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Proc. nº 582/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figuram como recorrentes A e outros e como recorrido o Condomínio do Prédio sito na Rua ... é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil, interpretada 'no sentido de que o recebimento dos embargos só suspende a execução se tal vier a ser requerido pelo embargante e prestada caução, sendo esse o único momento em que tal possibilidade pode ser usada, o que determina, necessariamente, a extinção da instância no que aos embargos respeita, no caso do embargante pretender salvaguardar o seu património em sede de venda judicial, impedindo que o tribunal, neste aspecto, conheça e pronuncie uma decisão judiciária'. Os recorrentes haviam deduzido embargos de executado no âmbito da acção executiva instaurada com base em acta da assembleia de condóminos, para pagamento de 1.134.911$00, acrescidos de juros legais. Não prestaram caução nem requereram a suspensão da execução, tendo apenas requerido, a fls. 150, a emissão de guias para pagamento da quantia exequenda e acréscimos legais, requerendo então a suspensão da venda. Na sequência do pagamento da quantia exequenda foi a acção executiva julgada extinta e os embargos julgados supervenientemente inúteis. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Maio de 2002, considerou-se o seguinte:
2. A questão colocada no recurso traduz-se em saber se no âmbito de uma execução em que foram deduzidos e recebidos embargos de executado, podem os executados efectuar o 'depósito' da quantia exequenda e custas prováveis quando a venda já está determinada e marcada, obtendo a suspensão da mesma, obstando a pendência dos embargos à cessação da execução nos termos do art. 916° do CPC. Genericamente falando, deriva deste preceito que, em qualquer estado do processo executivo para pagamento de quantia certa pode o executado, ou outra qualquer pessoa, fazer cessar a execução, pagando as custas e a dívida (nº 1). Para além da enunciação deste princípio geral, os restantes números do preceito indicam os trâmites a seguir, com vista a evitar prejuízos no património do executado, procurando salvaguardá-lo, primeiro da penhora, e depois, quando ainda possível, da venda. O legislador não estabeleceu, todavia, qualquer excepção ao cumprimento do disposto nesse preceito, consoante a execução em causa tivesse sido ou não objecto de oposição mediante embargos de executado e, portanto, contrariamente ao defendido pelos ora agravantes, sempre que alguém vier à execução pagar a quantia exequenda, e após liquidação, as custas, aquela deverá ser extinta, pendam ou não embargos. A execução, porque instaurada por quem seja detentor de título executivo bastante, visa assegurar em primeiro lugar o interesse do exequente e, garantido este, o legislador entendeu por bem fazer cessar o andamento da execução, extinguindo-se e, por arrastamento, os embargos se existirem. Efectivamente, cumprida a obrigação pelo próprio devedor, ou por terceiro, deixa de fazer qualquer sentido continuar a discutir, designadamente a validade da obrigação. Atingido o objectivo que se visava com a execução - o pagamento da quantia exequenda - e pagas as custas da execução, deve esta ser declarada extinta. O cumprimento da obrigação exequenda acarreta, necessariamente, o fim dos embargos, porquanto a existência destes só se justifica pela pendência daquela. Sem execução, não pode haver embargos. Em conclusão, a existência de embargos de executado não obsta ao cumprimento do disposto no art. 916° do CPC, desde que verificado o condicionalismo ali previsto. Invocam ainda os recorrentes que não foi efectuado o pagamento da quantia exequenda, mas apenas um depósito para suspender a venda do bem penhorado. Mas sem razão. Em primeiro lugar, foi o executado B que, expressamente, no requerimento de fls.
150, invocou pretender 'efectuar o pagamento da quantia exequenda e acréscimos legais'. Depois, depósitos condicionais, no âmbito do tipo de processo em causa, não existem. O que está legalmente previsto, para as situações em que, existindo embargos, os embargantes queiram obstar ao prosseguimento da execução, é a prestação de caução, em conformidade com o disposto no art. 818°/1 e 3, do C.P.C. Na verdade, os recorrentes podiam ter prestado a respectiva caução e logrado obter a suspensão da execução, e consequentemente não só da venda, como desde logo da própria penhora da fracção, se era essa, porventura, a sua verdadeira intenção quando efectuaram o pagamento nos autos. E o disposto neste preceito, só indirectamente invocado no despacho recorrido, com o alcance que aí lhe foi dado e por nós atrás reafirmado, consagrando um modo prático de, sem descurar os interesses do exequente, acautelar os eventuais direitos dos executados/embargantes, não ofende qualquer princípio constitucional, nem se traduz em 'denegação de justiça'. Indica tão somente um meio próprio, específico, precisamente para acautelar, de forma equilibrada, os interesse em conflito. Assim sendo, do sentido interpretativo atribuído á norma do art. 818°/1 e 3, do C.P.C. pelo despacho recorrido não resulta qualquer limitação inadequada ou desproporcionada para os recorrentes, em termos de lhes ser impedido ou significativamente dificultado o exercício dos seus direitos, pelo que carece igualmente de sentido a invocação da violação do direito de acesso aos tribunais, em qualquer das suas vertentes, consagrado no art. 20° da Constituição. E nem se diga que a actuação dos executados deveria ser interpretada de acordo com o estatuído no art. 886-B do CPC, como também fazem os recorrentes. O estatuído nesse preceito não integra minimamente a actuação dos recorrentes aqui em causa, estando antes em articulação com o princípio de que o património dos executados não deve ser afectado, na execução, para além do estritamente necessário à satisfação da pretensão do exequente. Visa obstar, na venda já em execução, à venda de mais bens do que os necessários, conseguido que esteja o valor suficiente para o pagamento da quantia exequenda e custas, situação que se não verificou nos autos. Em conclusão, o depósito da quantia de 1 600 000$00 efectuado em 13.02.2001 pelo executado B, constitui juridicamente pagamento da quantia exequenda e custas prováveis liquidadas, nos termos do art. 916° do CPC. Do modo como os recorrentes actuaram, juridicamente, só se pode entender que quiseram cumprir a obrigação para com a credora, conducente à extinção da execução e dos embargos, como entendeu o Tribunal recorrido.
Do acórdão de 23 de Maio de 2002 interpuseram os recorrentes o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Junto do Tribunal Constitucional os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do seguinte modo:
1. O artigo 20° da Constituição da República Portuguesa integra, no conteúdo do conceito de acesso aos tribunais, a vertente do direito subjectivo a uma solução jurídica dos conflitos submetidos aos tribunais, de acordo com as regras adjectivas relativas à imparcialidade, independência, oportunidade, competência e forma que a lei comum assegurará.
2. Viola aquela norma toda e qualquer situação, designadamente por interpretação normativa de preceitos adjectivos, que se reconduza à negação de tal solução, contra a vontade da parte, o que tem sido entendido como denegação de justiça.
3. É inquestionável que as regras do processo não podem ser indiferentes ao texto constitucional de que decorrem implicitamente, sendo directo corolário da ideia de estado de direito democrático, de que um dos elementos estruturantes é a observância da garantia de jurisdicionalidade na resolução dos litígios que no seu âmbito tenha lugar.
4. A interpretação do nº 1 do artigo 818° do Código de Processo Civil no sentido de que o recebimento dos embargos só suspende a execução se tal vier a ser requerido pelo Embargante e prestada caução, sendo esse o único momento em que tal possibilidade pode ser usada, o que determina, necessariamente, a extinção da instância no que aos embargos respeita, no caso do embargante pretender salvaguardar o seu património em sede de venda judicial, impedindo que o tribunal, neste aspecto, conheça e pronuncie uma decisão judiciária, viola o n° 1 do artigo 20° da C.R.P. por constituir denegação de justiça.
5. A interpretação do n° 1 do artigo 818° do Código do Processo Civil, em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, designadamente o seu artigo 20°, tem de fazer-se no sentido de que o recebimento dos embargos, não importando, por si só, a suspensão da execução, permite ao embargante, enquanto durar a pendência destes e em qualquer momento até que eles estejam decididos, prestar caução e requerer a suspensão da execução.
6. Esta caução poderá ser prestada em qualquer forma admitida pela lei, designadamente pelo depósito à ordem do tribunal da quantia exequenda, e não prejudicará a tramitação da instância de embargos permitindo que o tribunal aprecie os mesmos, decidindo-se e formando-se julgado, o que é conforme à tutela judiciária assegurada pelo artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
7. Daqui decorre que a interpretação da norma do n° 1 do artigo 818° do C.P.C. feita nas doutas decisões das instâncias (despachos do Tribunal Cível de Lisboa e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa) viola o artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
O recorrido não contra-alegou.
2. A Relatora proferiu despacho ao abrigo do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, com o seguinte teor:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, os recorrentes invocaram durante o processo a inconstitucionalidade do artigo 818º do Código de Processo Civil interpretado 'no sentido de que a única forma de obter tal suspensão [a suspensão da venda no processo executivo no qual foram deduzidos embargos de executado] é o pagamento com a consequente inutilidade dos embargos' (fls 198, verso, conclusão 2). Nas alegações de recurso de constitucionalidade, os recorrentes identificaram a norma impugnada do seguinte modo: '... n.º 1 do artigo 818º do Código de processo Civil no sentido de que o recebimento dos embargos só suspende a execução se tal vier a ser requerido pelo Embargante e prestada caução, sendo esse o único momento em que tal possibilidade pode ser usada, o que determina, necessariamente, a extinção da instância no que aos embargos respeita, no caso do embargante pretender salvaguardar o seu património em sede de venda judicial, impedindo que o tribunal, neste aspecto, conheça e pronuncie uma decisão judiciária ...' (fls
242, verso, conclusão n.º 4). Ora, o tribunal a quo entendeu que 'na verdade, os recorrentes podiam ter prestado a respectiva caução e logrado obter a suspensão da execução, e consequentemente não só da venda, como desde logo da própria penhora da fracção, se era essa, porventura, a sua verdadeira intenção quando efectuaram o pagamento nos autos.' (fls 208). Verifica-se, pois, que a dimensão normativa impugnada não foi aplicada pela decisão recorrida, uma vez que o tribunal recorrido admitiu expressamente a existência de outra forma de obter a suspensão da venda para além do pagamento, considerando que os recorrentes podiam ter prestado caução e requerido a suspensão da execução no momento em que, nos autos, efectuaram o pagamento. Não esteve, assim, nunca em causa uma interpretação do artigo 818º em que o embargante estivesse impedido de prestar caução a todo o tempo nem de obstar à extinção da instância, através desse meio, no que aos embargos respeita. Assim, não se verifica o pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada durante o processo, pelo que não se poderá tomar conhecimento do seu objecto.
2. Nessa medida, determina-se a notificação dos recorrentes para se pronunciarem sobre a presente questão prévia, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável nos autos por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional. Os recorrentes responderam, afirmando o seguinte: Salvo o devido respeito por diferente opinião a tese da decisão impugnada, ou seja do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou, na
íntegra, o despacho da primeira instância, é precisamente a de que, ou o executado presta caução e requer a suspensão aquando da dedução de embargos ou, não o fazendo, só pode obstar à venda através do pagamento, sendo que este importa, necessariamente, a extinção das instâncias. Ora, o único momento em que tal possibilidade pode ser usada é o prazo de dedução de embargos, na tese da decisão impugnada. Assim, foi feita uma interpretação do artigo 818º do C.P.C. em que o embargante está impedido de prestar caução a todo o tempo, obtendo a suspensão da instância executiva e permitindo que os embargos prossigam até decisão final, eventualmente de mérito. Na tese da transcrição de fls. 208 constante do douto parecer que antecede, o Tribunal a quo entende que os Recorrentes podiam ter prestado caução e obter a suspensão da execução e, consequentemente, da penhora e da venda, mas refere-se, manifestamente, ao prazo da dedução de embargos, não a momento posterior . Na visão dos Recorrentes, esta interpretação é inconstitucional pelas razões aduzidas nas alegações. O que está em causa é a dimensão normativa que permite fazer a leitura do artigo
818° no sentido de que prestar caução e requerer a suspensão da execução é uma actividade que não pode ser exercida a todo o tempo. O que pode ser exercido a todo o tempo, na visão da decisão normativa impugnada,
é o pagamento, sendo este a única forma, posterior ao prazo de dedução de embargos, por via da qual se pode evitar a venda, acarretando, necessariamente, a extinção dos embargos quando a decisão destes ainda não tenha transitado em julgado. Desta forma, os embargos ficam por decidir e a parte não conseguirá obter um juízo de mérito sobre o pleito, o que se traduz em denegação de justiça. Portanto, parece fora de dúvida que a decisão recorrida fez uma interpretação do artigo 818° do C.P.C. por via da qual, embora o executado possa prestar caução e requerer a suspensão da instância, tal faculdade só lhe assiste no prazo de dedução dos embargos e não mais tarde ou a todo o tempo, designadamente em fase de venda, garantindo a obrigação exequenda, por exemplo e como foi o caso, por via de depósito, em numerário. Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
3. Os recorrentes afirmam que a decisão recorrida fez aplicação da dimensão normativa impugnada, afirmando que a transcrição de fls. 208 constante do despacho de fls. 249 e 250 se refere 'ao prazo de dedução de embargos, não a momento posterior'. Contudo, nessa passagem do aresto recorrido é expressamente referido o momento a que o tribunal se refere e esse momento é aquele em que os recorrentes
'efectuaram o pagamento nos autos'. Assim, pelas razões constantes do despacho de fls. 249 e 250, que não são minimamente infirmadas pela resposta dos recorrentes, na qual apenas se afirma ter sido aplicada a dimensão normativa impugnada sem o demonstrar, conclui-se pelo não conhecimento do objecto do presente recurso.
III Decisão
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 UCs.
Lisboa, 19 de Março de 2003 Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida