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Proc. n.º 234/00 Acórdão nº 188/03 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I O pedido e os seus fundamentos
1. O Provedor de Justiça requereu, em Março de 2000, ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 2º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, de 22 de Março, 'na parte em que reservam o seu âmbito de aplicação a quem seja portador de deficiência motora a nível dos membros superiores ou inferiores'.
Estas normas dispõem o seguinte:
Artigo 2º
1 - Para efeitos de aplicação do presente diploma, considera-se deficiente motor todo aquele que, por motivo de lesão, deformidade ou enfermidade, congénita ou adquirida, seja portador de deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores, de carácter permanente, de grau igual ou superior a 60%, avaliada pela Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes no Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 43 189, de 23 de Setembro de 1960, desde que tal deficiência lhe dificulte, comprovadamente: a) A locomoção na via pública sem auxílio de outrem ou recurso a meios de compensação, designadamente próteses, ortóteses, cadeiras de rodas, muletas e bengalas, no caso de deficiência motora ao nível dos membros inferiores; b) O acesso ou utilização dos transportes públicos colectivos convencionais, no caso de deficiência motora ao nível dos membros superiores.
2 - Para efeitos do presente diploma, considera-se multideficiente profundo todo o deficiente motor que, para além de se encontrar nas condições referidas no artigo 1º e no número antecedente, enferme, cumulativamente, de deficiência sensorial ou intelectual ou visual de carácter permanente de que resulte um grau de desvalorização superior a 90% e por tal facto esteja comprovadamente impedido de conduzir veículos automóveis.
2. O Provedor de Justiça vem impugnar a constitucionalidade das normas constantes do artigo 2º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, 'na parte em que reservam o seu âmbito de aplicação a quem seja portador de deficiência motora a nível dos membros superiores ou inferiores', por entender que as mesmas violam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
2.1. Para o efeito, desenvolve uma argumentação que pode, no essencial, reconduzir-se ao seguinte:
a) 'No n.º 1 do artigo 2º define-se que são considerados deficientes motores, para efeitos do diploma em causa, aqueles que, por motivo de lesão, deformidade ou enfermidade, congénita ou adquirida, sejam portadores de deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores, de carácter permanente, de grau igual ou superior a 60%, avaliada pela Tabela Nacional de Incapacidades'.
Mas, não se bastando a lei com esse enunciado, 'as alíneas a) e b) do referido art.º 2º, n.º 1, disjuntivamente aplicáveis, esclarecem que os cidadãos nas condições do proémio do n.º 1 só são elegíveis caso a deficiência de que sejam portadores provoque os efeitos gravosos definidos nessas duas alíneas quanto à sua mobilidade e facilidades de locomoção'.
Assim, é 'a própria lei que permite a conclusão de que o que se visa atenuar são os efeitos desfavoráveis da deficiência na deslocação e autonomia dos cidadãos deficientes e não simplesmente criar um privilégio para estes, imponha ou não a sua situação concreta esse tipo de apoio' (artigos 6º a 10º do requerimento inicial).
b) Sendo certo que uma das bases do constitucionalismo é 'a repulsa aos privilégios de índole fiscal', essa ideia liberal foi completada com outra, que aceita soluções que consagrem a igualdade real, 'admitindo, no que aqui interessa, a exceptuação de situações diversas da incidência dos tributos, tão logo tal se mostre necessário, adequado e proporcionado à eliminação das desigualdades de base'.
No tocante à situação de pessoas portadoras de deficiência, a própria Constituição, de resto, prevê, no seu artigo 71º, n.º 2, um apoio específico,
'que passa também pela via da isenção fiscal, a qual constitui de igual modo uma forma de apoio financeiro'.
'É manifesto que a concretização desses apoios está sujeita à reserva do possível'. Uma vez, porém, que se decida concedê-los, 'está o Estado vinculado a conformá-los de modo a não violar o princípio da igualdade, ou seja, a não estabelecer requisitos inclusivos ou exclusivos que não possuam relevo material bastante para que se possa considerar como constitucionalmente aceite uma diferenciação entre sujeitos'. Mais precisamente: 'o Estado pode considerar prioritário o apoio a certas categorias de deficiências face a outras, mas não é livre de categorizar os deficientes em função de elementos classificatórios constitucionalmente inábeis' (artigos 14º a 19º do requerimento inicial).
c) 'Aplicando esta [última] asserção ao caso sub judice, parece manifesto que a concessão da isenção fiscal na aquisição de veículos automóveis e demais facilidades atribuídas, escopo do Decreto-Lei n.º 103-A/90, é justificável materialmente pelos efeitos gravosos da deficiência e não pela sua etiologia':
'o que releva para justificação desta isenção é a verificação de determinado grau de dificuldade na locomoção e mobilidade'.
'O próprio art.º 2º, n.º 1, não afasta este entendimento, ao exigir a verificação dos requisitos enunciados nas suas alíneas a) e b), em disjunção obviamente não exclusiva' (artigos 20º a 22º do requerimento inicial).
d) Sendo assim, 'se dois cidadãos manifestam a mesma penosidade e dificuldade real na sua mobilidade, não é critério constitucionalmente adequado atribuir a um a isenção fiscal por a sua lesão, deformidade ou enfermidade ser num determinado órgão e a outro não por o órgão directamente atingido ser outro'.
Ora - e a Ordem dos Médicos, no parecer emitido, a solicitação do requerente, pelo Conselho Nacional do Exercício Técnico da Medicina confirma-o - é
'perfeitamente viável pensar-se na verificação de efeitos gravosos ao nível dos descritos nas alíneas a) e b) do artigo 2º, n.º 1, ora impugnado, por existência de outra deficiência que não as enunciadas no seu proémio' [isto é, deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores].
'Cria-se, assim, uma discriminação entre cidadãos portadores de deficiência que causam os mesmos efeitos que a isenção visa atenuar, sem qualquer título constitucional que a tal habilite a norma' - o que põe em causa 'o princípio da igualdade, na sua vertente de igualdade perante a tributação e concomitantemente perante a concessão de uma eventual isenção, e na vertente mais geral de não discriminação negativa'.
'É assim inconstitucional o art. 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, na parte em que define como deficiente motor para efeitos do mesmo diploma apenas os cidadãos que sejam portadores de deficiência motora ao nível dos membros superiores ou inferiores [...], excluindo os demais que, obedecendo aos demais requisitos, padeçam dos mesmos efeitos enunciados nas alíneas a) ou b)'
(artigos 23º a 28º do requerimento inicial).
e) 'O vício que afecta o proémio do artigo 2º, n.º 1, reflecte-se também no seu n.º 2, na parte em que considera como um dos elementos da qualificação como multideficiente a verificação dos pressupostos do n.º 1'.
Assim ( e sendo embora certo que, alterada a solução jurídica que se extrai do artigo 2º, n.º 1, por via da declaração parcial da sua inconstitucionalidade, modificado logo ficaria também o âmbito do n.º 2 - é desejável, para clarificação total da situação, que também este último, na parte correspondente, seja abrangido por aquela declaração (artigos 29º a 32º do requerimento inicial).
2.2. O requerente juntou ao pedido dois documentos:
( o primeiro é a cópia de um ofício que dirigiu ao Bastonário da Ordem dos Médicos, solicitando que essa entidade se pronunciasse sobre a questão de saber se é possível a produção de efeitos idênticos aos descritos nas alíneas a) e b) do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 103-A/90 ( isto é, a dificuldade de
'locomoção na via pública sem auxílio de outrem ou recurso a meios de compensação' ou de 'acesso ou utilização de transportes públicos, colectivos ou convencionais' ( em situações de deficiência que não as incluídas no capítulo I da Tabela Nacional de Incapacidades, respeitando unicamente ao aparelho locomotor, e, deste modo, apenas constantes de outros capítulos, como, por exemplo, os da neurologia (capítulo III) ou angiocardiologia (capítulo IV).
( o segundo é a cópia do ofício de resposta dirigido ao Provedor de Justiça pelo Bastonário da Ordem dos Médicos, ofício esse que transcreve o seguinte parecer, emitido pelo Conselho Nacional do Exercício Técnico da Medicina sobre a questão colocada:
'Em relação ao pedido de parecer solicitado pela Provedoria de Justiça, este Conselho Nacional do Exercício Técnico da Medicina encara de forma afirmativa a produção de efeitos idênticos aos descritos nas alíneas a) e b) da norma transcrita, independentemente da causa de deficiência.'
3. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos.
4. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, foi o processo distribuído à relatora para elaboração do acórdão.
II Enquadramento das normas sub judicio
A) Evolução histórica
5. O Decreto-Lei n.º 103-A/90, de 22 de Março (com a rectificação, quanto ao teor do seu artigo 9º, publicada no Diário da República, I Série, n.º 149, Suplemento, de 30 de Junho de 1990), em que se inserem as normas em apreço, tem por objecto a concessão, aos deficientes motores, civis ou das Forças Armadas, da isenção de imposto automóvel na aquisição de veículos automóveis ligeiros para seu uso próprio. E as normas em causa interessam precisamente à determinação do âmbito subjectivo de tal isenção.
A regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 103-A/90 situa-se no desenvolvimento de uma certa evolução legislativa sobre a matéria, que importa explicitar com mais pormenor. Assim:
O Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro (rectificado por declarações publicadas no Diário da República, I Série, n.ºs 37 e 64, respectivamente, de 13 de Fevereiro de 1976 e de 16 de Março de 1976), definiu o estatuto dos deficientes das Forças Armadas, estabelecendo os pressupostos de reconhecimento desse estatuto e os direitos e regalias que o integram. As disposições nele contidas foram tornadas extensivas às forças militarizadas pelo Decreto-Lei n.º
351/76, de 13 de Maio. Entre aquelas regalias enunciava-se, no n.º 2 do artigo
15º, a das isenções tributárias quanto à aquisição de veículos automóveis utilitários, para os deficientes com grau de incapacidade superior a 60%.
Por sua vez, a Lei n.º 11/78, de 20 de Março, veio, pela primeira vez, conceder a deficientes das Forças Armadas não abrangidos pelo Decreto-Lei n.º
43/76 e a deficientes civis benefícios tributários em matéria de triciclos, cadeiras de rodas e veículos automóveis de passageiros. Tal lei foi sucessivamente objecto de interpretação pelo Despacho Normativo n.º 208/78, de
18 de Abril (publicado no Diário da República, I Série, n.º 202, de 2 de Setembro de 1978), e pelo Despacho Normativo n.º 63/79, de 14 de Março
(publicado no Diário da República, I Série, n.º 79, de 4 de Abril de 1979).
A lei acabada de referir foi substituída pelo Decreto-Lei n.º 235-D/83, de 1 de Junho (rectificado no Diário da República, I Série, n.º 148, 2º Suplemento, de
30 de Junho de 1983), que regulou, de novo, a matéria, com referência ao universo pessoal contemplado nessa lei.
É a este diploma que se segue o Decreto-Lei n.º 103-A/90, a que pertencem as normas em apreço, o qual foi emitido ao abrigo e no uso da autorização parlamentar concedida pela Lei n.º 20/89, de 28 de Julho.
Nos termos do seu próprio preâmbulo, o novo diploma veio justamente proceder à 'reformulação do regime de benefícios fiscais previsto no Decreto-Lei n.º 235-D/83, de 1 de Junho, relativo à aquisição de cadeiras de rodas, triciclos e veículos automóveis por parte de deficientes motores'.
Inicialmente, o universo pessoal dos seus destinatários continuava a ser o dos deficientes não contemplados pelo Decreto-Lei n.º 43/76.
A partir, porém, da alteração de que foi objecto pelo Decreto-Lei n.º
259/93, de 22 de Julho (rectificado por declaração publicada no Diário da República, I Série-A, n.º 280, 3º Suplemento, de 30 de Novembro de 1993), passou o Decreto-Lei n.º 103-A/90 a regular a concessão do benefício da isenção do imposto automóvel a todos os deficientes, incluindo, pois, os 'deficientes das Forças Armadas' e equiparados (antes abrangidos por aquele outro diploma).
A alteração referida é consequência da nova redacção que então foi dada ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 103-A/90 e do aditamento de novos números feito ao artigo 2º (o n.º 3) e ao artigo 5º (o n.º 6) do mesmo diploma - aditamentos esses que consagram um regime especial para os 'deficientes das Forças Armadas'
-, bem como da revogação simultaneamente operada do n.º 2 do artigo 15º do mencionado Decreto-Lei n.º 43/76.
O Decreto-Lei n.º 259/93 introduziu ainda outras alterações no Decreto-Lei n.º 103-A/90, nomeadamente a que, respeitando ao artigo 4º, elevou os limites de cilindrada dos veículos automóveis passíveis de isenção fiscal. Para o que agora importa, todavia, as que interessará reter são, antes de mais, a que acaba de assinalar-se e ainda a que se cifrou no facto de o diploma passar a versar unicamente a isenção de imposto automóvel na aquisição de veículos automóveis ligeiros (e não já também, nomeadamente, como de início, a isenção de emolumentos na importação de triciclos e cadeiras de rodas).
Entretanto, veio o Decreto-Lei n.º 103-A/90 a ser objecto de nova modificação pelo artigo 37º, n.º 3, da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 1996) - modificação essa que consistiu no desdobramento do artigo 1º em dois números, para no n.º 2 se passarem a considerar os multideficientes profundos e os deficientes motores com um grau de incapacidade superior a 90%.
E a estas situações veio somar-se - num acrescento ao teor deste novo n.º
2, que o deixou substantivamente intocado, no mais - a dos portadores de deficiência visual igual ou superior a 95 %. Tal foi a modificação que - a par de duas outras (uma das quais, a do artigo 4º, 'desligando' a isenção da cilindrada do veículo e, em lugar disso, estabelecendo um limite quantitativo máximo para o benefício) - o n.º 3 do artigo 51º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2000, posterior já à apresentação do presente pedido), introduziu ao Decreto-Lei n.º 103-A/90.
Refira-se ainda que a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes do Trabalho e Doenças Profissionais, para que se remete no corpo do artigo 2º, ora impugnado, foi também entretanto substituída pela que consta hoje do Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro.
B) As normas em apreço no seu contexto aplicativo
6. Ao cabo da evolução legislativa descrita e das alterações de que foi sendo objecto o Decreto-Lei n.º 103-A/90, o contexto aplicativo em que actualmente se inserem as normas em apreço - as quais se mantiveram intocadas - é definido pelo artigo 1º e completado pelo n.º 3 do próprio artigo 2º, que passam a transcrever-se: Artigo 1º
'1 - Os deficientes motores, civis ou das Forças Armadas, maiores de 18 anos, poderão beneficiar de isenção do imposto automóvel na aquisição de veículos automóveis ligeiros introduzidos no consumo para seu uso próprio, nos termos do disposto nos artigos seguintes.
2 - Sem prejuízo do estabelecido no número anterior, poderão ainda beneficiar da isenção nele prevista os portadores de multideficiência profunda, os portadores de deficiência motora cujo grau de incapacidade permanente seja igual ou superior a 90% e os portadores de deficiência visual igual ou superior a 95%, independentemente da sua idade.'
Artigo 2º
'1 - [...]
2 - [...]
3 - Exceptuam-se do disposto nos números anteriores os deficientes das Forças Armadas abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro, ou [a]os a eles equiparados, relativamente aos quais a isenção do imposto automóvel será concedida quando os mesmos forem portadores de incapacidade igual ou superior a
60%. '
7. Há-de convir-se em que as normas transcritas - em si e em conjunto com as do artigo 2º - não são, na sua formulação, e tendo em conta a evolução legislativa que as precedeu, um modelo de clareza e rigor sistemático...
É certo que parece bastante nítido distinguirem-se nelas três diferentes classes de beneficiários da isenção a que se reportam:
- a dos deficientes motores em geral, tal como definidos pelo n.º 1 do artigo 2º, que poderão beneficiar da isenção desde que maiores de 18 anos
(artigo 1º, n.º 1);
- a dos multideficientes profundos, tal como definidos pelo n.º 2 do artigo 2º, dos deficientes motores com incapacidade igual ou superior a 90% e dos deficientes visuais com incapacidade superior a 95%, relativamente aos quais a concessão da isenção é independente da idade (artigo 1º, n.º 2);
- e a dos deficientes das Forças Armadas abrangidos pelo Decreto-Lei n.º
43/76 e equiparados (artigo 2º, n.º 3).
Todavia, perante o teor de tais normas:
- desde logo não se percebe qual o alcance da ressalva [sem prejuízo] que no n.º 2 do artigo 1º se faz do estabelecido no número anterior;
- depois, verifica-se que, ao incluírem-se no elenco do mesmo n.º 2 os portadores de 'deficiência visual', já se está a ir, afinal, para além dos
'deficientes motores', tal como os define o n.º 1 do artigo 2º (o que menos compreensível torna a ressalva a que antes se aludiu);
- em terceiro lugar, poderia julgar-se que, ao considerarem-se, ainda no mesmo número, os 'multideficientes profundos', se estaria a contemplar uma categoria de deficientes igualmente a se, cujas características não passariam necessariamente pelas dos 'deficientes motores': mas, afinal, parece que não é assim, atenta a definição que deles se dá no n.º 2 do artigo 2º (definição onde, por outro lado, não se alcança que sentido e utilidade tenha a remissão para as condições referidas no artigo 1º, as quais não se vê quais sejam);
- e, finalmente, parece que, no tocante aos deficientes das Forças Armadas abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 43/76, e equiparados, o universo dos beneficiários da isenção se alarga de novo para além dos 'deficientes motores'
(de que se começa por falar no artigo 1º), já que, efectivamente, o âmbito dos primeiros, tal como contemplado por aquele diploma, não se fica por estes
últimos (mas aí - justamente quanto a esta categoria de beneficiários da isenção
- dir-se-á então que o n.º 3 do artigo 2º é coerente, ao exceptuá-los da necessidade da verificação das condições enunciadas nos números anteriores do mesmo artigo).
8. Seja como for, para abordar a questão de constitucionalidade que vem suscitada, não se torna necessário resolver previamente as dificuldades interpretativas (ao menos aparentes) que ficam apontadas.
É que tal questão cinge-se à definição e caracterização do que sejam
'deficientes motores', em geral, para o efeito de beneficiarem da isenção fiscal concedida, agora, pelo Decreto-Lei n.º 103-A/90, isto é, cinge-se ao modo como tal caracterização se opera no artigo 2º deste diploma. Diz apenas respeito, assim, directamente, à primeira das classes de beneficiários da isenção, antes elencadas (e, claro, também aos 'deficientes motores', com mais de 90% de incapacidade, considerados na classe de beneficiários atrás referida em segundo lugar), e, indirectamente, aos 'multideficientes profundos', na medida em que seja de facto relevante a intercomunicabilidade que aparentemente ocorre, como se viu, entre a caracterização destes e a dos primeiros.
A mesma questão, pois, já nada tem a ver com outros tipos de deficientes que possam ser igualmente abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 103-A/90, nem, em particular, com os deficientes das Forças Armadas, de que se trata no n.º 3 do artigo 2º desse diploma - conforme, de resto, é esclarecido e expressamente ressalvado no próprio requerimento inicial (cfr. artigo 4º). Bem podem, pois, deixar-se aqui de lado os preceitos do mesmo diploma relativos a essas outras situações, e quaisquer dificuldades, problemas ou até perplexidades do enquadramento sistemático que eventualmente levantem.
C) O imposto automóvel
9. O benefício fiscal a que respeitam as normas em apreço é concedido quanto ao chamado 'imposto automóvel'. Para analisar e dar resposta à questão de constitucionalidade colocada nos autos, não se torna necessário, porém, examinar agora, com pormenor, o regime desse imposto.
Deixar-se-á de seguida, em todo o caso, uma indicação sobre a sua sucessiva sede legislativa, a sua natureza e a sua incidência.
O 'imposto automóvel' (IA) foi criado pelo Decreto-Lei n.º 405/87, de 31 de Dezembro (que foi objecto de apreciação por parte do Tribunal no Acórdão n.º
473/89, in AcTC, 14º vol., pp. 41 ss), em substituição do 'imposto sobre a venda de veículos automóveis' (IVVA), originariamente instituído pelo Decreto-Lei n.º
697/73, de 27 de Dezembro (depois objecto de diversas alterações).
Logo dois anos depois, porém, foi revogado o Decreto-Lei n.º 405/87 e passou o regime do imposto a ser definido pelo Decreto-Lei n.º 152/89, de 10 de Maio (rectificado por declaração publicada no Diário da República, I Série, n.º
148, Suplemento, de 30 de Junho de 1989), sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 95/90, de 20 de Março (rectificado por declaração publicada no Diário da República, I Série, n.º 99, 2º Suplemento, de 30 de Abril de 1990), pelo Decreto-Lei n.º 262/91, de 26 de Julho (também rectificado por declaração publicada no Diário da República, I Série-A, n.º 251, 4º Suplemento, de 31 de Outubro de 1991) e pelo Decreto-Lei n.º 78/92, de 6 de Maio.
Finalmente, veio o Decreto-Lei n.º 152/89 (com as suas sucessivas alterações) a ser revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 40/93, de 18 de Fevereiro (determinado pela entrada em vigor do 'mercado interno' da Comunidade Europeia e pela necessidade de introduzir na estrutura do imposto mecanismos adaptados aos correspondentes procedimentos aduaneiros, no tocante aos veículos originários de países comunitários) ( diploma esse que é a actual sede do regime do imposto automóvel. A sua redacção tem sido objecto, todavia, de contínuas alterações, introduzidas por todas e cada uma das leis do Orçamento que se sucederam desde a sua emissão, alterações que só nalguns casos se ficaram pela actualização das taxas do imposto: noutros, com efeito, as alterações efectuadas importaram, seja uma redefinição e alargamento da incidência do imposto, seja modificações da própria estrutura da tabela de taxas, seja aperfeiçoamentos sistemáticos ou o desenvolvimento das regras de liquidação e cobrança (assim, logo as alterações da Lei n.º 75/93, de 20 de Dezembro, e depois, em especial, da Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, da Lei n.º 30-C/2000, de 29 de Dezembro, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, e, por último, da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro).
Nos termos do artigo 1º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 40/93, o imposto automóvel é
'um imposto interno' incidente sobre determinados veículos 'admitidos ou importados, no estado de novos ou usados, incluindo os montados ou fabricados em Portugal, que se destinem a ser matriculados': na última redacção deste preceito
(dada pelo artigo 40º, n.º 1, da citada Lei n.º 109-B/91) tais veículos são os especificamente indicados nas várias alíneas do mesmo preceito, mas reconduzem-se, em síntese, aos veículos automóveis ligeiros de passageiros, mistos ou de carga, aos veículos automóveis de corrida e ainda a outros automóveis principalmente concebidos para o transporte de pessoas. A lei caracteriza, depois, naturalmente, cada uma destas categorias de veículos, para efeitos de incidência do imposto, e também delimita negativamente esta última, dela excluindo expressamente certos tipos de veículos.
Trata-se de um imposto 'de natureza específica e variável em função do escalão de cilindrada' do veículo (cfr. n.º 4 do artigo 1º do Decreto-Lei, na redacção da Lei n.º 39-B/94), cujas taxas constam das tabelas anexas ao diploma, tabelas que são hoje cinco (desde também as alterações introduzidas pelo artigo
40º, n.º 1, da Lei n.º 109-B/2001), correspondendo cada uma delas a uma certa ou a certas categorias de veículos. São essas tabelas que vêm sendo anualmente actualizadas (cfr., por último, o artigo 34º da Lei n.º 32-B/2002), com excepção da tabela II (posto que contém simplesmente as 'fórmulas de conversão em centímetros cúbicos a aplicar a automóveis não convencionais').
10. Dito isto, valerá referir ainda:
- que no Decreto-Lei n.º 40/93 se prevêem (cfr. artigos 7º e seguintes), seja um regime de isenção do imposto automóvel para veículos destinados a certos fins (tais como veículos para serviço de incêndio, ambulâncias, veículos adquiridos pelas forças militares, militarizadas e de segurança) ou com certas características (automóveis antigos), seja um regime de redução de taxa, de 70%, para os veículos admitidos ou importados para o serviço de aluguer com condutor
(táxis, letra A e letra T), redução que será mesmo de 80% quando estes últimos veículos se encontrem adaptados ao acesso e transporte de deficientes;
- e que por legislação avulsa ou especial são ainda concedidas outras isenções do mesmo imposto. Assim, nomeadamente: quanto a emigrantes regressados de países não comunitários (Decreto-Lei n.º 471/88, de 22 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 258/93, de 22 de Julho), quanto às pessoas colectivas de utilidade pública e às instituições particulares de solidariedade social
(Decreto-Lei n.º 27/93, de 12 de Fevereiro), quanto a funcionários diplomáticos e consulares portugueses (Decreto-Lei n.º 56/93, de 1 de Março), quanto à transferência da residência habitual de um Estado membro da Comunidade Europeia para Portugal (Decreto-Lei n.º 264/93, de 30 de Julho, que estabelece ainda o regime de admissão temporária de veículos matriculados nesses países).
III Análise da questão de constitucionalidade
A) Interpretação e delimitação do pedido: a questão a apreciar
11. Do teor do pedido (cfr. supra, n.ºs 1. e 2.1.) decorre que este se centra exclusivamente, ao fim e ao cabo, no inciso do corpo do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 103-A/90 em que, para delimitação do universo dos 'deficientes motores', elegíveis como beneficiários da isenção fiscal prevista no mesmo diploma, se faz apelo à circunstância de se ser 'portador de deficiência motora a nível dos membros superiores ou inferiores'.
Significa isto:
- por um lado, e desde logo, que o Provedor de Justiça não questiona propriamente a restrição da isenção aos deficientes motores, tal como o n.º 1 do artigo 1º do diploma logo a delimita (cfr., de resto, o artigo 19º do requerimento inicial, bem elucidativo a esse respeito);
- por outro lado, que também não são questionados - e, por consequência, não integram o pedido - os índices ou critérios das alíneas a) e b) do n.º 1, comprovativos da existência de deficiência (cfr., a propósito, também de modo perfeitamente esclarecedor, não só os artigos 8º, 9º, 22º e 28º do mesmo requerimento, mas também o teor do pedido de parecer feito pelo requerente à Ordem dos Médicos e a correspondente resposta).
Assim entendido e delimitado o pedido, claro que o Tribunal não terá de
(nem verdadeiramente poderia) ocupar-se de uma mais ampla questão, porventura também suscitável face ao disposto no preceito em apreço - a questão relativa à própria noção e ao próprio âmbito da categoria de deficientes por ele abrangidos, tal como uma e outro emergem desde logo (e para além do impugnado inciso do corpo do artigo) dos critérios das suas alíneas a) e b).
Ou seja: a questão de saber se, descontado já esse inciso, não ficariam, ainda assim, fora da isenção (por não cobertas por essas alíneas e pela noção ou classificação de deficientes, nelas implicada) situações de limitação da mobilidade ou motilidade que, a idêntico ou semelhante título, justificariam também o reconhecimento ou concessão daquela.
Afastada assim - logo por razões processuais - a necessidade e mesmo a possibilidade de equacionar a questão de constitucionalidade em mais amplos termos (como seriam os acabados de considerar), e circunscrita antes essa questão (conforme decorre do que começou por precisar-se) ao próprio âmbito do n.º 1 do artigo 2º, reconduzir-se-á ela, pois, tão-só a saber se, no quadro da isenção, tal como aí definida e delimitada, a exigência de que a 'deficiência motora' se situe 'ao nível dos membros superiores ou inferiores' não introduz, de todo o modo, um elemento discriminatório - isto é, um elemento de desigualdade injustificada.
O sentido de semelhante questão só se clarifica, porém, à luz do que vem alegado no requerimento inicial e do entendimento da exigência em causa nele pressuposto, a saber: o entendimento de que tal exigência se reportaria à localização nos membros superiores ou inferiores da própria causa da deficiência motora e, portanto, à etiologia desta. E de tal modo que, com isso, ficariam fora da isenção todas aquelas situações em que, verificando-se embora uma deficiência (motora) funcional idêntica à definida nas alíneas a) e b) do preceito em apreço, todavia a sua causa (a lesão orgânica que produz o efeito incapacitante) se situa noutra parte do corpo (v.g., no sistema nervoso central).
Eis nos seus precisos contornos - como decorre de quanto se alega nos artigos 22º a 28º, e também do que se invoca nos artigos 10º a 13º do requerimento inicial - o que o Provedor de Justiça tem por inadmissível, de um ponto de vista constitucional; e eis, por conseguinte, a precisa questão que o Tribunal tem de apreciar.
B) O perfil da questão de constitucionalidade
12. Como se vê, o que está em causa é uma violação do princípio da igualdade decorrente - alega-se - da extensão ou âmbito de uma isenção fiscal.
Ora, as isenções fiscais - traduzindo-se, no sentido preciso do conceito, numa 'excepção' à regra geral da incidência do correspondente imposto - são elas próprias elementos que introduzem uma certa dimensão de 'desigualdade' no sistema tributário, na medida em que instituem um tratamento fiscal
'privilegiado' dos seus destinatários. Por isso mesmo, hão-de ser essas isenções justificadas por um motivo e um interesse (público) relevantes, e encontrar nesse interesse o seu fundamento.
Esta ideia recebe hoje uma expressão paradigmática na própria lei fiscal, quando a mesma, no n.º 1 do artigo 2º do Estatuto dos Benefícios Fiscais
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho), define tais benefícios como 'as medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem'.
E na doutrina acentua-se, por vezes enfaticamente, que a ocorrência de uma justificação desse tipo para a isenção é justamente condição de não violação do princípio da igualdade fiscal: assim, Nuno Sá Gomes, ao escrever que 'uma liberalidade fiscal não fundada em interesse público sempre consagraria uma desigualdade arbitrária violadora dos artºs 12º e 13º da C.R.P.' e que 'o interesse público que fundamenta o benefício fiscal, maxime a isenção, há-de mesmo ser superior ao interesse público que fundamenta a tributação', pelo que, afinal (conclui), 'um benefício fiscal, maxime uma isenção, nunca é um favor ou uma liberalidade fiscal, logo ao nível normativo, sob pena de inconstitucionalidade, pois tem que ter por fundamento um interesse público constitucionalmente relevante, superior ao correspondente interesse tutelado pela tributação' (Teoria geral dos benefícios fiscais, Lisboa, 1991, p. 62/63).
Por outro lado, claro é que para além do âmbito da isenção - ou seja, onde esta termina - regressa-se à regra geral da incidência.
Posto isto, será bom de ver que só poderá concluir-se que o âmbito de uma isenção fiscal peca por estreiteza, e é, por isso, violador do princípio da igualdade, quando seja bastante claro que deixa de fora situações relativamente
às quais o fundamento daquela (de tal isenção) vale igualmente e com a mesma intensidade. E isso tanto mais, quanto mais nítido e justificado ou até imperioso (mormente por considerações constitucionais específicas) esse fundamento se mostrar.
13. Se as isenções hão-de ter uma 'justificação', importa reconhecer, porém, que o juízo a esse respeito cabe primária e fundamentalmente ao legislador - o que vale por dizer que este goza, nessa área, de uma ampla margem de conformação. Na verdade, a matéria das isenções fiscais é uma daquelas em cuja modelação entram em jogo múltiplos e divergentes factores e em que, desde logo, a decisão passa por uma necessária ponderação entre as diversas considerações
(de política económica, de 'justiça social', etc.) susceptíveis de legitimarem ou fundarem o 'benefício' e o 'custo' fiscal ou orçamental deste: inevitavelmente, pois, que não pode deixar de estar aí aberto um largo espaço de escolha ou opção 'política', que cabe ao legislador preencher.
Reconhecido isso - como importa -, há-de igualmente reconhecer-se, porém, que a correspondente margem de conformação encontra, em todo o caso, o limite da proibição do arbítrio - não sendo designadamente aceitável que, no recorte da isenção, o legislador entre em contradição 'interna' (isto é, em contradição com o próprio fundamento da isenção), introduzindo no sistema uma diferenciação
'perversa' e convertendo uma discriminação 'benigna' numa discriminação
'maligna' (para usar, por último, conceitos da doutrina anglo-saxónica, desenvolvidos a propósito da affirmative action e da reserve discrimination: cfr., p. exemplo, Gwyneth Pitt, 'Can reverse discrimination be justified?', in Bob Hepple e Erika M. Szyszczak (eds.), Discrimination: the limits of law, Londres, 1993, p. 296).
Revertendo ao caso, e para dar-lhe resposta, há que começar, então, por analisar o fundamento da isenção tributária em causa e o sentido e âmbito geral desta, para averiguar, depois, se no segmento normativo questionado o legislador entrou, realmente, em contradição (normativa) insanável com aquele.
C) O fundamento e o perfil geral da isenção fiscal do Decreto-Lei n.º
109-A/90
14. É patente o objectivo - e, logo, a razão de ser ou fundamento 'material' - da isenção: trata-se de facilitar a aquisição de viatura própria por parte das pessoas portadoras de deficiência que afecta a sua locomoção ou motilidade, assim se compensando ou minorando o handicap de que sofrem - e nomeadamente contribuindo para quebrar a sua dependência em relação aos transportes públicos ou ao transporte individual fornecido por terceiros.
Isto mesmo, de resto, se evoca no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 103-A/90, quando nele se situa o regime de benefícios fiscais no 'conjunto mais vasto de um projecto realista e economicamente justificado de solidariedade social, em que o deficiente seja cada vez menos dependente de terceiros'.
Ora, sendo este o objectivo e o fundamento 'material' da isenção, ele não só se inscreve dentro da orientação genérica definida pelo legislador português relativamente às situações de deficiência, como dispõe mesmo de uma credencial muito específica ao nível da Constituição (independentemente já dos princípios gerais desta e dos valores por ela acolhidos, susceptíveis de lhe servirem desde logo de base).
Tal orientação genérica acha-se vasada no artigo 25º da 'Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência' (Lei n.º
9/89, de 2 de Maio), onde se dispõe que 'o sistema fiscal deve consagrar benefícios que possibilitem às pessoas com deficiência a sua plena participação na comunidade'.
A credencial constitucional específica encontra-se no artigo 71º da Constituição, relativo, justamente, aos direitos dos 'cidadãos portadores de deficiência' e, em particular, do seu n.º 2, que comete ao Estado a obrigação de
'realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência' e, bem assim, de 'assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos'.
Não importa muito sublinhar que desta cláusula constitucional não decorre que a incumbência aí cometida ao Estado haja necessariamente de ser prosseguida
(também) pela via fiscal - sendo certo que muitos outros meios, e certamente alguns muito mais directos e adequados, podem (e devem) ser utilizados na sua realização; nem tão-pouco importa reconhecer que, também por isso, dessa cláusula não decorre qualquer direito fundamental dos cidadãos portadores de deficiência a benefícios fiscais; e nem sequer importa averiguar se a mesma cláusula legitima a concessão desses benefícios, por forma mais ou menos indiferenciada, aos cidadãos deficientes, como meio genérico de compensação da sua situação desfavorecida, ou se, apesar dela (de tal cláusula), sempre tais benefícios deverão ter uma correlação específica com a deficiência e com o imposto de que se trate.
Certo é que, independentemente da consideração destes vários pontos, a cláusula do artigo 71º, n.º 2, da Constituição sempre representaria uma base constitucional mais do que suficiente para a isenção fiscal concedida pelo Decreto-Lei n.º 103-A/90, se dúvida houvesse sobre a sua legitimidade. É manifesto, na verdade, que a isenção em causa, respeitando a um imposto que incide sobre veículos e se repercute no respectivo preço, tem uma relação directa e imediata com a situação de deficiência e incapacidade a que visa atender e é especialmente adequada ao objectivo de compensá-la ou minorá-la (em geral, a propósito do sentido e alcance do artigo 71º da Constituição, e do estatuto constitucional das pessoas portadoras de deficiência, cite-se o ilustrativo estudo de António de Araújo, Cidadãos Portadores de Deficiência, Coimbra, 2001).
15. Na modelação da isenção e na definição do seu âmbito, o legislador elegeu como beneficiários da mesma - para o que aqui interessa (cfr. supra, n.º 8.) - os 'deficientes motores' (com certo grau mínimo de incapacidade), delimitando essa categoria através dos critérios das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 103-A/90. E do enunciado desses critérios resulta que o legislador não pretendeu estender a isenção a toda e qualquer situação em que ocorresse um condicionamento ou limitação da motilidade (e, em particular, da locomoção), mas apenas aos casos em que se verifique uma verdadeira incapacidade funcional nesse domínio, ainda que só parcial.
Ao proceder a uma tal delimitação do universo dos beneficiários da isenção, agiu o legislador dentro da sua (ampla) margem de conformação
'política' das soluções - podendo adiantar-se, muito embora a questão não venha suscitada (cfr. supra, n.º 11.), que não se vê como a correspondente opção possa ser constitucionalmente censurada, por inadmissivelmente 'discriminatória' e
'arbitrária' (cfr. supra, n.º 13.).
16. Mas já quanto ao inciso do corpo do n.º 1 do mesmo artigo 2º do Decreto-Lei n.º 103-A/90, que exige que a deficiência se situe 'ao nível dos membros superiores ou inferiores' - o segmento normativo objecto do pedido (v. supra, n.ºs 1., 2.1. e 11.) -, se coloca a questão de saber se não introduzirá uma entorse inadmissível na lógica normativa que preside à isenção, tal como genericamente delimitada nos termos acabados de ver. Eis a questão a que importa, finalmente, dar resposta.
Não se conhece, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, nenhum precedente que para ela seja directamente transponível.
Isso é assim mormente quanto à jurisprudência sobre normas relativas a situações de deficiência [cfr., nomeadamente, os Acórdãos n.º 46/86 (AcTC, 7º vol.), n.º 330/93 (AcTC, 25º vol.), n.º 563/96 (AcTC, 33º vol.), 319/00 (AcTC,
47º vol.) e 378/00 (AcTC, 47º vol.), todos respeitantes a deficientes das Forças Armadas, e ainda o Acórdão n.º 561/95 (AcTC, 32º vol.)], em que as questões analisadas foram de índole muito diversa da agora submetida ao Tribunal.
Mas é-o igualmente quanto à vasta jurisprudência sobre o princípio da igualdade - na qual também se não recorda nenhuma hipótese ou situação paralela, na sua estrutura e na matéria a que respeita, à que ora se encontra sub judicio. Isto, sem embargo - claro está - da aplicabilidade que a orientação ou as orientações gerais dessa jurisprudência não poderão deixar de ter a esta outra e nova situação. Para além dessa ou dessas orientações gerais, no entanto, apenas poderá apontar-se o caso versado no Acórdão n.º 377/02, sobre a tributação em IRS das pensões por preço de sangue (AcTC, 50º vol.) como o que ainda apresenta alguma ou maior proximidade com o agora em análise (não estava aí em causa, porém, uma 'isenção', stricto sensu, mas antes uma norma de 'não incidência' do imposto).
Por outro lado, sendo certo que não faltam na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo espécies versando sobre a situação jurídica e, muito em particular, a situação jurídico-fiscal de deficientes, tão-pouco nela se encontrará precedente podendo interessar directamente ao caso em apreço.
De todo o modo, não virá certamente a despropósito referir o eco que nessa jurisprudência não deixou de encontrar - e justamente com respeito às situações de deficiência - a ideia, atrás referida (cfr. supra, n.º 12.), da necessidade de uma justificação para a isenção de obrigações tributárias. É mesmo em termos muito estritos que essa ideia se reflecte nos n.ºs I e II do
'sumário' do Acórdão de 9 de Março de 2000 (Proc. n.º 024492) ou do Acórdão de
12 de Abril de 2000 (Proc. n.º 024730), onde pode ler-se que, 'por força do disposto no art. 71º da C.R.P., os cidadãos física ou mentalmente deficientes só podem ser dispensados de deveres para os quais se encontrem incapacitados, o que
é um corolário do princípio constitucional da igualdade, sendo materialmente inconstitucionais todas as normas ou interpretações da lei ordinária que se reconduzam ao estabelecimento de um regime diferenciado para os cidadãos, a nível do cumprimento de deveres, nos termos do qual eles sejam dispensados do cumprimento de obrigações para que não estejam incapacitados e sejam legalmente impostas à generalidade dos cidadãos'; e que 'o conceito de invalidez adoptado pelos arts. 25º, n.º 3, e 80º, n.º 6, do C.I.R.S., nas redacções iniciais, não poderia, sem incorrer em inconstitucionalidade material, alterar a amplitude do conceito de deficiência que emana do n.º 1 do art. 71º da C.R.P.' (transcreve-se da versão disponível em www.dgsi.ptjsta.nsf).
D) A resposta à questão da inconstitucionalidade
17. A resposta à questão de constitucionalidade suscitada pelo Provedor de Justiça depende do entendimento que se atribua ao inciso do corpo do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 103-A/90 ('deficiência motora ao nível dos membros inferiores ou superiores') que vem impugnado.
Pode entender-se que a norma respeita apenas aos casos em que a própria causa da deficiência - a lesão orgânica que produz o efeito incapacitante - se situa nos membros inferiores ou superiores, de tal modo que só nessas situações seria reconhecida a isenção.
Esse entendimento corresponde a uma das definições possíveis de
'deficiência motora' - identificada, justamente, como uma lesão nos membros do corpo. Poderia até fundamentar-se tal entendimento na própria 'Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes do Trabalho e Doenças Profissionais' (para que justamente remete o preceito em apreço e que consta hoje do Decreto-Lei n.º
341/93): tal Tabela, com efeito, distingue e classifica as incapacidades em função do 'aparelho' ou dos 'órgãos' onde se localiza a lesão (salvo num caso, que é do capítulo XVI, respeitante a 'oncologia') e trata no seu capítulo I precisamente do 'aparelho locomotor'.
Não há dúvida porém de que ocorrem outras situações de deficiência, tendo a sua causa ou origem em lesão de outros órgãos que não os membros inferiores ou superiores, e que se traduzem na impossibilidade, pura e simples, ou numa diminuição ou limitação, da possibilidade de utilização desses membros idêntica
à que pode derivar de uma lesão neles directamente situada.
Tais situações são do conhecimento e da experiência comuns, e são naturalmente reconhecidas na resposta da Ordem dos Médicos (ao pedido de esclarecimento que, a esse respeito, lhe foi formulado pelo Provedor de Justiça) cuja cópia foi junta com o requerimento inicial (supra, n.º 2.2.). Basta pensar em situações desse tipo originadas, seja por lesões do sistema nervoso central (contempladas, já não no Capítulo I, mas no Capítulo III, sob a epígrafe 'Neurologia', da Tabela de Incapacidades), seja mesmo por lesões situadas ainda no aparelho locomotor (e, assim, consideradas ainda no Capítulo I dessa Tabela), mas não nos membros inferiores ou superiores ou em parte deles (e antes no tórax ou na coluna vertebral).
Ora, se se operasse com uma noção tão estrita de 'deficiência motora', e se, na base dela, se conferisse ao segmento normativo sub judice o entendimento que ficou descrito, a correspondente isenção deixaria de fora situações de incapacidade funcional dos membros inferiores ou superiores (isto é, de inabilitação, total ou parcial, da função motora destes), que, desse ponto de vista (da incapacidade em que se traduzem) não se distinguem daquelas que directamente ficariam sob a sua égide.
18. A verdade, porém, é que, tendo em conta a letra do preceito questionado bem como o seu contexto, parece claro que a expressão 'portador de deficiência motora ao nível dos membros inferiores ou inferiores' comporta perfeitamente a interpretação segundo a qual há-de tratar-se de uma deficiência com expressão funcional nesses membros, ainda que aí se não situe a lesão que é a sua causa.
No mesmo sentido vai o elemento histórico da interpretação. Com efeito, o inciso em causa só foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 103-A/90, não constando dos diplomas anteriores sobre a matéria, nomeadamente do Decreto-Lei n.º
235-D/83, que imediatamente o precedeu (cfr. supra, n.º 5.): ora, tal aditamento parece estar relacionado com o propósito, que também foi o daquele Decreto-Lei, como se lê no respectivo preâmbulo, de alargar o âmbito da isenção 'aos deficientes cuja incapacidade se situa ao nível dos membros superiores'. Sendo assim, dir-se-á que a 'história' do preceito não só não imporá um entendimento estrito do mesmo inciso (no sentido de que a própria causa da deficiência - a lesão orgânica que produz o efeito incapacitante - há-de situar-se nos membros inferiores ou superiores), mas até favorecerá um seu entendimento mais alargado.
Por último, se podem encontrar-se definições de 'deficiência motora' que têm correspondência num entendimento estrito do segmento normativo em apreço, outras há, porém, mais latas ou mais amplas, e que justamente apontam, por isso, no sentido de uma diversa interpretação desse segmento. É o caso, por exemplo, da definição avançada por Schneeberger Ataíde, o qual, qualificando a
'deficiência motora' como um 'baixo nível motor', esclarece que 'pode a deficiência abranger toda a motilidade ou somente parte desta e, num ou noutro caso, ser de causa central (centros nervosos), depender de causas gerais
(carências alimentares, vitamínicas, doenças do metabolismo), de lesões dos nervos periféricos, dos ossos, tendões ou músculos' (v. 'Deficiência motora', in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Lisboa, 6º vol., cl. 900; do mesmo Autor, cfr. 'Motilidade voluntária', na mesma Enciclopédia, 13º vol., cls. 1442 ss.).
19. Mais relevante, para o que agora importa, do que o que fica referido é a circunstância de a Administração fiscal, na sua prática mais recente, haver abandonado o entendimento estrito do segmento normativo em apreço - segundo o qual a lesão ou enfermidade tinha de se situar sempre ao nível dos membros inferiores ou superiores - que vinha adoptando, e ter passado a perfilhar um entendimento mais lato dele, centrado antes sobre o efeito incapacitante da lesão e a sua projecção funcional àquele nível.
Esta nova orientação da Administração foi a seguida, pelo menos, na resolução (de que o Tribunal Constitucional pôde ter conhecimento) de alguns casos concretos que foram apreciados nos últimos anos - sendo que parecem particularmente instrutivos sobre a evolução ocorrida a 'informação', o
'parecer' e o despacho que recaíram sobre o caso que motivou um 'pedido de esclarecimento' da Alfândega de Ponta Delgada, a que o Tribunal teve acesso.
Ora, neste entendimento, o segmento em apreço do corpo do n.º 1 do artigo
2º do Decreto-Lei n.º 103-A/90 não traduz qualquer violação do princípio da igualdade. Com efeito, visando a isenção fiscal em causa compensar determinada
'incapacidade' - uma incapacidade da função locomotora -, o critério delimitador do seu âmbito deixa de ser, nesta interpretação, uma exigência ligada ao lugar ou órgão do corpo em que se situa a lesão que é causa dessa incapacidade.
Assim interpretada a norma, a isenção aproveita a todos os cidadãos que tenham problemas de motilidade com expressão funcional nos membros inferiores ou superiores, independentemente de qual seja o lugar ou órgão do corpo em que se situe a lesão causadora de tais problemas.
20. O Provedor de Justiça, na parte final do requerimento que corporiza o presente pedido de fiscalização de constitucionalidade, explica o motivo pelo qual decidiu incluir no mesmo a norma do n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
103-A/90. Trata-se - recordando - de que 'o vício que afecta o proémio do art.
2º, n.º 1, reflecte-se também no seu n.º 2, na parte em que considera como um dos elementos da qualificação como multideficiente a verificação dos pressupostos do n.º 1', e de que é desejável que a situação fique inteiramente clarificada'.
Ora, deve começar por assinalar-se que, na versão inicial do Decreto-Lei n.º 103-A/90, as duas normas (o n.º 1 e o n.º 2) tinham ou, pelo menos, pareciam ter objectivos e âmbitos diferentes: o n.º 1 respeitava directamente à delimitação do âmbito da isenção fiscal, ao passo que o n.º 2 ( ou seja, a qualificação como multideficiente profundo ( serviria tão-só para dispensar a titularidade da carta de condução e permitir a condução do veículo por terceiros
(cfr. n.º 3 do artigo 5º).
Dir-se-ia, porém, que a situação veio a alterar-se com o aditamento de um n.º 2 ao artigo 1º do Decreto-Lei n.º 103-A/90, operado pela Lei n.º 10-B/96 (v. supra, n.º 5.), e que, a partir de então, passou a ocorrer uma intercomunicabilidade 'necessária' ou 'automática' entre as duas normas.
A verdade, no entanto, é que a interpretação conjugada dos n.ºs 1 e 2 do artigo 2º, e ainda do artigo 1º, não deixa de suscitar alguma perplexidade - que se deixou atrás assinalada (cfr. supra, n.º 7.).
De todo o modo, tendo em conta o juízo de não inconstitucionalidade que o Tribunal formulou quanto às normas constantes do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 103-A/90, tal juízo não pode deixar de estender-se ao n.º 2 do mesmo artigo.
IV Decisão
21. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 2º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, de 22 de Março, 'na parte em que reservam o seu âmbito de aplicação a quem seja portador de deficiência motora a nível dos membros superiores ou inferiores'.
Lisboa, 8 de Abril de 2003 Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Mário José de Araújo Torres (com a declaração de que - em especial face ao teor dos artigos 11º e 23º do requerimento inicial e em consonância com a consulta feita pelo requerente à Ordem dos Médicos - propenderia a dar ao pedido um alcance mais amplo, abrangendo as situações em que as lesões causadoras da deficiência motora, com os efeitos descritos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº
2º do Decreto-Lei nº 103-A/90, de 22 de Março, têm a sua sede e a sua origem causal em outras zonas do corpo que não os membros superiores e inferiores) José Manuel Cardoso da Costa
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