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Processo n.º 31/2012
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso, apoiada nos seguintes fundamentos:
“2. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Nos termos deste preceito, que corresponde ao disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 280.° da Constituição, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido arguida durante o processo.
No requerimento de interposição do recurso perante o Tribunal, afirma A. que a questão de constitucionalidade, que pretende que o Tribunal aprecie, foi apenas suscitada aquando da arguição de nulidade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal 'por respeitar a vício do próprio acórdão', ou seja, por respeitar à 'inconstitucionalidade' da decisão nele proferida, assim se explicando por que motivo não foi ela (a inconstitucionalidade) suscitada em qualquer outro momento processual.
Sucede, porém, que, segundo entendimento constante do Tribunal Constitucional, os incidentes pós-decisórios não são já meios idóneos e atempados para suscitar -em vista a um ulterior recurso para este Tribunal – a questão de constitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo se esgotou com a decisão e num momento em que já lhe não é possível tomar posição sobre a mesma.
Tendo, in casu, sido suscitada a questão de constitucionalidade em requerimento de arguição de nulidade [de Acórdão do Supremo Tribunal], e constituindo esta última um incidente pós decisório, parece desde logo certo, de acordo com a doutrina atrás referida, que se não pode considerar que a questão de constitucionalidade que A. pretende colocar ao Tribunal tenha sido – como o exige a Constituição e a lei – efetivamente suscitada durante o processo.
É certo que a requerente apresenta, para o facto, as suas razões. No seu entender, a questão de constitucionalidade não poderia ter sido alegada mais cedo, ou em qualquer outro momento do processo, por dizer respeito ao próprio acórdão cuja nulidade se arguiu, sendo aliás a inconstitucionalidade (ou o 'vício de inconstitucionalidade do acórdão', como se diz) o fundamento da nulidade da decisão, que se arguiu.
Porém, se assim é, não pode o Tribunal conhecer da questão.
Como já se disse, e como decorre do disposto no artigo 280.° da Constituição, só cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões de tribunais que recusem a aplicação de normas, ou de decisões que apliquem normas, não obstante a sua inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo. Quer isto dizer que o controlo que o Tribunal faz é, apenas, um controlo de constitucionalidade de normas, estando-lhe por isso vedado o controlo da constitucionalidade das decisões, judicias ou outras.
Tanto basta para que se não conheça, no caso, do objeto do recurso de constitucionalidade.”
2. Notificada dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), concluindo do seguinte modo:
“1. A regra de que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada durante o processo e não se aplica às decisões pós–decisórias não se aplica naqueles casos em que, por virtude de norma processual especifica, o poder jurisdicional do tribunal não se esgota com a divisão recorrida.
2. No caso dos autos suscita-se a questão de competência do Supremo Tribunal em conhecer da matéria de facto, ou, 'rectius' da competência do Supremo Tribunal conhecer da apreciação da matéria de facto nos termos do artº 729º do Código de Processo Civil.
3. A questão reconduz-se a uma incompetência em razão da matéria do Supremo Tribunal, a qual, nos termos do artº 102º do Cod. De Proc. Civil pode mesmo oficiosamente, ser conhecida até transito em julgado da decisão.
4. A questão foi suscitada no requerimento de arguição da nulidade e inconstitucionalidade antes do transito em julgado, pelo que o recurso se revele atempado em sede de constitucionalidade.
5. Constitui orientação do Tribunal Constitucional, que a enunciada regra não se aplica naqueles casos em que se afigura desrazoável e inadequada exigir do recorrente, através de um juízo de prognose e antecipação do levantamento da questão da inconstitucionalidade para antes da decisão final.
6. A decisão do Supremo Tribunal é uma “decisão surpresa”, pois, ao contrário do que afirma tal não é consentido nos limites dos artºs 722º e 729º do Código de Processo Civil violando não só a lei mas ainda a jurisprudência unânime do Supremo Tribunal.
7. Por ser de todo desrazoável a prognose do entendimento seguido pelo supremo Tribunal relativamente aos artºs 722º e 729º do Código de Processo Civil, questão levantada nas alegações de recurso a sua decisão tem que ser considerada “decisão surpresa”.
8. Considerando a decisão do Supremo Tribunal como' decisão surpresa' também e por este motivo deve ser considerado oportuno o recurso ao Tribunal Constitucional.
9. O que se discute nos autos é se, na interpretação do art° 729° n° 2 do Código de Processo Civil se contem a possibilidade de censurar a apreciação dos factos apurados feito pelas instâncias retificando tal entendimento, como pretende o Supremo Tribunal ao referir que agiu em conformidade com o prescrito nos atrºs 722° e 729° do Código de Processo Civil.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Foram duas as razões invocadas pela Decisão Sumária para não conhecer do objeto do recurso que A. procurou interpor para o Tribunal Constitucional. Em primeiro lugar, o ter sido a questão de constitucionalidade suscitada em sede de incidente pós-decisório, momento em que, por se ter já esgotado o seu poder jurisdicional, não podia o juiz a quo sobre ela tomar posição. Em segundo lugar, por dizer respeito a mesma questão à alegada inconstitucionalidade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça e não, como o exige a Constituição e a lei, à eventual inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação.
Perante esta Decisão Sumária, vem a reclamante agora apresentar três argumentos essenciais. O primeiro é o de que nem sempre o poder jurisdicional do juiz se esgota com a prolação da decisão (artigo 666.º, n.º1 do Código de Processo Civil). Segundo a reclamante, seria precisamente essa a situação do caso concreto, uma vez que ocorrendo nele (no seu entender) incompetência absoluta em função da matéria (artigo 102.º do Código Civil), o tribunal ainda poderia conhecer dessa questão e de qualquer problema de inconstitucionalidade que lhe estivesse associado. Em segundo lugar, vem reafirmar-se que é a própria decisão do Supremo que se considera inconstitucional. Isto mesmo decorre do que é dito a fls. 1450, quando se reitera que “dúvidas não há quanto à ilegitimidade da atuação do Supremo Tribunal, a qual violou frontalmente a lei e a jurisprudência uniforme desse Tribunal”, [por conhecer de matéria (de facto), fora do âmbito dos seus poderes cognitivos.] Por último, alega-se ainda que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu uma decisão surpresa, decisão essa que, como já se viu, considera a reclamante ser inconstitucional. Por isso, não havendo momento processual adequado para colocar a questão de inconstitucionalidade que não fosse o da apresentação do requerimento de arguição da nulidade, dever-se-ia entender que foi atempada a invocação de inconstitucionalidade, não se impondo, consequentemente, nenhum obstáculo ao conhecimento por parte do Tribunal Constitucional.
Comecemos pela análise deste último argumento.
3.1. De acordo com um princípio sempre reiterado pela jurisprudência do Tribunal, os incidentes pós-decisórios não devem ser configurados como o momento processual oportuno para que seja discutida, pela primeira vez, qualquer questão de inconstitucionalidade. Assim é pelo facto destes incidentes servirem, por regra, para conhecer da aplicação das normas reguladoras da admissibilidade e do próprio âmbito dos pedidos de reforma ou nulidade, que não têm qualquer influência na formação da decisão, e não para conhecer de questões de mérito.
Este princípio associa-se logicamente a um outro que é, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 280.º da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pressuposto insuprível de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade, e que se traduz na necessária suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, ou seja, antes que seja proferida a decisão [de mérito] de que se pretende recorrer.
O Tribunal tem admitido exceções a esta exigência geral de suscitação prévia da questão de constitucionalidade nos casos em que o tribunal a quo profira uma decisão de tal modo imprevisível e inesperada que torne desrazoável o impor-se ao recorrente a antecipação da mesma.
Simplesmente, quando tal sucede o “inesperado” e o “imprevisível” do decidido pelo tribunal a quo – esse mesmo que, por ser surpreendente, dispensa a exigência da suscitação prévia da constitucionalidade – tem que dizer respeito a normas e só a normas. Ou a normas cuja aplicação for recusada pela decisão de que se interpôs recurso, por serem inconstitucionais [alínea a) do nº 1 do artigo 280.º da Constituição; alínea a) do nº 1 do artigo 70.º da Lei do tribunal Constitucional], ou a normas que foram efetivamente aplicadas como ratio decidendi pela decisão recorrida, não obstante uma das partes no processo ter suscitado a questão da inconstitucionalidade [alínea b) do nº 1 do artigo 208.º da CRP e alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, como é o caso].
Não havendo, em direito português, lugar para o controlo, por parte do Tribunal Constitucional, da constitucionalidade de decisões, judiciais ou outras, só assim se pode entender a qualificação, para efeitos de análise dos pressupostos de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade, das decisões dos tribunais comuns como decisões surpresa.
No caso, vem agora o reclamante sustentar que foi “surpresa” a decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça a 15 de setembro de 2011, por considerar que foi completamente inesperada a avaliação da prova então feita por esta alta instância.
Precisamente por isso, diz ainda, arguiu a nulidade da mesma decisão por inconstitucionalidade, vício que, por dizer respeito ao próprio acórdão, não podia ter sido invocado mais cedo.
Significa tal, porém, que o que realmente se impugnou foi a inconstitucionalidade da própria decisão judicial, em si mesma considerada, e não de norma que ela tenha aplicado.
Ora, como se disse na Decisão Sumária reclamada e aqui se reafirmou, a sindicância da decisão proferida pelo Supremo Tribunal é tarefa que se encontra fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional.
Tanto basta para que se não conheça do objeto do recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a Decisão Sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.