) segundo a qual o princípio da «igualdade das partes» tem de ser perspetivado em consonância com a específica natureza do processo criminal – podendo significar aí, não que os sujeitos do processo devam ter estatutos processuais absolutamente idênticos e paritários, simetricamente decalcados, mas essencialmente que o arguido poderá, por vezes, beneficiar de um estatuto formalmente «privilegiado», como forma de compensar uma presumida fragilidade ou maior debilidade relativamente à acusação, no confronto processual penal” (Lopes do Rego, “O acesso ao direito…”, pp. 76 e 70 e s., com especial referência ao Acórdão n.º 132/92, já citado no ponto 3.2. Cf., ainda, o Acórdão n.º 178/88 e a declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 8/87 pelo Conselheiro Vital Moreira, tudo disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Em geral, é de concluir que, dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, há uma orientação do processo penal para a defesa, que o vincula a assegurar todas as garantias, isto é, todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 32.º, ponto II. e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 54/87, 150/87 e 356/91, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
6. O artigo 399.º do CPP consagra o princípio geral de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, dispondo o artigo 400.º do mesmo Código sobre as decisões que não admitem recurso – as elencadas nesta disposição legal e nos demais casos previstos na lei. No que se refere ao duplo grau de recurso de decisões que conheçam, a final, do objeto do processo, a regra é a da recorribilidade das decisões proferidas, em recurso, pelas relações (artigo 399.º do CPP), sendo irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos em recurso previstos nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Não obstante ter arredado a norma segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões em primeira instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redação primitiva), tem sido propósito do legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, aos casos de maior merecimento penal (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, Projeto de Revisão do Código de Processo Penal. Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República, Ministério da Justiça, 1998, p. 27, e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, na base das alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto). Num primeiro momento, o legislador fez “uso discreto do princípio da dupla conforme”, combinando-o com o critério da gravidade da pena abstrata correspondente ao crime (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na redação de 1998); num momento posterior, combinou aquele princípio com o critério da gravidade da pena concreta correspondente ao crime para restringir, ainda mais, “o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal” (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d), e) e f), do CPP, na atual redação). A partir de 1998, a alínea e) passou a dispor que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos (…); a partir de 2007, a letra da mesma alínea prevê a irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade. Traído pela substituição do critério da gravidade abstrata do crime pelo da gravidade da pena concreta, o legislador deixou de contemplar na letra da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º os acórdãos absolutórios, sem que haja nos trabalhos preparatórios qualquer rasto que justifique este resultado.
Pelo contrário: o propósito afirmado era o de restringir o recurso em segundo grau aos casos de maior merecimento penal e, em geral, o de limitar o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, quer por via da irrecorribilidade de decisões proferidas pelas relações, em recurso, que confirmem decisão absolutória da 1.ª instância ou que confirmem decisão condenatória de 1.ª instância, aplicando pena de prisão não superior a oito anos (artigo 400.º, n.º 1, alíneas d) e f), do CPP); quer através da limitação constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP – recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, apenas quando apliquem pena de prisão superior a cinco anos.
Não deixando de cumprir aquele propósito, a redação final da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º alargou o âmbito das decisões que são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, quando comparada com a versão constante da Proposta de Lei, nos termos da qual não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que aplicassem pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos. Na verdade, a razão de ser desta modificação pode encontrar-se, ainda, não obstante o vazio dos trabalhos preparatórios (cf. Diário da Assembleia da República, II Série-A – Número 117, de 23 de julho de 2007, p. 28 e s.), no maior merecimento penal dos casos aos quais corresponda condenação em pena privativa da liberdade, por comparação com os que levem à condenação em pena não privativa da liberdade (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, p. 319, Miguel Ângelo Lemos, “O direito ao recurso da decisão condenatória enquanto direito constitucional e direito humano fundamental”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, III, Coimbra Editora, 2010, p. 935 e s., e Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 639 e ss.).
