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Proc. nº 498/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A interpôs, junto do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, recurso contencioso de anulação do Despacho nº 36/98, de 24 de Novembro de 1997, pelo qual foi promovido ao posto de segundo-sargento, ao abrigo do disposto no artigo
1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio. O recorrente sustentou a inconstitucionalidade do referido artigo 1º, por violação do princípio da igualdade. O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, por decisão de 17 de Fevereiro de
2000, considerou o seguinte:
(...) Assim sendo a promoção a segundo-sargento, posto em que o recorrente já se encontrava graduado, constitui o posto máximo que o recorrente alcançaria se tivesse optado pela continuação na situação de activo, pelo que, só poderia ser promovido a esse posto. Com esta decisão, a entidade recorrida respeitou o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP, já que, se tivesse decidido diferentemente, estaria a violar o princípio da igualdade no tocante àqueles militares que optaram por continuar na situação de activo.
(...) Consequentemente, negou provimento ao recurso.
2. A interpôs recurso da decisão de 17 de Fevereiro de 2000 para o Tribunal Central Administrativo. O Vice-Almirante Superintendente dos Serviços de Pessoal, nas contra- -alegações apresentadas, sustentou que a interpretação do artigo 1º do Decreto-Lei nº
134/97 propugnada pelo recorrente implicaria uma violação do princípio da igualdade, uma vez que beneficiaria os deficientes das Forças Armadas que não optaram pelo serviço activo relativamente aos que o fizeram. O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 2 de Maio de 2002, considerou o seguinte:
(...) Ora, o legislador do DL n° 134/97 , de 31 de Maio, que não podia desconhecer a existência da situação assinalada (de revogação do art° 3°, do DL n° 295/73), propôs-se rever a situação dos militares graduados em posto superior àquele a que haviam passado à reforma extraordinária, e, ao fazê-lo, no seu art° 1º, estabeleceu, sem limitações, que aqueles militares seriam promovidos ao posto a que teriam ascendido « tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente providos nos postos imediatos». Não se estabeleceu, assim, qualquer limitação à reconstituição da carreira dos referidos militares, que tivesse em conta apenas o lugar em que haviam sido graduados, por limitações decorrentes dos nºs 3 e 4 do art° 4°, do DL n° 210/73, como havia acontecido, aquando da graduação daqueles militares. Por consequência , a interpretação do art° 1º, do DL n° 134/97 , de 31 de Maio, que abrange os militares, como o recorrente, deficiente das Forças Armadas, ao abrigo da alínea c) , do n° 1 , do art° 18° , do DL n° 43/76 , de 20-01 , nunca podia ir buscar o seu apoio a uma norma do DL 295/73, de 09-06 , com vigência temporal limitada e já revogada, para atribuição de graduação em postos militares, quando a citada norma do art° 1° visou, não a graduação, mas a reforma desses militares e não estabeleceu quaisquer limites na reconstituição da carreira daqueles militares, que não a que resulta dos seus próprios termos.
(...) Consequentemente, foi concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida.
3. O Superintendente dos Serviços de Pessoal interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, quando interpretada no sentido de permitir a reconstituição da carreira dos militares deficientes das Forças Armadas, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº
43/76, de 20 de Janeiro, sem as limitações decorrentes dos nºs 3 e 4 do artigo
4º do Decreto-Lei nº 210/73, de 9 de Maio. O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1ª. A norma que o douto acórdão recorrido extraiu do artigo 1° do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, no sentido de que os militares Deficentes das Forças Armadas com um grau de incapacidade igual ou superior a 30% que optaram pela reforma extraordinária podem agora ser promovidos ao posto a que teriam ascendido tendo apenas por referência a carreira do militar não deficiente situado à sua esquerda, promovido normalmente aos postos imediatos e sem quaisquer outros limites, é inconstitucional por violar o artigo 13° da Constituição da República;
2ª. De facto, uma tal norma discrimina positivamente estes militares por referência àqueles igualmente Deficientes das Forças Armadas que optaram pela continuação no serviço activo;
3ª. Os primeiros seriam - de acordo com aquela tese - promovidos em condições idênticas ao militar não deficiente e com capacidade plena situado à sua esquerda, enquanto que os segundos apenas foram promovidos aos postos a que as suas reduzidas capacidades permitiram que ascendessem, porque tiveram que preencher as condições gerais e especiais de promoção e que obter resultados nas provas a que foram sujeitos;
4ª. Os primeiros, por iniciativa sua, desligaram-se do serviço militar activo, enquanto que os segundos se sujeitaram às vicissitudes do serviço militar, subordinando-se aos deveres militares e à hierarquia, e sujeitando-se às limitações nos seus direitos decorrentes das especificidades da condição militar;
5ª. O citado artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, comporta duas interpretações: uma conforme à Constituição e que, socorrendo-se dos limites consagrados para uma situação equivalente - a das graduações dos mesmos militares apenas permite a promoção até ao posto de Segundo-Sargento, que é assim o 'posto a que teria ascendido', e outra que a viola frontalmente, por favorecer os militares Deficientes das Forças Armadas que optaram pela reforma extraordinária relativamente aos que optaram por continuar no serviço activo, sem que, no entanto, se vislumbre razão objectiva para essa discriminação;
6ª. Assim, o citado preceito tem, naturalmente, de ser interpretado no sentido conforme à Constituição;
7ª. Ao decidir diferentemente, o douto acórdão recorrido extraiu do artigo 1º citado, e aplicou, uma norma inconstitucional, porque viola o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13° da Constituição. O recorrido não apresentou contra-alegações. Cabe apreciar e decidir.
II Fundamentação
4. Nos presentes autos é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, quando interpretada no sentido de permitir a reconstituição da carreira dos militares deficientes das Forças Armadas, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, sem as limitações decorrentes dos nºs 3 e 4 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 210/73, de 9 de Maio. O recorrente sustenta a violação do princípio da igualdade, invocando a circunstância de o recorrido, beneficiando da interpretação normativa impugnada, poder ser promovido a posto mais elevado do que aquele a que foram promovidos outros militares, também deficientes das Forças Armadas, que optaram pelo serviço activo. Na perspectiva do recorrente, os militares que optaram pelo serviço activo viram a sua progressão na carreira condicionada às avaliações realizadas, sempre limitadas devido à sua capacidade física reduzida, o que não aconteceu com o recorrido. O Tribunal Constitucional já procedeu à apreciação da conformidade à Constituição de uma dimensão normativa do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de
31 de Maio (cf. Acórdãos nºs 414/2001, 63/2002, 173/2002 e 175/2002). Contudo, tratou-se de dimensão diversa da agora apreciada. Com efeito, nos arestos identificados, o Tribunal Constitucional apreciou uma dimensão normativa relacionada com o âmbito de aplicação temporal do preceito em questão, isto é, apreciou uma interpretação segundo a qual tal norma não seria aplicada a uma dada categoria de militares, em função da data em que foram qualificados como deficientes das Forças Armadas. Não é, porém, essa a dimensão normativa agora em causa. Com efeito, o que vem questionado no presente recurso de constitucionalidade é a ausência de condicionalismos legais específicos (salvo os decorrentes da própria carreira) à progressão dos militares deficientes das Forças Armadas (promovidos em condições idênticas às do militar não deficiente e com capacidade plena situado a sua esquerda) que optaram pela situação de reforma extraordinária, em confronto com o que acontece com os militares deficientes que optaram pelo serviço activo, os quais apenas puderam ser promovidos aos postos a que as suas capacidades reduzidas permitiram que ascendessem, na medida em que tiveram de preencher condições gerais e especiais de promoção e de obter resultados nas provas a que foram sujeitos. Ora é evidente que a interpretação do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 levada a cabo pelo tribunal recorrido pressupõe, efectivamente, um não benefício dos militares que optaram pelo serviço activo, na medida em que lhes são impostas condições específicas de progressão na carreira que não atingem os que, igualmente deficientes, optaram pela situação de reforma extraordinária. É claro que os primeiros só poderão progredir em termos limitados em função da redução das suas capacidades sendo, assim, sujeitos a uma certa diferenciação inevitável, condicionada pela sua deficiência relativamente aos não deficientes. Diferentemente, os militares que passaram à reforma extraordinária beneficiariam, segundo a interpretação normativa questionada, de uma diferenciação positiva relativamente aos não deficientes e, em última análise, tal diferenciação dar-lhes-ia uma vantagem relativamente aos deficientes que optaram pelo serviço activo. Mas corresponderão tais diferenciações a uma efectiva violação do princípio da igualdade pela norma questionada?
5. O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Constituição, proíbe discriminações carecidas de fundamento e impõe tratamento diferenciado em situações substancialmente diferentes em que a igualização beneficiasse arbitrariamente uma das situações. Contudo, tal princípio não proíbe soluções idênticas para situações que apresentem diferenças que não suscitem, à luz de algum critério constitucionalmente relevante, uma diferenciação [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e
188/90, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e
16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente]. Com efeito, a norma em crise justificou-se pela reparação de uma situação anterior em que a norma constante da alínea a) do nº 7 da Portaria nº 162/76, de
24 de Março, foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 563/96, de 10 de Abril. Como se diz na introdução do Decreto-Lei nº 134/97, referindo-se à norma anterior, 'tal norma, que assim foi expurgada do ordenamento jurídico, determinava que aos deficientes das Forças Armadas nas situações de reforma extraordinária ou de beneficiários de pensão de invalidez que já teriam podido usufruir do direito de opção nos termos da legislação em vigor anteriormente ao Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, não era reconhecido o direito de poderem optar pelo ingresso no serviço activo'. Assim, o diploma de 1997 visava 'proceder à reconstrução da situação jurídica decorrente' da norma entretanto declarada inconstitucional que não seria atingível pela mera supressão da norma inconstitucional do ordenamento jurídico. O artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 concretiza efectivamente esta lógica de compensação pela situação prolongada anterior, violadora da Constituição. E foi essa também a dimensão concreta que esteve em causa nos presentes autos, já que o recorrido, tendo um grau elevado de deficiência, se encontrou durante vários anos sem poder optar pelo serviço activo ou apenas podendo optar 'num específico circunstancialismo sócio-político' e com um 'enquadramento legal' desfavorável
(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 563/96). Se a norma sub judicio não existisse, o levantamento da proibição de opção pelo serviço activo não seria, por si, susceptível de compensar as consequências práticas já operadas da anterior impossibilidade legal de promoção dos militares que passaram à reforma extraordinária, sobretudo tendo em atenção os casos em que decorrera um número muito elevado de anos até ser possível a opção pelo serviço activo. A mera possibilidade abstracta de os deficientes que optaram pelo serviço activo no momento em que a norma foi declarada inconstitucional não atingirem o mesmo patamar de promoção do que os militares deficientes abrangidos pela norma em crise não é, pura e simplesmente, um privilégio injustificado dos primeiros, na medida em que eles não puderam de facto optar desde o início da sua deficiência pelo serviço activo, apenas o podendo fazer, em muitos casos, passadas décadas. Assim, a sua promoção automática através da ficção de uma situação continuada no activo, tal como se a deficiência não tivesse afectado a sua progressão na carreira, não foi mais do que uma compensação reparadora e reconstitutiva de uma situação anterior discriminatória. Não se verifica, pois, qualquer violação do princípio da igualdade pela dimensão normativa aplicada pela decisão recorrida. Nessa medida, o presente recurso de constitucionalidade é improcedente.
III Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, quando interpretada no sentido de permitir a reconstituição da carreira dos militares deficientes das Forças Armadas, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, sem as limitações decorrentes dos nºs 3 e 4 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 210/73, de 9 de Maio, confirmando consequentemente a decisão recorrida.
Lisboa, 19 de Março de 2003 Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida