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Proc. nº 588/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A, instaurou, junto do Tribunal Cível de Vila Franca de Xira, acção declarativa constitutiva contra B, pedindo a anulação da deliberação social da ré, de 30 de Junho de 1997, pela qual se procedeu à redução do capital social, para cobertura dos prejuízos ocorridos até 31 de Dezembro de 1994. O Tribunal Cível de Vila Franca de Xira, por sentença de 20 de Dezembro de 2000, decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
2. A autora interpôs recurso da decisão de 20 de Dezembro de 2000 para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas respectivas alegações, a recorrente sustentou a inconstitucionalidade do artigo 94º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais, por violação do artigo 62º da Constituição, na medida em que permite que a deliberação de redução do capital, não prevista nos estatutos da sociedade, produza efeitos na esfera dos sócios que não votaram favoravelmente tal deliberação. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 8 de Novembro de 2001, considerou o seguinte: Finalmente, não se vê se tenha ‘expropriado’ qualquer direito ou crédito à A. apelante com a extinção das suas participações (F25), nos mesmo termos e proporções dos mais accionistas das acções ordinárias (F48), pois essa era a sua expectativa desde as deliberações de aumento de capital de 1995 e 1997. Era mesmo ameça de «condição resolutiva», como fora o projecto de «reproduzir as condições» jurídicas de «produção» da empresa da ré apelada. Foi um tratamento igual e esperado para todos, pelo que só de si a A. se pode queixar – sibi imputet. Por outro lado, nem se demonstra tivesse tido, para além do risco próprio de accionista, normal e comum nos negócios, um qualquer empobrecimento
(art° 473° CC) que justificasse ponderação judicial. Em consequência, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.
3. A, interpôs recurso do acórdão de 8 de Novembro de 2001 para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas respectivas alegações, a rcorrente sustentou o seguinte:
4. A tutela dos interesses dos sócios afectados por tão drástica medida justifica, por isso, que a deliberação que aprova uma redução de capital por extinção de participações só possa afectar as participações detidas pelos sócios que a não tenham votado favoravelmente se, no momento em que eles adquiriram tais participações, essa possibilidade de extinção para redução do capital estiver já prevista nos estatutos da sociedade.
5. De outra forma, estaria a conceder-se à assembleia geral de uma sociedade comercial o poder de expropriar alguns dos sócios das participações por eles detidas sem o seu acordo e sem que tais sócios pudessem, sequer, contar com a eventualidade desta medida quando adquiriram essas mesmas participações, expropriação essa para a qual não se encontra qualquer fundamento legal.
6. A entender-se que tal direito de expropriação é susceptível de se apoiar em algum preceito legal, designadamente numa determinada interpretação do disposto no art. 94°, nº 1, alínea b) do C. S. C., a disposição em causa será então inconstitucional, por violação do disposto no art. 62° da Constituição, inconstitucionalidade essa que aqui expressamente se invoca. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 9 de Maio de 2002, considerou o seguinte:
(...)
– Acresce, e no tocante à questão da não constitucionalidade, do previsto, no artigo 59º, b), do C.S.C., que a mesma não depara, na jurisprudência, com qualquer similitude, em relação à situação, já discutida, da expropriação por utilidade particular, a respeito do artigo 490º do C.J.C.;
– Com efeito, 'in casu', não se trata de expropriar alguns accionistas, ao minoritário, da [sociedade]
– mas sim, o de viabilizar à sociedade, e no acatamento rigoroso, do aludido princípio da igualdade de tratamento e da proporcionalidade, a possibilitação económico financeira, bem como o saneamento do respectivo balanço;
– ou seja e, na verdade, o tratamento de todos os accionistas, na mencionada redução de capital, processou-se, em plano, de perfeita igualdade;
– E tal, porque a todos são extintas participações sociais, na exacta proporção, das que são detidas por cada qual;
– Não existe, pois, no caso 'sub judice', qualquer ataque, ou lesão da propriedade privada, e porque, não deixaram, de ser acatados, os valores, que na nossa ordem jurídica, protege;
– Valores, esses, que foram, aliás, criados recentemente e consagrados, nos artigos 194º a 197º, do novo, C.V.M.;
– Aliás, no contexto apurado, do mencionado acatamento, do princípio da igualdade de tratamento e da proporcionalidade é, óbvio, outrossim que não ocorrem no caso 'sub-judicio' à violação da regra garantística que é o suporte de qualquer quebra constitucional;
– E, como ensina, o Professor Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª Edição, 1993, a página 379, ao abordar, genéricamente, toda e qualquer violação dessa índole;
– Nesse sentido, também e, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 19.6.96, nº 786/96, publicado no DR, II, de 20.8.96, a página 11.660;
– Neste pressuposto, pois, é evidente, outrossim, a não ocorrência, da inconstitucionalidade invocada pela recorrente, nomeadamente, no que concerne a uma violação do artigo 62º, da C.R.P.,
– Com efeito, a consagração, nesse princípio constitucional, do direito de propriedade privada, não foi posta em causa, pela providência jurídico-financeira efectuada e, com a destinação da recomposição do capital líquido da recorrida;
(...) Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
4. A, interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 9 de Maio de 2002, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 94º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais, 'interpretada no sentido de que por mera deliberação que aprova uma redução de capital por extinção de participações se pode extinguir, para mais sem contrapartida, as participações detidas pelos sócios que a não tenham votado favoravelmente, ainda que essa possibilidade de extinção para redução do capital não conste dos estatutos da sociedade ou neles haja sido introduzida posteriormente à aquisição da participação pelos sócios visados'. Junto do Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. A redução de capital por extinção de participações é dotada de especiais características que a singularizam face às outras duas modalidades de redução do capital, pois que, por um lado, implica a pura e simples eliminação das participações afectadas, enquanto que o reagrupamento e a diminuição do valor nominal das participações apenas acarretam uma simples remodelação do seu conteúdo, e, por outro lado, diz respeito somente a determinadas participações - e porventura apenas a alguns sócios -, ao passo que as demais têm sempre carácter geral, ou seja, atingem necessariamente, por força da lei, a globalidade das participações e a totalidade dos sócios.
2. A tutela dos interesses dos sócios afectados por tão drástica medida justifica, por isso, particulares cautelas, em ordem a salvaguardar a sua compatibilização com a garantia constitucional do direito de propriedade, consagrada no art. 62° da Constituição.
3. A interpretação que no douto acórdão recorrido é feita da norma do art. 94°, nº 1, al. b), do C. S. C. conduz a que este tenha sido aplicado num sentido que contraria clamorosamente aquela garantia constitucional da propriedade.
4. Admitir a constitucionalidade da norma do art. 94°, nº 1, al. b), do C. S. C., na interpretação do douto acórdão recorrido, significaria que a protecção constitucional da propriedade seria compatível com um acto expropriativo que se traduzisse na extinção de acções determinada pela vontade do detentor da maioria do capital, que teria a faculdade de seleccionar as acções a eliminar (e, por essa via, excluir da sociedade accionistas porventura indesejados) e ficaria mesmo dispensado do pagamento da justa contrapartida, sem respeito pelo fundamental princípio da igualdade e sem que o interesse da sociedade justificasse tal desapropriação.
5. É pressuposto constitucional da desapropriação, enquanto concretização do princípio da indemnização dos actos lesivos de direitos de outrem, que é basilar num Estado de direito democrático, o pagamento de uma justa indemnização àquele que se vê privado do seu direito.
6. Porém, à extinção das acções objecto da redução de capital da Recorrida não correspondeu o pagamento de qualquer contrapartida - as acções foram pura e simplesmente extintas, e os respectivos titulares ficaram privados de qualquer compensação.
7. Não é também conforme com a garantia constitucional do direito de propriedade a possibilidade dada ao accionista maioritário de determinar uma extinção selectiva das acções, decidindo, a seu bel-prazer, a exclusão de accionistas indesejados ou inconvenientes.
8. Na hipótese dos autos ocorreu, justamente, uma extinção selectiva de participações sociais, pois que, por via da aprovação da deliberação de redução do capital, e sob a capa de uma medida supostamente geral, operou-se a extinção das acções emitidas anteriormente aos dois aumentos de capital que antecederam a redução, tendo sido excluídas dessa extinção as acções emergentes destes aumentos, subscritas pelo accionista maioritário.
9. A eliminação selectiva de acções operada através da aprovação da deliberação de redução do capital social da Recorrida não obtém qualquer justificação à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
10. Não é identificável nenhum princípio, valor ou interesse dotado de dignidade constitucional cuja prossecução justifique a mencionada expropriação das acções detidas pelos accionistas atingidos.
11. Nada foi alegado pelo accionista dominante, quando propôs a aprovação da deliberação de redução de capital, nem sequer foi demonstrado pela Recorrida na presente acção, que justificasse que a redução de capital tivesse de obrigar à eliminação das acções detidas pelos accionistas minoritários e à exclusão daqueles do grémio social.
12. A genérica cobertura de prejuízos, ou o saneamento do balanço, ou ainda a cosmética das contas da Recorrida não justificam, manifestamente, que se opte por extinguir as acções dos accionistas minoritários em lugar de outros meios adequados e menos onerosos para alcançar qualquer daqueles propósitos.
13. Em suma, o douto acórdão recorrido, ao fundar no art. 94°, nº 1, al. b), do C. S. C., uma medida que conduz à extinção das acções da Recorrente e dos demais accionistas minoritários da Recorrida, sem direito a contrapartida e sem que qualquer interesse societário relevante o justificasse, à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, fez aplicação da referida norma comum sentido claramente desconforme com o art. 62° da Constituição, sancionando uma clamorosa ofensa do direito de propriedade tal como tutelado na Constituição. Por seu turno, a recorrida contra-alegou, concluindo o seguinte:
1. Em suma, o douto acórdão recorrido na interpretação e aplicação que fez da norma do artigo 94°/al. b) do C.S.Com., no sentido de permitir a redução do capital social (e das participações sociais em que ele se divide) para cobertura de prejuízos (distribuindo o sacrifício proporcionalmente e de forma igualitária por todos os accionistas ordinários), respeitou escrupulosamente o disposto no artigo 62° da CRP.
2. Da participação social deriva um feixe de direitos e obrigações para o seu titular, designadamente o direito ao lucro e o de gozar da autonomia patrimonial
(responsabilidade limitada por dívidas sociais) das sociedades comerciais e, por outro lado, as obrigações de quinhoar nas perdas e de respeitar uma medida ideal entre o capital social (garantia nominal dos credores) e o património social
(garantia real dos credores), só possível se, em caso de prejuízos, se efectuar uma redução do capital social (e consequentemente das participações sociais que o representam).
3. No âmbito do processo de recuperação de empresas e com vista à viabilidade financeira da Recorrida foi promovida uma providência jurídico-financeira destinada a recompor o seu capital líquido.
4. A medida adoptada consistia num pedido de esforço financeiro adicional aos accionistas, através de dois aumentos de capital, com a emissão e subscrição de acções privilegiadas por 'direitos especiais'.
5. A Recorrente, participando através do seu órgão administrativo, CA, em todas as tomadas de decisão, optou por não subscrever as novas acções, auto excluindo-se do regime de eficácia da nova categoria de acções com direitos especiais «saída» dos aumentos do capital (art. 24° e 302 do C.S.Cm.).
6. Na sequência do referido processo de recuperação e da respectiva medida promovida (art. 87° e 88° do CPEREF) e tal como já era expectável por todos os accionistas, ex vi art. 236°, 349° e 351° do CCv. era suposto e necessário proceder-se à «redução do capital para cobertura de prejuízos».
7. A redução do capital de uma sociedade anónima para cobertura de perdas obedece às modalidades previstas no art. 94° do C.S.Cm.. A extinção de participações sociais tem o mesmo conteúdo da redução do valor nominal ou do reagrupamento de participações sociais, já que todas representam uma ablação de certo valor nominal já que significa a cobertura de perdas);
8. A amortização compulsiva ou coactiva de acções prevista no art. 342° do C.S.Cm. é uma finalidade em si mesma e não se confunde com a redução do capital para cobertura de perdas, encontrando cada uma das realidades regime jurídico distinto e valoração diferente.
9. A redução de capital para cobertura de perdas goza de um regime de favor no C.S.Cm. precisamente porque há que tutelar o interesse social, incluindo o interesse dos credores;
10. A redução de capital em concreto foi aprovada pela assembleia geral dos accionistas, titulares das acções ordinárias e abrangidos de forma proporcional e igualitária pela redução do capital;
11. Não se tratou nos autos de qualquer amortização forçada de algumas acções, mas antes foram abrangidas todas as acções da sociedade, salvo as acções
«especiais».
12. A interpretação do direito especial conferido nos termos do art. 24° do C.S.Cm. apela ao seu elemento literal ou declarativo, porque não é necessário recorrer a qualquer outro elemento de interpretação - in claris non fit interpretatio -.
13. O facto de a Recorrente não ter exercido o seu direito preferencial na subscrição dessas novas acções emitidas nos dois aumentos de capital, demonstra a atitude abusiva da Recorrente num autêntico venire contra factum proprium ou ubi commoda ibi incommoda.
14. Ficou provado que a redução de capital serviu para cobrir prejuízos e que o património social era inferior à soma do capital e reservas, ou seja, que o capital próprio da Recorrida era negativo (tal significa que o património representado pelas acções extintas era negativo).
15. Ficou, assim, provado que havia necessidade de reforçar capitais e meios financeiros.
16. Ficou assim provado o interesse social dos aumentos de capital, que não foram sequer sindicados pela Recorrente, e o da redução para cobertura de perdas
– repete-se que este fim até é protegido pelo sistema legal positivo, v.g. art.
94° e 95°, ambos do C.S.Cm.-.
17. Tratou-se apenas de proceder à redução do capital social da empresa a fim de cobrir prejuízos e fazer corresponder esse capital ao respectivo património liquido.
18. O princípio da igualdade e a proporcionalidade de todos os accionistas titulares de acções ordinárias foi integral e escrupulosamente respeitado e, por força da correcta interpretação do direito especial conferido à categoria de acções, os titulares dos direitos especiais ficaram a coberto dessa redução - excluídos, parcialmente, da obrigação de quinhoar nas perdas - nos termos dos estatutos - categoria de acções especiais - e da lei – arts. 20º, 22° e 24° do C.S.Cm.).
19. A questão da não constitucionalidade do disposto no artigo 59°/b do C.S.Com. não encontra na jurisprudência qualquer semelhança com o caso já debatido da expropriação por utilidade particular a propósito do artigo 490º do C.S.Com.. Não se trata de expropriar alguns accionistas (os minoritários) de bens, mas outrossim de possibilitar à sociedade, com o respeito escrupuloso do princípio da igualdade de tratamento e da proporcionalidade, a viabilização económico-financeira e o saneamento do seu balanço dos prejuízos. Todos os accionistas ordinários são tratados na redução de capital com igualdade: a todos são extintas participações sociais na proporção das por si detidas. Não há qualquer ataque à propriedade privada, mas obedece a valores consolidados na nossa ordem jurídica, aliás, de origem recente com a previsão dos artigos 194° a
197° do novo CVM.
20. Falar de justa indemnização de uma participação social que representa um valor económico negativo (consumido com prejuízos) é uma falácia, pois a redução do capital para cobertura de prejuízos não confere, por definição, qualquer direito aos abrangidos, mas apenas representa a execução de uma obrigação de todos os sócios de, em certos termos, quinhoarem nas perdas.
Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
5. O artigo 94º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais, tem a seguinte redacção:
1 – A convocatória da assembleia geral para redução do capital deve mencionar: a) A finalidade da redução, indicando, pelo menos, se esta se destina à cobertura de prejuízos, a libertação de excesso de capital ou a finalidade especial; b) A forma da redução, mencionando se será reduzido o valor nominal das participações ou se haverá agrupamento ou extinção de participações. A recorrente impugnou no presente recurso de constitucionalidade uma dada dimensão normativa relativa aos efeitos da deliberação social de redução do capital da sociedade. O preceito impugnado refere-se, porém, literalmente, aos elementos que devem constar da convocatória da assembleia geral. Por outro lado, o tribunal a quo assumiu como dimensão normativa impugnada a norma da alínea b) anteriormente transcrita apesar de ter cometido um lapso na identificação de tal norma [a referência ao artigo '59º, b), do CSC' deve-se, com efeito, a lapso manifesto, já que o preceito invocado nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça foi o 94º, nº 1, alínea b), do mesmo Código]. Não cabe ao Tribunal Constitucional averiguar se o direito infraconstitucional no caso foi bem ou mal interpretado, nomeadamente se os preceitos em causa corresponderiam às normas questionadas, mas tão-só apreciar se as normas que fundamentaram as decisões judiciais são ou não inconstitucionais. No caso vertente, em rigor, é a norma do artigo 463º, nº 1, que atribui à assembleia geral competência para a redução por meio de extinção de acções próprias. Todavia, é efectivamente a alínea b) do nº 1 do artigo 94º (apesar de expressamente referida à convocatória da assembleia) que contém o critério normativo a que obedecerá a redução. E é tal critério normativo que a recorrente impugna, por considerar inconstitucional (contra o entendimento expendido e apresentado como ratio decidendi pelo tribunal a quo). A única dúvida que poderia subsistir respeita à possibilidade de conjugar os artigos 94º, nº 1, alínea b), e 463º, nº 1, para deles extrair a norma aplicada pela decisão recorrida. A verdade, no entanto, é que este último preceito nunca foi sequer mencionado pelo recorrente, não cabendo, evidentemente, ao Tribunal Constitucional ampliar o objecto do presente recurso. Deste modo, apreciar-se-á o objecto do presente recurso tal como vem definido pela recorrente.
6. A recorrente considera inconstitucional, por violação do direito de propriedade, consagrado no artigo 62º da Constituição, a dimensão normativa segundo a qual uma deliberação social de redução do capital produz efeitos mesmo relativamente a sócios que não votaram favoravelmente tal deliberação e mesmo que tal possibilidade não esteja prevista nos estatutos da sociedade comercial. A apreciação da questão de constitucionalidade normativa submetida à apreciação do Tribunal Constitucional nos presentes autos pressupõe a explicitação do contexto fáctico e jurídico em que ocorreu a aludida redução do capital. A redução do capital social deliberada pela recorrida ocorreu no contexto de um processo de recuperação da empresa, tendente à sua viabilização económica e financeira. Tal viabilização visa permitir a manutenção no mercado de uma empresa que naturalmente assegura postos de trabalho e constitui uma unidade produtiva.
É pois neste quadro que deve ser confrontada a dimensão normativa impugnada com o artigo 62º da Constituição.
7. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 391/2002, apreciou a conformidade à Constituição dos artigos 100º, nº 2, e 108º, do Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresas e Falências, na medida em que permitem a alienação forçada de participações sociais. Nesse aresto, o Tribunal entendeu o seguinte:
(...)
5. A protecção do direito à propriedade encontra-se consagrada no artigo 62º da Constituição. A consagração constitucional de tal direito confere uma protecção efectiva contra privações ou restrições arbitrárias ou desprovidas de fundamento do direito em causa (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, p. 332). A tutela constitucional do direito à propriedade não significa, porém, que o legislador não possa consagrar em determinados casos limitações ou restrições a esse direito (cf., neste sentido, referindo-se genericamente aos direitos fundamentais, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª Edição, 2001, p. 274 e ss). Com efeito, não é incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afiguram necessárias à prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados. No Acórdão n.º 471/2001, o Tribunal Constitucional, confrontando o artigo 101º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e Falência com o artigo 62º da Constituição, considerou que 'o facto de o texto constitucional não estabelecer restrições explícitas à propriedade privada não significa que elas não possam existir'. Também no Acórdão 187/2001, o Tribunal Constitucional refere que o direito de propriedade deve ser articulado com outras exigências constitucionais. Na ordem axiológica constitucional é possível, pois, encontrar fundamento legítimo para a restrição de dimensões mais ou menos abrangentes do direito de propriedade. Com efeito, consubstanciando a Constituição uma multiplicidade de valores, há que proceder à compatibilização e harmonização desses valores, o que implicará, em determinados casos, compressões ou afectações, em face de uma ponderação de interesses assente em critérios também eles constitucionalmente relevantes. Não é, portanto, procedente sustentar, como parece pretender a recorrente, que a Constituição apenas admite limitações ao direito à propriedade no caso de expropriação por utilidade pública (neste sentido, cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 334).
(...)
8. Ora, no presente caso, como se sublinhou, é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma que prevê a eficácia da deliberação de redução de capital social relativamente aos sócios que não votaram favoravelmente tal deliberação, sem que conste tal possibilidade dos estatutos da sociedade e sem qualquer contrapartida patrimonial. Na perspectiva dos sócios que verão reduzidas as suas participações sociais, estarão em causa os respectivos interesses patrimoniais que se concretizavam nos direitos inerentes a essa titularidade os quais são reduzidos ou até suprimidos. Será violado o artigo 62º da Constituição ou qualquer outro preceito constitucional? Para responder a tal questão, haverá que considerar desde logo que a afectação daqueles direitos patrimoniais ocorre para salvaguardar a subsistência de uma unidade produtiva relevante no mercado empresarial, de postos de trabalho e, em última instância, de um factor de desenvolvimento regional e, nessa medida, nacional. Por outro lado, a situação de empresa em recuperação revela uma desvalorização acentuada do valor patrimonial de tais direitos, o que tem de se reflectir na dimensão da respectiva afectação. Visando a redução em causa a cobertura de prejuízos e, por essa via, a reposição da congruência entre o valor do capital social da empresa e a sua situação económica real, as participações abrangidas pela redução já se encontravam, mesmo antes dessa redução, afectadas no seu valor efectivo que era já então necessariamente inferior ao respectivo valor nominal (e, porventura, até negativo). A procedência da tese da recorrente acarretaria, em última análise, uma desvalorização significativa de todas as participações sociais, uma vez que afectaria as possibilidades de recuperação da empresa, podendo mesmo vir a ser definitivamente comprometida qualquer possibilidade de recuperação do capital investido. Assim, e de acordo com esta perspectiva, a não concretização da redução, impedindo a recuperação económica da empresa, implicaria necessariamente uma afectação desta forma de propriedade e nada adiantaria à recorrente, na medida em que ela passaria a ser titular de participações numa empresa falida. Por fim, a recorrente teve a possibilidade de participar, anteriormente, em dois aumentos de capital, subscrevendo acções privilegiadas por 'direitos especiais'. A participação no esforço financeiro de recuperação da empresa permitir-lhe-ia não ser prejudicada no que se refere à titularidade da propriedade da empresa. A não participação da recorrente no esforço financeiro de recuperação da empresa coloca-a numa posição de menor responsabilização pela propriedade de que é co-titular que justifica que a sua posição não mereça qualquer tratamento privilegiado relativamente aos accionistas que votaram a deliberação de redução de capital ou equiparado ao dos accionistas que participaram nos aumentos de capital anteriores.
Assim, dada a situação de fragilidade económica e financeira da sociedade, que exigiu um esforço económico dos sócios traduzido nos aumentos de capital realizados anteriormente, a recorrente, ao não participar nesse esforço
(não subscreveu esses aumentos de capital), colocou-se na posição de correr um risco particularmente intenso de vir a ser afectada por uma ulterior redução do capital (que veio, como era previsível, a concretizar-se), não estando, por isso, numa situação que justifique, por si, qualquer ulterior compensação, como poderia equacionar-se se pudéssemos concluir que se tratava de situação análoga
à expropriação, perante uma expropriação por utilidade privada ou perante uma pura ablação de direitos. E note-se que, mesmo nos casos de venda forçada de participações sociais tratado pelo Acórdão nº 491/2002 – D.R., II Série, de 22 de Janeiro de 2003, o Tribunal não se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade, tomando, aí, apenas em consideração a natureza corporativa da propriedade. Ora, no caso, estamos perante normas que prevêem deliberações adequadas à preservação da empresa e da propriedade no seu todo que interferem em direitos dos co-titulares da mesma na medida adequada ao funcionamento da empresa e aos riscos inerentes à titularidade de acções, não conflituantes com o artigo 62º da Constituição.
9. Conclui-se, portanto, pela improcedência do presente recurso.
III Decisão
10. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando consequentemente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 19 de Março de 2003 Maria Fernanda Palma Mário José de Araujo Torres Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida