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Processo n.º 595/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., interpôs recurso para o Tribunal de Trabalho do Círculo da Covilhã da decisão (de fls. 42) do Delegado do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT), Delegação da Covilhã, que lhe aplicou a coima de Esc. 1.500.000$00 (€ 7.481,97), pela prática da contra-ordenação prevista e punida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 10º, n.º 1 (na redacção do Decreto-Lei n.º 398/91, de 16 de Outubro),
11º (na redacção do Decreto-Lei n.º 118/99, de 11 de Agosto) do Decreto-Lei n.º
421/83, de 2 de Dezembro, e ainda nos artigos 7º, n.º 4, alínea d), e 9º, n.ºs
1, alínea d), e 2, da Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto.
Por sentença do Tribunal de Trabalho do Círculo da Covilhã de 22 de Março de 2002, constante de fls. 151 e seguintes, foi o recurso julgado totalmente improcedente e, em consequência, confirmada integralmente a decisão recorrida.
Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra. Este Tribunal, por Acórdão de 3 de Julho de 2002, de fls.
255 e seguintes, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão impugnada. Para o que agora releva, o acórdão recorrido, pronunciando-se sobre a questão da
'constitucionalidade dos artºs 4º nº 2 b) e 11º do D.L. 102/00' entendeu que 'o D. L. 102/00 veio estabelecer unicamente um novo regime relativo ao ‘estatuto’ da I. Geral do Trabalho. E cremos ser inquestionável que essa matéria não cabe no domínio que a nossa Lei Fundamental reserva à Assembleia da República – cfr. artigo 165º da CRP – contendo-se perfeitamente nas competências legislativas próprias do Governo – artigo 198º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma. Sem dúvida que é da exclusiva competência deste Órgão de Soberania (e ressalvados os casos de autorização ao Governo) legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo. E na verdade foi o que sucedeu, no que concerne concretamente às contra ordenações laborais, nomeadamente através das Leis 113/99 e 114/99 ambas de 3/8,
116/99 de 4/8 e 118/99 de 11/8, emanadas todas elas indubitavelmente da Assembleia da República, como se alcança pela sua simples leitura. E logo no artº 17 nº 1 da mencionada L.116/99 se determina que o processamento das contra ordenações laborais compete à Inspecção-Geral do Trabalho, acrescentando o seu nº 2 que tem competência para aplicação das coimas correspondentes às contra ordenações laborais o inspector geral do trabalho, que poderá delegá-la nos delegados ou sub-delegados do Instituto de desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho. E no que concerne ao processamento contra ordenacional regem os artºs 19º a 26º da mesma lei.
(...)
É verdade que o D. L. 102/00 contém ele mesmo – como não podia deixar de ser atenta a sua natureza de ‘estatuto’ (...) normas atributivas de competência à I. Geral do Trabalho e a seus funcionários e também sobre a forma, meios e finalidades da acção inspectiva a realizar por aquela entidade. Só que, quer no que concerne ao procedimento contra-ordenacional, quer no que respeita ao acto administrativo de aplicação de coimas – e competência para tal
– em nada se opõe ao regime estabelecido na Lei n.º 116/99, ou o altera, antes se limitando, isso sim e no essencial, a repetir o que desta lei a propósito consta.
'Não se vê, portanto que este D. L. padeça de qualquer inconstitucionalidade
(...)'.
2. Novamente inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, por considerar que as normas dos 'artigos
4º, n.º 2, alínea c), e 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º e 13º do Decreto-Lei n.º
102/2000, que estabelecem, respectivamente, a competência do Inspector-Geral do Trabalho para aplicar coimas correspondentes às contra-ordenações laborais e actividade sancionatória e inspectiva da Inspecção-Geral do Trabalho' dizem respeito ao 'processo de ilícito de mera ordenação social e por consequência são da competência da Assembleia da República – Reserva Relativa – porém constam de um decreto-lei sem autorização legislativa, pelo que foi violado o artigo 165º, n.º 1, alínea d), da CRP'. Pretende, por isso, que o Tribunal Constitucional as julgue inconstitucionais.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações, que a recorrente concluiu da seguinte forma:
'1. O Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, é material, orgânica e formalmente inconstitucional na parte em que atribui ao Senhor Inspector-Geral do Trabalho competência para aplicação de coimas, cfr. artigo 4º, n.º 2, alínea c), e à Inspecção-Geral do Trabalho o desenvolvimento da acção sancionatória, cfr. 6º a 13º do citado diploma.
2. Tais inconstitucionalidade advêm do facto da matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria que ser objecto de Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo se este estivesse para tal autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165º, n.º 1, alínea d), e 198º, ambos da C.R.P., que por isso foram violados.'
Quanto ao Ministério Público, formulou as seguintes conclusões:
'1º - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República em sede de direito e processo contra-ordenacional apenas abrange o estabelecimento do respectivo regime geral.
2º - Não se inclui no âmbito de tal reserva de competência a definição da estrutura orgânica e das competências cometidas aos órgãos administrativos a quem estão atribuídos os poderes funcionais para sancionar determinadas e específicas contra-ordenações.
3º - Termos em que devera improceder o presente recurso.'
4. Admitindo-se a hipótese de não conhecimento parcial do objecto do recurso, foi notificado às partes o seguinte parecer, constante de fls. 306:
«1. A recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 255, pretendendo a apreciação da constitucionalidade das normas dos 'artigos 4º, n.º 2, al. c), e 6º, 7º, 8º, 9º,
10º, 11º, 12º e 13º do DL 102/2000, que estabelecem, respectivamente, a competência do Inspector-Geral do Trabalho para aplicar coimas correspondentes
às contra-ordenações laborais e actividade sancionatória e inspectiva da Inspecção-Geral do Trabalho'.
Tais normas dispõem sobre a competência do Inspector-geral do Trabalho para aplicar as coimas e multas, bem como as sanções acessórias, correspondentes às contra-ordenações e contravenções laborais (artigo 4º, n.º 2, alínea c)) e ainda sobre o regime da actividade inspectiva e sancionatória da Inspecção-Geral do Trabalho (artigos 6º a 13º do mesmo diploma).
2. Parece, todavia, decorrer da análise do acórdão recorrido não terem sido, expressa ou implicitamente, aplicadas as normas dos artigos 6º a 13º do mesmo diploma, de forma a se poder concluir que com base nelas foi negado provimento ao recurso interposto pela recorrente da sentença do Tribunal de Trabalho do Círculo da Covilhã. O acórdão recorrido apenas faz uma referência ao n.º 3 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 102/2000, mas fora do âmbito da questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente e somente com o intuito de utilizar o regime ali definido como argumento de coerência sistemática para concluir pela atribuição ao Delegado do IDICT do poder de confirmação de autos de notícia e pela inexistência de revogação tácita do artigo 22º da Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, pelo artigo 4º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 102/2000.
3. Assim sendo, admite-se que o Tribunal Constitucional não possa conhecer, nessa parte, do presente recurso, como resulta da lei (artigo 79º-C da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro ) e o Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 311/94, 187/95 e 366/96, Diário da República, II Série, respectivamente de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de 1996). Nestes termos, convidam-se as partes para se pronunciarem, querendo, sobre o presente parecer, nos termos do disposto nos artigos 69º da Lei nº 28/82 e do nº
1 do artigo 704º do Código de Processo Civil.»
Nenhuma das partes se pronunciou sobre o parecer.
5. Pelas razões indicadas no parecer atrás transcrito, considera-se que o objecto do presente recurso se reconduz à norma constante da alínea c) do nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 102/2000, cujo texto é o seguinte:
'Artigo 4º
(Inspector-geral do Trabalho)
...
2. É da competência exclusiva do inspector-geral:
... c) Aplicar coimas e multas, bem como sanções acessórias, correspondentes às contra-ordenações e contravenções laborais;
...' Na verdade, e como ali se observou, esta alínea c), por um lado, e os artigos 6º a 13º do Decreto-Lei n.º 102/2000, por outro, regulam, respectivamente, a competência do Inspector-Geral para aplicar as coimas e multas, bem como as sanções acessórias, correspondentes às contra-ordenações e contravenções laborais e a actividade inspectiva e sancionatória da Inspecção-Geral do Trabalho. Todavia, embora a aplicação da norma constante do artigo 4º, n.º 2, alínea c) –
à semelhança do que sucede com as normas da alínea b) do nº 2 e do n.º 3 do mesmo artigo – seja pressuposta pelo acórdão recorrido, na medida em que neste expressamente se afirma que 'a aplicação da coima à arguida foi da competência de um Delegado da Inspecção-Geral do Trabalho, no uso da delegação de poderes feita pelo Inspector-Geral do Trabalho e ao abrigo do despacho 8616/01 publicado no D.R. II, de 24/04/01', e se discuta a constitucionalidade do regime correspondente, outro tanto não acontece com as demais normas referidas no requerimento de interposição do recurso.
Com efeito, o acórdão recorrido não faz qualquer menção aos artigos
6º a 13º do mesmo diploma, para o efeito de se poder concluir que com base neles foi negado provimento ao recurso interposto pela recorrente da sentença do Tribunal de Trabalho do Círculo da Covilhã. Apenas refere o n.º 3 do artigo 7º, mas apenas com o objectivo já indicado no parecer atrás transcrito, para o qual se remete. A este propósito, refira-se, aliás, que o recorrente nem sequer suscita no presente recurso a questão da constitucionalidade da alínea b) do nº 2 do artigo
4º, que colocara perante o Tribunal da Relação de Coimbra.
6. A questão de constitucionalidade objecto dos presentes autos traduz-se, pois, a de saber se a norma que atribui competência ao Inspector-Geral do Trabalho para aplicar coimas por contra-ordenações laborais, prevista no artigo 4º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 102/2000, integra o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, a que se refere o artigo 165º, n.º 1, alínea d), da Constituição e se, nessa medida, se deverá considerar organicamente inconstitucional, uma vez que o citado Decreto-Lei não foi aprovado ao abrigo de qualquer autorização legislativa.
Ora a resposta é, claramente, negativa. E pode chegar-se a esta conclusão ainda que se não questione o pressuposto – não demonstrado – de que parte a recorrente, segundo o qual a atribuição de competência à Inspecção-Geral do Trabalho para aplicar coimas e sanções acessórias em processo contra-ordenacional integra o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo. Na verdade, mesmo aceitando tal pressuposto (que, em rigor, aqui não se torna necessário discutir), parece evidente que a norma do artigo 4º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 102/2000 se limita a repetir, como se diz no acórdão recorrido, o regime do artigo 17º da Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto. De acordo com o n.º 1 deste artigo, 'o processamento das contra-ordenações laborais compete à Inspecção-Geral do Trabalho'. Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que 'tem competência para aplicação das coimas correspondentes às contra-ordenações laborais o inspector-geral do Trabalho, que poderá delegá-la nos delegados ou subdelegados do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho'.
Resulta, pois, da simples transcrição destes preceitos que a norma objecto do presente recurso não apresenta qualquer carácter inovatório, não trazendo, portanto, qualquer alteração à competência do Inspector-Geral do Trabalho no que respeita à competência agora relevante; não sofre, deste modo, de inconstitucionalidade orgânica, como pretende a recorrente. Embora para casos diferentes, foi também este o princípio aplicado em numerosas decisões deste Tribunal (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.º 502/97, n.º 589/99, n.º 377/02 e n.º 414/02, publicados no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de
1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de Fevereiro de 2002 e de 17 de Dezembro de
2002, respectivamente).
7. Sempre se acrescenta, todavia, que não é exacto que esteja em causa matéria incluída na reserva de competência da Assembleia da República, prevista na já referida alínea d) do nº 1 do artigo 165º da Constituição.
Como se escreveu no acórdão nº 50/2003 (não publicado), «O artigo
33º do Decreto-Lei n.º 433/82 prescreve que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas. Por seu turno, o artigo seguinte estabelece as regras que determinam a competência em razão da matéria das mesmas autoridades administrativas. De acordo com essas regras, tal competência pertencerá às autoridades indicadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações; no seu silêncio, serão competentes os serviços designados pelo membro do Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa defender ou promover. Por
último, o mesmo artigo 34º permite que os dirigentes dos serviços aos quais tenha sido atribuída a competência a deleguem, nos termos gerais, nos dirigentes de grau hierarquicamente inferior.
Ora, poder-se-ia pensar que os aspectos de regime jurídico-administrativo aplicáveis no âmbito de um processo de contra-ordenação são-no apenas em virtude de uma norma remissiva para esse efeito contida em diploma credenciado por autorização parlamentar emitida ao abrigo do artigo
165º, n.º 1, alínea d), da Constituição, como sucedeu com o Decreto-Lei n.º
433/82. Imagine-se, todavia, que uma lei que prevê e sanciona uma contra-ordenação determina que a competência em razão da matéria, para o processamento da contra-ordenação e da aplicação da coima e sanções acessórias que no caso caibam, pertence a um órgão colegial. Faz sentido admitir sequer a possibilidade de as regras de funcionamento desse órgão, no silêncio daquela lei, não se encontrarem sujeitas ao disposto nos artigos 14º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo? Ou sustentar que o funcionamento dos órgãos administrativos colegiais deixa de estar sujeito às regras previstas no Código de Procedimento Administrativo, quando esses órgãos apliquem coimas, a não ser que exista uma norma emitida ao abrigo do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea d), da Constituição, que remeta para o mesmo Código? Parece evidente que a resposta a estas questões não pode deixar de ser negativa. Tal resposta negativa é, aliás, mera decorrência lógica da opção legislativa de atribuir competência às autoridades administrativas para o processamento do processo contra-ordenacional e aplicação de coimas, opção essa que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 158/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., pp. 713 e seguintes), considerou já isenta de censura constitucional, atendendo à diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contra-ordenações, por outro (desde que esteja garantido, naturalmente, o direito de impugnação judicial das decisões de autoridades administrativas que hajam aplicado coimas, o que agora não está em causa).»
É, pois, o próprio regime geral das contra-ordenações que remete para a lei que prevê as contra-ordenações em especial a indicação das entidades a quem compete a aplicação das correspondentes coimas; e é essa norma, apenas, que integra aquele regime geral. A norma constante da al. c) do nº 2 do artigo 4º foi, aliás, recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional precisamente do ponto de vista da sua alegada inconstitucionalidade orgânica, que se concluiu não ocorrer, por não fazer 'parte do regime geral de punição do ilícito de mera ordenação social a definição das entidades competentes para punir esse ilícito' (acórdão nº
62/2003, não publicado).
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 28 de Março de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida