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Proc. N.º 777/02 Plenário Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Requerente e Pedido
O Procurador-Geral da República, com a legitimidade que lhe confere a alínea e), do n.º 2, do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa, vem requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 3º e 6º do Decreto-Lei n.º
59/2002, de 15 de Março, bem como dos artigos 43º e 44º dos Estatutos do Instituto Geográfico Português (IGP), aprovados por aquele mesmo diploma legal.
2. Conteúdo das Normas
As normas em causa, constantes do Decreto-Lei n.º 59/2002, dispõem o seguinte:
'Artigo 3º Estatuto laboral
1 – O IGP dispõe de um quadro específico para o pessoal em regime de contrato individual de trabalho e, residualmente, de um quadro de pessoal abrangido pelo regime jurídico da função pública, aprovados nos termos previstos nos Estatutos, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 – O IGP dispõe ainda de um quadro de pessoal investigador, nos termos do Decreto-Lei n.º 124/99, de 20 de Abril.'
'Artigo 6º Opção pelo contrato individual de trabalho
1 – Os funcionários em exercício de funções no Instituto Português de Cartografia e Cadastro e no Centro Nacional de Informação Geográfica podem optar pela celebração de um contrato individual de trabalho com o IGP, passando a integrar o quadro específico referido no n.º 1 do artigo 44º dos Estatutos.
2 – O direito de opção previsto no número anterior deve ser exercido no prazo de 30 dias a contar da data da entrada em vigor dos regulamentos de pessoal, mediante declaração escrita, individual e irrevogável dirigida ao presidente do conselho de direcção do IGP.
3 – No caso de opção pela celebração de contrato individual de trabalho, é contada a totalidade do serviço prestado na função pública para efeitos de antiguidade e reforma, nos termos da legislação aplicável.
4 – A celebração de contrato individual de trabalho por parte do pessoal referido nos números anteriores implica a exoneração do lugar de origem e a cessação do vínculo ao regime jurídico da função pública.
5 – A cessação do vínculo ao regime jurídico da função pública a que se refere o número anterior torna-se efectiva na data da publicação de um aviso na 2ª série do Diário da República.'
Por seu turno, as normas impugnadas que constam dos Estatutos do IGP preceituam o seguinte:
'Artigo 43.º Regime contratual
1 – O pessoal do IGP está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho.
2 – As condições de prestação e de disciplina do trabalho são definidas em regulamento próprio do IGP, com observância das disposições legais imperativas do regime do contrato individual de trabalho e das normas relativas
à negociação colectiva.
3 – Os regulamentos de carreiras e disciplinar, bem como o regime retributivo, são aprovados por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, do Ambiente e do Ordenamento do Território e da Reforma do Estado e da Administração Pública.
4 – O IGP pode ser parte em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho.
5 – Os trabalhadores do IGP não podem exercer qualquer actividade concorrente com as funções exercidas no âmbito do Instituto e ficam sujeitos a segredo profissional sobre os factos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções, não os podendo divulgar nem utilizar em proveito próprio ou alheio, directamente ou por interposta pessoa.
6 – O recrutamento do pessoal em regime de contrato individual de trabalho deve ter lugar através de um procedimento administrativo que observe os seguintes princípios: a. Publicitação da oferta de emprego pelos meios mais adequados; b. Igualdade de condições e oportunidade dos candidatos; c. Aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação e selecção; d. Fundamentação expressa da decisão tomada.
7 – A adopção do contrato individual de trabalho não dispensa os requisitos e limitações decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente respeitantes a acumulações e incompatibilidades legalmente estabelecidas para os funcionários e agentes administrativos.
Artigo 44.º Quadro de pessoal
1 – O IGP dispõe de um quadro de pessoal contratado ao abrigo do contrato individual de trabalho, a aprovar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, do Ambiente e do Ordenamento do Território e da Reforma do Estado e da Administração Pública no prazo de 90 dias após a data da entrada em vigor do presente diploma.