7. Da interpretação que a decisão recorrida fez dos artigos 399.º e 400.º do CPP resulta que não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão da relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade e que, assim, revogou a absolvição da 1.ª instância (artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP), mas que já é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão da relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade (artigos 399.º e 400.º, este a contrario). Do ponto de vista dos destinatários das normas, resulta do acórdão recorrido o seguinte: o arguido não pode recorrer em segundo grau de acórdão condenatório em pena não privativa da liberdade, que revogou absolvição da 1.ª instância; o assistente pode recorrer em segundo grau de acórdão absolutório, que revogou condenação em 1.ª instância em pena não privativa da liberdade.
Face ao critério legal de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, constitucionalmente suportado por não ser exigível o triplo grau de jurisdição, há que qualificar as situações como iguais: não obstante haver, em ambas, decisões discordantes das instâncias, as duas situações não se integram nos casos de maior merecimento penal, tendo em conta que a condenação é em pena não privativa da liberdade. As normas pertinentes foram, porém, interpretadas, relativamente a uma das situações, no sentido de o arguido não poder recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP; e, quanto à outra, no sentido de haver recurso em segundo grau por parte do assistente, por força do disposto nos artigos 399.º e 400.º, n.º 1, alínea e), a contrario, do mesmo Código.
A diferença de tratamento é evidente, não havendo qualquer justificação material para uma diferenciação que privilegie o assistente no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça enquanto segunda instância de recurso. A natureza absolutória do acórdão proferido pela relação, em recurso, não é fundamento material bastante, considerando o que se pretende regulamentar (o acesso ao triplo grau de jurisdição e, em geral, àquele Supremo Tribunal) e as normas e princípios constitucionais pertinentes (em especial, o artigo 32.º, n.ºs 1 e 2). O que faz com que a norma em apreciação não possa ser perspetivada como uma solução normativa que apenas se repercute na coerência interna das regras legais que conformam o acesso ao segundo grau de recurso.
A recorribilidade, por parte do assistente, de acórdão absolutório da relação que revogue condenação em 1.ª instância em pena não privativa da liberdade não é compatível com o objetivo da lei processual penal de restringir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça enquanto instância de recurso, limitando o triplo grau de jurisdição aos casos de maior merecimento penal a partir da regra da dupla conforme e do critério da gravidade da pena aplicada (supra ponto 6. da Fundamentação). Não há aqui um qualquer elo de adequação objetiva e racionalmente comprovável entre a ratio daquela escolha legislativa e a diferença estabelecida, já que esta assenta exclusivamente na natureza absolutória do acórdão proferido em recurso (cf. Acórdão n.º 184/2008). Além de a diferença não ser justificável pela posição processual e atribuições do assistente enquanto sujeito do processo penal (artigo 69.º do CPP).
Por outro lado, aquela diferença de tratamento não é permitida pela CRP. Ainda que se entenda que o ofendido (constituído assistente) tem o direito de intervir no processo, recorrendo de decisões absolutórias de 1.ª instância (cf. supra ponto 5. da Fundamentação), a integração do direito ao recurso em processo penal nas garantias de defesa significa que a CRP não consagra, nem quis consagrar, quanto ao arguido e ao assistente, um princípio de igualdade em matéria de direito ao recurso. E que, a haver diferenciações de tratamento, só serão constitucionalmente legítimas as que penderem em favor do primeiro. O princípio da igualdade nivela a posição dos sujeitos processuais dentro do direito de defesa e em favor da mesma defesa. Significa que o arguido não deve ter menos direitos, mas não que não possa ter mais (cf. Acórdão n.º 132/92, declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 8/87 e supra ponto 5. da Fundamentação).
Acresce que uma das garantias de defesa que é constitucionalmente assegurada em processo criminal é a presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da decisão (artigo 32.º, n.ºs 1 e 2). E não é compatível com o princípio da presunção de inocência do arguido ser admissível recurso de acórdão absolutório proferido já em segunda instância, quando não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça acórdão condenatório em pena não privativa da liberdade. O princípio da presunção de inocência do arguido projeta-se de modo diferente na estabilidade das decisões penais consoante sejam condenatórias ou absolutórias, pelo que não é constitucionalmente conforme uma diferenciação de tratamento que facilite a estabilização de decisões condenatórias em termos negados às absolutórias.
8. Impõe-se, pois, a conclusão de que a norma cuja aplicação foi recusada nos presentes autos – a dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade – viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da CRP.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional os artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa); e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 27 de março de 2012.- Maria João Antunes – Gil Galvão (vencido pelas razões constantes do acórdão N.º 546/11, que subscrevi) – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração que junto. – Rui Manuel Moura Ramos (exercendo o voto de qualidade).
DECLARAÇÃO DE VOTO
I
Na qualidade de relator apresentei à Secção um projeto que concluía no sentido diverso daquele que acabou por fazer vencimento. É esse texto, depurado das menções agora inúteis, que seguidamente incluo na presente declaração.
II
1. O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 399.º e 400.º do Código do Processo Penal (CPP) na versão conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretadas no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, do acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade.
As normas que constituem o objeto do presente recurso têm a seguinte redação:
Artigo 399.º
Princípio geral
É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à material penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
No caso que deu origem ao presente recurso está em causa uma decisão da Relação que, conhecendo do mérito do recurso, não confirmou a decisão condenatória de 1ª instância numa pena não privativa da liberdade, tendo por isso absolvido o arguido. O STJ entendeu – interpretação que não cabe ao Tribunal Constitucional discutir – que a decisão da Relação não se enquadrava em nenhuma das alíneas do artigo 400.º do CPP pelo que, de acordo com a norma geral prevista no artigo 399.º do mesmo diploma, a mesma deveria considerar-se recorrível. No entanto, decidiu recusar a aplicação das normas contidas nos artigos 399.º e 400.º no CPP, na interpretação segundo a qual é admissível recurso para o STJ, interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, do acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime, dessa forma revogando a condenação do mesmo, na 1ª instância, numa pena não privativa da liberdade, por considerar que a mesma era inconstitucional por violação do princípio da igualdade de armas e da garantia dos direitos de defesa do arguido.
2. No entender do acórdão recorrido, os princípios constitucionais relativos à igualdade de armas e à garantia dos direitos de defesa do arguido, previstos nos artigos 13.º e 32.º n.º 1 da Constituição seriam violados pelas normas objeto do presente recurso, com a interpretação atrás referida, devido essencialmente ao tratamento diferente que conferiam a duas situações de recorribilidade, opostas, mas indissociáveis. De acordo com a interpretação dada pelo STJ, decorreria dos artigos 399.º e 400.º do CPP que não é recorrível o acórdão da Relação, proferido em sede de recurso, que revogou a absolvição da 1ª instância e condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade (artigo 400.º n.º 1, alínea e) do CPP); no entanto, já seria legalmente possível o recurso para o STJ do acórdão da Relação que tenha revogado a condenação da 1ª instância em pena não privativa da liberdade, absolvendo-o (artigos 399.º e 400.º, este último, a contrario). Todavia, de acordo com o acórdão recorrido, os já referidos princípios constitucionais mostrar-se-iam violados por estas normas, que autorizariam que o MP e o assistente possam aceder a um terceiro grau de jurisdição, não garantido ao arguido.
3. O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar, no Acórdão n.º 546/2011 (publicado in Diário da República, IIª Série, de 21-12-2011), sobre a invocada inconstitucionalidade das normas objeto do presente recurso, com a interpretação que lhes foi dada pelo acórdão aqui recorrido. No referido aresto decidiu-se não julgar as normas inconstitucionais, juízo que o Tribunal entende seguir no presente caso.
Não é fácil, em primeiro lugar, descortinar de que forma as normas objeto do presente recurso, com o sentido que lhes foi conferido pelo acórdão recorrido, violam direitos de defesa do arguido consagrados no artigo 32.º, n.º 1 da CRP. Sobre o princípio das garantias de defesa do arguido constitucionalmente asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1 da CRP, tem já o Tribunal Constitucional ampla jurisprudência.
No que toca à garantia de recurso em processo penal, tem sido entendimento que a mesma não impõe o esgotamento de todas as instâncias que a lei preveja, podendo o legislador determinar a irrecorribilidade das decisões da Relação que, em recurso das decisões absolutórias da primeira instância, condenem o arguido (nesse sentido, o Acórdão n.º 353/2010, publicado in Diário da República, IIª Série, de 10-11-2010). Também os Acórdãos n.ºs 49/2003, 255/2005, 487/2006 e 682/2006 (todos disponíveis no site do Tribunal), não julgaram inconstitucional a interpretação da norma do CPP então vigente, no sentido de não admitir o recurso para o STJ a decisão condenatória proferida pela Relação em recurso de decisão absolutória de 1ª instância, em processo por crime a que seja aplicada pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, por o acórdão da Relação consubstanciar a garantia do duplo grau de jurisdição. De igual modo e pelos mesmos fundamentos, o Acórdão n.º 424/2009, não julgou inconstitucional a norma do art.º 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), conjugada com a do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, também na redação da Lei n.º 48/07, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o STJ de acórdão do Tribunal da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena da 1ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efetiva.
No entanto, o que é contestado no presente caso não é por si só a irrecorribilidade do acórdão da Relação que tenha condenado o arguido a pena não privativa da liberdade, prevista na alínea e) do artigo 400.º do CPP. O que é censurado é que, ao mesmo tempo que a lei não permite essa recorribilidade, permite porém a recorribilidade do acórdão da Relação na situação oposta, i.e., em que o arguido é absolvido na Relação, tendo sido condenado na primeira instância numa pena não privativa da liberdade. Ora, não estando o legislador obrigado a prever a garantia de um terceiro grau de jurisdição para o arguido, será que o passará a estar pelo simples facto de prever esse grau de jurisdição para o MP ou para o assistente?
A esta questão não se poderá responder com a análise isolada do princípio das garantias de defesa do arguido – que não abrangem a garantia de um terceiro grau de jurisdição – mas sim através da tomada em consideração dos princípios constitucionais que constituam o parâmetro adequado para escrutinar o tratamento desigual de situações que se tenham como iguais. Importa, por outras palavras, analisar a presente situação à luz do princípio da igualdade de armas em processo penal, em especial, e, em geral, à luz do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição.
4. Sobre o princípio da igualdade de armas em processo penal, o Tribunal tem entendido – sempre acompanhado pela Doutrina – que a dimensão garantística do processo penal, face à sua repercussão nos direitos e liberdades fundamentais do arguido, obsta a um entendimento de tal processo como um verdadeiro processo de partes (assim, entre outros, o Acórdão n.º 132/92, publicado in Diário da República, IIª Série, de 24-07-1992 e o Acórdão n.º 640/04, publicado in Diário da República, IIª Série, disponível no site do Tribunal). Tem sido aceite, em suma, que «Este princípio (…) não pode, sob pena de erro crasso, ser entendido como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade matemática ou sequer lógica. Fosse assim e teriam de ser fustigadas pela crítica numerosas normas com bom fundamento – e, na verdade, ainda maior número delas referentes a faculdades concedidas ao arguido do que ao Ministério Público! (…) Torna-se assim evidente que a reclamada «igualdade» de armas processuais (…) só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material da acusação e da defesa e da sua dialética. Com a consequência de que uma correta conformação processual só poderá ser recusada como violadora daquele princípio de igualdade quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária; ou ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinado, ou dos referentes axiológicos que os comandam» (Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in O Novo Código de Processo Penal, «Jornadas de direito processual penal, Ed. Almedina, Coimbra, 1988, pp.30-31).
Neste domínio, o referido princípio atua no âmbito do direito de defesa, para não colocar o arguido em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação. Nos termos do Acórdão n.º 640/04, «Igualdade de armas significa a atribuição à acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tornar efetivos os direitos estabelecidos a favor da acusação e da defesa”. Por outras palavras, dele decorre a ideia segundo a qual quem acusa não deve dispor de meios de influência (sobre o modo pelo qual o tribunal forma a sua convicção) que sejam, na sua substância e efetividade, manifesta e irrazoavelmente superiores àqueles que são conferidos a quem se defende.
Também se não vê de que forma as normas objeto do presente recurso, com o sentido que lhes foi dado pelo acórdão recorrido, violam o princípio da igualdade de armas em processo penal assim entendido. É verdade que se permite ao Ministério Público recorrer de um acórdão da Relação, quando não se garante, na situação simetricamente oposta, esse recurso ao arguido. No entanto, o que a solução legislativa permite é apenas isso – i.e., que se abra uma nova e última fase de discussão do caso. Nada na lei impede que, nessa fase processual, não sejam observadas todas as garantias de defesa do arguido, e que a mesma se desenrole em respeito pelo princípio da igualdade de armas.
Não estando constitucionalmente assegurado o 3º grau de jurisdição, a violação do princípio da igualdade de armas seria apenas possível se, nessa nova fase processual desencadeada pelo Ministério Público ou pelo assistente, não se reconhecessem todos os direitos e instrumentos necessários e adequados ao arguido para defender a sua posição e contrariar a acusação. Mas não é isso o que sucede. Afirmou-se no Acórdão n.º 546/2011: “sempre se dirá que se a este último forem dados, na nova fase processual que então se abre, todos os necessários e suficientes meios de apresentação das suas razões, nenhum motivo há para que se pense que foi o simples reconhecimento do direito de recurso à acusação (com a negação de semelhante direito à defesa, em caso simétrico) que fez emergir uma rutura, constitucionalmente censurável, do princípio da igualdade de armas”.
5. Resta apreciar a questão do ponto de vista do respeito pelo princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição. Tem sido entendimento que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, já que ao legislador “ pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infração” do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio” (Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, p. 339).
No que toca à garantia constitucional do recurso em processo penal, o Tribunal tem, por diversas vezes, sublinhado que o legislador goza de uma ampla margem de conformação, respeitado que sejam as garantias de defesa do arguido. Escreveu-se no Acórdão n.º 260/2002, (publicado in Diário da República, II série, de 24 de julho de 2002):
“ O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que se integra na liberdade de conformação do legislador ordinário a definição das regras relativas ao processamento dos recursos. Assim, por exemplo, no seu acórdão nº 299/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 699 e segs.), citado em vários acórdãos posteriores, o Tribunal Constitucional observou que «(...) o legislador tem ampla liberdade de conformação no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual (...)»; necessário é que essas regras não signifiquem a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por importar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais ou, mais especificamente, no que toca ao processo penal, das garantias de defesa e de recurso afirmadas no citado nº 1 do artigo 32º”.
Devendo reconhecer-se liberdade de conformação ao legislador ordinário no presente contexto, o princípio da igualdade só poderá ter-se como violado perante distinções manifestamente irrazoáveis ou injustificadas que, por isso, devam ter-se como arbitrárias. Ora, o juízo de controlo do respeito pela proibição do arbítrio alicerça-se a partir da análise do fim que as normas em causa visam alcançar, ou, dito de outra forma, da sua ratio (Maria da Glória Ferreira Pinto, “Princípio da Igualdade: Fórmula vazia ou carregada de sentido?”, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27).
Na verdade, o sistema de recursos em processo penal encontra-se estruturado em torno de dois princípios: o princípio constitucional de observância das garantias de defesa do arguido e o princípio constitucional da realização em tempo útil da justiça penal, com a consequente busca da verdade material. Nesse âmbito, o legislador consagrou uma regra geral, no artigo 399.º do CPP, de acordo com a qual as decisões dos tribunais são recorríveis, exceto em determinado tipo de situações. Como se afirma no Acórdão n.º 546/2011,
“Foi em função desse fim comum que a atual redação do n.º 1 do artigo 400.º do CPP determinou as situações de irrecorribilidade, para o Supremo Tribunal de Justiça, das decisões proferidas em recurso pelos Tribunais da Relação. Para tanto, e após as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, o “sistema” parece assentar em dois grandes critérios que orientaram as escolhas do legislador.
Por um lado, terá o legislador entendido que o recurso para o Supremo (de decisões tomadas, também em recurso, pelas relações) deveria ser reservado aos casos de maior merecimento penal. É nesse contexto – corroborado, aliás, pela exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que iniciou o procedimento legislativo que conduziu à aprovação da Lei n.º 48/2007 – que se compreenderá a versão atual da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, que consagrou a regra da irrecorribilidade de todas as decisões, proferidas em recurso pelos tribunais da relação, que apliquem pena não privativa de liberdade; ou que se compreenderá a atual redação da alínea f) do mesmo n.º 1, que consagrou por seu turno a regra da irrecorribilidade dessas decisões, quando apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
Por outro lado, entendeu ainda o legislador que o recurso para o Supremo não deveria ser admitido sempre que sobre o caso tivessem já recaído dois juízos, proferidos pelas instâncias, de teor conforme. É de acordo com este critério – já proveniente, aliás, da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto – que se compreende a alínea d), bem como a primeira parte da alínea f), do mesmo n.º 1 do artigo 400.º”.
Em suma, para dar concretização aos princípios constitucionais aplicáveis, o legislador optou por limitar as situações de recorribilidade para o STJ de decisões tomadas em recurso pela Relação aos casos em que se tenha aplicado uma pena especialmente grave ou em que não haja, através da “dupla conforme”, suficiente grau de certeza quanto aos juízos já obtidos. Ora, estando em causa um acórdão da Relação que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade, revogando a decisão de 1ª instância que o havia absolvido, não se verifica nem a dupla conforme, nem uma situação de aplicação de pena que se tenha por especialmente grave; a opção do legislador em excluir a possibilidade de recurso dessa decisão encontra justificação na ratio do sistema legal de recursos em processo penal.
Isso não significa, contudo, que o legislador se encontre constitucionalmente vinculado a excluir, paralelamente, a recorribilidade de decisão na situação oposta, ao invés de a enquadrar na regra geral de admissibilidade de recurso. Como se afirmou no Acórdão n.º 546/2011:
“Operando o princípio constitucional da igualdade como vínculo negativo das escolhas do legislador – que só proíbe diferenças de tratamento legislativo que sejam, nos termos atrás definidos, injustificáveis – o facto de o legislador ter escolhido proibir o recurso, na situação de condenação em 2ª instância em pena não privativa de liberdade, não o constitui na obrigação jurídica de adotar a mesma regra de proibição na situação dita “simétrica”. Nada há na Constituição que imponha ao legislador, para este caso, um dever líquido e certo de se orientar no sentido da proibição do recurso”.
No exercício da sua liberdade de conformação, o legislador pode optar por excluir o recurso de uma decisão de condenação na segunda instância numa pena não privativa da liberdade após uma absolvição na primeira instância, sem ficar constitucionalmente obrigado, por força do princípio da igualdade, a excluir também o recurso na situação inversa. É que, não podendo considerar-se arbitrária a exclusão do recurso na primeira situação, o certo é que nada na Constituição impõe que se exclua simultaneamente o recurso de decisão de absolvição da Relação que revogou uma decisão da primeira instância de condenação em pena não privativa da liberdade.
Face à ratio do sistema, que procura conciliar as garantias de defesa do arguido e a realização da justiça penal, com a consequente busca da verdade material, não se mostra de todo injustificado que seja aberta mais uma via de recurso naquelas situações em que, a uma condenação em primeira instância em pena não privativa da liberdade, se siga uma absolvição da segunda instância, desde que se garanta ao arguido, durante a mesma, o exercício das suas garantias de defesa.
Em suma, a norma objeto do presente recurso também não viola o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição.
III
Pelos fundamentos expostos, concluiria por conceder provimento ao recurso.- Carlos Pamplona de Oliveira.