2 – O IGP dispõe ainda de um quadro para o pessoal abrangido pelo regime da função pública aprovado por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, do Ambiente e do Ordenamento do Território e da Reforma do Estado e da Administração Pública, no prazo previsto no número anterior.
3 – No caso do pessoal investigador, o respectivo quadro de pessoal é aprovado por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, do Ambiente e do Ordenamento do Território, da Ciência e da Tecnologia e da Reforma do Estado e da Administração Pública.
4 – Os lugares de pessoal dirigente criados no IGP pelos presentes Estatutos são os constantes do quadro anexo ao presente diploma.
5 – O estatuto do pessoal dirigente referido no número anterior constará de regulamento interno, a elaborar no prazo de 90 dias após a data da entrada em vigor do presente diploma, aprovado por portaria dos Ministros das Finanças, do Ambiente e do Ordenamento do Território e da Reforma do Estado e da Administração Pública.'
3. Fundamentação do Pedido
O Procurador-Geral da República fundamentou assim o seu pedido:
'1º. A norma constante do n.º 1 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º
59/2002 estabelece, sob a epígrafe 'estatuto laboral', que o IGP dispõe de um quadro específico para o pessoal em regime de contrato individual de trabalho
(só residualmente se prevendo a existência de um quadro alternativo, abrangido pelo regime da função pública), facultando o artigo 6.º aos funcionários em exercício de funções nos entes públicos que o precederam a opção pela celebração de tal contrato.
2º. Em conformidade com tal normativo, o artigo 43º, n.º 1, dos Estatutos aprovados pelo mesmo decreto-lei prescreve que o pessoal do IGP está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, integrando o quadro de pessoal previsto no n.º 1 do artigo 44.º, sendo as condições de prestação e de disciplina do trabalho definidas em regulamento próprio do IGP e os regulamentos de carreiras e disciplinar e o regime retributivo, bem como o quadro de pessoal sujeito ao contrato individual de trabalho, aprovados por portaria ministerial (artigos 43.º, n.ºs 2 e 3, e 44º, n.ºs 2, 3 e 5 dos referidos Estatutos).
3º. Por força do preceituado no artigo 165º, n.º1, alínea t), da Constituição da República Portuguesa, é da exclusiva competência da Assembleia da República – salvo autorização legislativa outorgada ao Governo – legislar sobre a matéria referente 'às bases do regime e âmbito da função pública'
4º. Os princípios fundamentais do regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública são definidos pelos Decretos-Lei n.ºs 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Dezembro, que se configuram como verdadeira 'lei-quadro' nesta matéria, abrangendo a disciplina básica neles estabelecida grande parte da Administração – mesmo descentralizada – integrada pelos institutos públicos, nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundações públicas (cfr. Acórdãos n.ºs
36/96 e 129/99 do Tribunal Constitucional).
5.º Na verdade, os referidos diplomas estabelecem, de forma taxativa, as formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, apenas admitindo as formas de contrato de pessoal, nas modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo, este último só admissível nos casos especialmente previstos na lei.
6º. Tal tipificação taxativa das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública tem o seu âmbito institucional definido em torno dos serviços e organismos da Administração Pública, incluindo os institutos públicos nas modalidades de 'serviços personalizados do Estado' e de 'fundos públicos' (artigo 2º do Decreto-Lei n.º 184/89) – sendo vedado a tais serviços ou organismos a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente da prevista nos referidos diplomas legais.
7º. O IGP é, por força do disposto no artigo 1º dos respectivos Estatutos, uma pessoa colectiva de direito público – 'instituto público' dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, sujeito à tutela e superintendência do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território – tendo nomeadamente por missões exercer a função de autoridade nacional de cartografia e produzir informação geográfica oficial
(artigo 4º dos Estatutos).
8º. No exercício de tais tarefas, cabem-lhe funções tipicamente reguladoras e de fiscalização, nomeadamente, a regulação do mercado privado de produção de informação geográfica e cadastral, a concessão de alvarás para o exercício de certas actividades profissionais, o licenciamento e fiscalização do exercício de actividades no domínio da produção de informação daquela natureza e a execução, renovação e conservação do cadastro predial (artigo 6.º, n.ºs 1-1.1, alíneas b), c) e d), e 1-1.2, alínea c), dos Estatutos).
9º. Tal instituto público rege-se em todos os aspectos não especialmente previstos pelas normas legais aplicáveis aos institutos públicos
(artigo 2º dos Estatutos), estando sujeito ao regime orçamental e financeiro dos fundos e serviços autónomos do Estado (artigo 38º), aplicando o Plano Oficial de Contabilidade Pública (artigo 42º), e submetido à jurisdição do Tribunal de Contas (artigo 37º).
10º. Exercendo poderes de autoridade do Estado (artigo 4º), já que lhe estão cometidas funções de licenciamento e fiscalização (artigos 6º, n.ºs
1-1.1, 13º, alínea g), 29º e 31º, alínea g)), referentemente a entidades privadas, competindo-lhe ainda promover a instrução de processos de natureza contraordenacional (artigo 31º, alínea i)).
11º. Configurando-se – atentas as suas atribuições e estrutura orgânica e funcional – como um instituto público, na modalidade de serviço personalizado do Estado, estando-lhe cometidas funções de manifesto interesse público na fiscalização de actividades na área da cartografia, exercendo os correspectivos poderes de autoridade – e sujeito a um regime jurídico basicamente 'publicístico', totalmente desprovido de natureza 'empresarial' – situando-se, por isso, no 'âmbito institucional' definido pelo artigo 2º do citado Decreto-Lei n.º 184/89 – e surgindo como elemento manifestamente dissonante em relação a tal natureza predominantemente publicística a sujeição do pessoal ao seu serviço ao regime do contrato individual de trabalho.
12º. Ora, assim sendo, é evidente que a admissibilidade de celebração de novos contratos de trabalho por tempo indeterminado – sujeitos ao regime legal genericamente vigente em direito laboral – colide frontalmente com o princípio da taxatividade das formas de constituição da relação de emprego na Administração Pública e com a proscrição da figura do contrato de trabalho por tempo indeterminado, resultante da disciplina básica instituída pelos citados Decretos-Lei n.ºs 184/89 e 427/89.
13º. Pelo que – integrando-se as normas legais questionadas em diploma editado pelo Governo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição, sem precedência de autorização legislativa – padecem de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea t), da Constituição da República Portuguesa.
14º. São consequencialmente inconstitucionais as normas legais que atribuem a regulamentos internos do IGP e a portarias ministeriais da tutela a incumbência de definir as condições de prestação e disciplina do trabalho, bem como o regulamento de carreiras, disciplinar e do regime retributivo dos funcionários ao serviço do IGP.
15º. Na verdade – assente que a disciplina de tais matérias é imperativamente a que decorre do regime básico instituído pela lei-quadro da função pública (constante dos Decretos-Lei n.ºs 184/89 e 427/89), está obviamente excluída a possibilidade de edição de uma espécie de 'regulamento de empresa', contendo o regime jurídico aplicável em tal sede aos trabalhadores ao serviço do IGP.'
4. Resposta do Primeiro-Ministro
O Primeiro-Ministro veio responder, formulando as seguintes conclusões:
'A) O 'estatuto laboral' do Instituto Geográfico Português (IGP), que inclui um regime de direito administrativo e um regime de direito comum, não padece de qualquer vício de constitucionalidade ou de legalidade.
B) A opção pelo regime do contrato individual de trabalho em nada colide com os direitos fundamentais dos trabalhadores, constitucionalmente consagrados, e os princípios próprios de um Estado de direito democrático. A opção quanto ao exercício desse 'direito' quedará no âmbito de liberdade e autodeterminação dos interessados.
C) No caso do Instituto Geográfico Português (IGP), cujo substra[]to, o 'serviço público', consiste no cumprimento de tarefas e responsabilidades que incumbem ao Estado, pode a lei determinar ('no caso', o presente Decreto-Lei, na ausência de uma lei geral de enquadramento do regime jurídico dos Institutos Públicos) que a respectiva gestão, incluindo a gestão de pessoal, obedeça a um regime de direito administrativo ou a um regime de direito comum, ou aos dois, em sectores de gestão diferenciados.
D) As normas arguidas de inconstitucionais não violam a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165º, n.º1, al. t) da Constituição), posto que em nada interferem com as 'bases do regime e âmbito da função pública'. O candidato a prover, caso o regime escolhido seja o do contrato individual de trabalho, adquire a qualidade de 'agente administrativo' (Angestellte), não a de
'funcionário público' (Beamte). Não fica assim abrangido pelo disposto nos Decretos-Lei n.ºs 184/89 e 427/89, que têm por objecto o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego público, maxime a remuneração e gestão do pessoal da função pública, sem perda de direitos, incluindo os de progressão e promoção na respectiva carreira.
E) Mais: não é constitucionalmente obrigatório que todos os trabalhadores e agentes do Estado e demais entidades públicas pertençam à função pública 'stricto sensu' e possuam o respectivo regime. A Constituição deixa claramente para a lei a delimitação do seu âmbito objectivo e subjectivo, podendo excluí-lo, com maior ou menor amplitude, em relação a certas entidades ou serviços ou em relação a determinadas categorias de agentes ou trabalhadores.
É este o caso do Instituto Geográfico Português (IGP) e das normas arguidas de inconstitucionais.'
5. Memorando e Debate
Elaborado pelo Vice-Presidente do Tribunal, por delegação do Presidente, nos termos do n.º2 do artigo 39º da Lei do Tribunal Constitucional, o memorando previsto no artigo 63º da referida Lei e entregue a todos os juízes, foi o mesmo submetido a debate e fixada a orientação do Tribunal. Cumpre, assim, decidir de harmonia com o que aí se estabeleceu.
II – FUNDAMENTOS
6. Alega-se no pedido que teria sido violado o disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea t), da Constituição da República Portuguesa, que comete à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência exclusiva para legislar em matéria de bases do regime e âmbito da função pública.
Com efeito, segundo o requerente, a lei geral reguladora das formas de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública – lei geral que se aplicaria também aos institutos públicos – não prevê a existência de contratos de trabalho por tempo indeterminado, sendo certo que essa exclusão, resultante da taxatividade das formas de constituição daquela relação jurídica de emprego, consagrada na mesma lei geral, traduz um princípio fundamental da mesma legislação, cujo desrespeito implicaria a inconstitucionalidade orgânica das normas colidentes, quando não emitidas pela Assembleia da República ou parlamentarmente autorizadas.
7. Na resposta, o Primeiro-Ministro veio, como se viu, sustentar a não inconstitucionalidade das normas em causa, 'posto que em nada interferem com as bases do regime e âmbito da função pública'.
8. Circunscrita a questão à inconstitucionalidade orgânica das normas em causa, importa então analisar se tais normas poderiam ser emitidas por quem efectivamente as produziu. Na ausência de uma única, assim denominada, lei de bases sobre o regime e o âmbito da função pública, há que ter em conta diversos diplomas relativos à matéria em exame.
9. Dispõe o artigo 15º, alíneas a), b) e c) da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento para 1989):
'Artigo 15º Regime jurídico da função pública
Prosseguindo na via do aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública, fica o Governo autorizado a legislar, durante o período de vigência da presente lei, no sentido de: a. Definir os princípios fundamentais de um novo sistema retributivo da função pública, por forma a contribuir para a produtividade dos serviços e eficácia na realização das despesas públicas, para a responsabilização e dignificação dos funcionários, conferindo ao sistema coerência, equidade e clareza no plano interno e competitividade no plano externo, reconhecendo a existência de corpos especiais no âmbito da função pública, definindo os critérios e componentes do sistema retributivo, assente em estruturas salariais indiciárias, complementos de carácter social e suplementos, em função das especiais condições de prestação de trabalho ou compensação por despesas feitas; b. Rever os princípios de gestão de recursos humanos, tendo em vista a sua flexibilização pela valorização do mérito e do empenhamento no serviço público, pela flexibilização dos quadros de pessoal e das regras de recrutamento, promoção e progressão e pelo enriquecimento funcional dos cargos; c. Definir os princípios gerais da relação de emprego público simplificando e tipificando os diversos títulos de vínculo, identificando as situações que devam ser objecto de nomeação ou de vinculação precária, reforçando o princípio da exclusividade de funções, estabelecendo as formas de exercício transitório das mesmas, o regime de incompatibilidades e acumulações, as condições de prestação de serviço de funcionários e agentes em empresas públicas, privadas e do sector cooperativo e dos trabalhadores destas empresas na Administração e, finalmente, regulamentando o acto de posse e suas formalidades com o objectivo da sua simplificação; [...]'
Ao abrigo desta autorização legislativa, o Governo veio a editar o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, o qual deve ser entendido como um diploma que define bases sobre o regime e âmbito da função pública.
Ora, este decreto-lei estabelece no seu artigo 2º:
'Artigo 2º
Âmbito institucional
1 – O presente diploma aplica-se aos serviços e organismos da Administração Pública, incluindo os institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundos públicos.
[...]'
E os artigos 5º e 7º do mesmo diploma determinam, relativamente à forma de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública:
'Artigo 5º Constituição da relação jurídica de emprego
A relação jurídica de emprego na Administração constitui-se com base em nomeação ou em contrato.'
[...]
'Artigo 7º Contrato de pessoal
1 – O contrato de pessoal é um acto bilateral, nos termos do qual se constitui uma relação transitória de trabalho subordinado.
2 – As formas de contrato de pessoal admitidas são: a. Contrato administrativo de provimento; b. Contrato de trabalho a termo certo.'
Este Tribunal tem interpretado estas disposições legais como contendo, em geral, «a proibição expressa de celebrar outro tipo de contratos com carácter subordinado, designadamente, de contratos sem prazo» (Acórdão n.º
368/00, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., págs. 59 e sgs., [com diversos votos de vencido,] citando o Acórdão n.º 12/99, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Março de 1999).
A ser assim, isto é, a haver uma base do regime da função pública, aplicável aos institutos públicos, que excluísse a possibilidade de celebração de contratos de trabalho sem termo, necessário se tornaria concluir que as normas impugnadas – que prevêem ou pressupõem que o pessoal ao serviço do IGP se encontra sujeito ao regime do contrato individual de trabalho – violariam essa base e que, consequentemente, não constando essas normas de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada, seriam as mesmas organicamente inconstitucionais, porquanto só por esse modo se poderiam introduzir excepções ao preceituado na citada base.
Na verdade, essa tem sido, indubitavelmente, jurisprudência deste Tribunal, expressa designadamente no Acórdão n.º 208/2002 (Diário da República, I Série, de 8 de Julho de 2001), onde se escreveu:
' [...] O problema substancial suscitado pelos requerentes é o de saber se o afastamento da regra do concurso para acesso à função pública, a que se refere o artigo 47º, n.º 2, da Constituição, pode ser justificado em casos como o presente.
Independentemente, porém, dessa questão de inconstitucionalidade material, relativamente à qual existe, embora somente para casos específicos, uma anterior jurisprudência (cfr. Acórdão n.º 683/99, Diário da República, 2.ª Série, de 3 de Fevereiro de 2000, Acórdão n.º 556/99, Diário da República, 2.ª Série, de 15 de Marco de 2000, bem como Acórdão n.º 53/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp. 303 e segs.), coloca-se, imediata e previamente, a questão da violação do artigo 165.°, n.º 1, alínea t), da Constituição, na medida em que o Decreto-Lei n.º 184/98 se possa integrar na categoria de diplomas que aprovam as bases gerais da função pública.
Com efeito, questão precedente de uma eventual justificação constitucional de qualquer excepção à regra geral de acesso à função pública é, no plano de um juízo de constitucionalidade, a de saber qual é o órgão competente para legislar sobre tais excepções. A inconstitucionalidade orgânica que daí decorrerá sempre justificará uma declaração de inconstitucionalidade, independentemente da constitucionalidade ou inconstitucionalidade material de tais excepções.
Decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente do Acórdão n.º 233/97 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.° vol., pp. 503 e segs.) e dos Acórdãos aí citados, que a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários em matéria de bases do regime e âmbito da função pública não podem ser considerados como constituindo o desenvolvimento de tais bases.
Isso significa necessariamente que a criação de tais excepções ou princípios contrários aos contidos nas bases da função pública consubstancia uma invasão da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.°, n.º 1, alínea t), da Constituição. Com efeito, ainda que se admita que a reserva estabelecida nesta última norma não abrange a particularização e a concretização do regime da função pública [neste sentido, cfr. o Acórdão n.º 340/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.° vol., pp. 59 e segs., o qual não se pronunciou pela inconstitucionalidade das normas do decreto aprovado em Conselho de Ministros relativo à extinção da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros e a transformação do Centro de Estudos Técnicos e Apoio Legislativo (CETAL) em Centro Jurídico (CEJUR)], ela não pode deixar de incluir a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime, sob pena de se abrir a porta a um esvaziamento da reserva pela via da multiplicação de regimes excepcionais
[...]'.
E, nesta linha orientadora, num recurso de constitucionalidade em que estava em causa a recusa de visto, pelo Tribunal de Contas, a contratos de trabalho sem termo celebrados pelo Instituto Nacional de Investigação das Pescas, ao abrigo de normas dos respectivos estatutos a que o mesmo Tribunal de Contas recusara aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, o Tribunal Constitucional confirmou esse juízo de inconstitucionalidade, por considerar que tais normas violavam claramente «o princípio da tipicidade das formas de contrato de pessoal admitidas» pelo Decreto-Lei n.º 184/89 (Acórdão n.º 129/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42º vol., págs. 609 e segs.). Ou seja: no referido aresto, este Tribunal concluiu – num caso paralelo ao dos autos – que se verificava a invocada inconstitucionalidade orgânica das normas específicas atinentes a um instituto público, que o autorizavam a celebrar contratos de trabalho sem termo.
10. Há, no entanto, que ponderar que essa solução não decorre, constitucional e necessariamente, das leis em vigor. Com efeito, poderá haver casos em que a criação de excepções aos princípios básicos definidores do regime e âmbito da função pública não constitua, todavia, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Assim será, seguramente, no caso de a própria lei de bases prever, desde logo, a possibilidade de introdução dessas mesmas excepções, desde que as identifique com um mínimo de precisão e determinabilidade, ou de tais excepções serem previstas, nos mesmos termos, em decreto-lei parlamentarmente autorizado que defina as referidas bases.
Ora, relativamente aos institutos públicos, não pode deixar de se levar em consideração o disposto no artigo 41º do mencionado Decreto-Lei n.º
184/89, de 2 de Junho. Aí se salvaguardam certos regimes especiais e se determina, no seu n.º 4, a aplicação das respectivas disposições estatutárias ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos. Assim:
'Artigo 41º Salvaguarda de regimes especiais
[...]
4. - Ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos e dos serviços públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou de contrato individual de trabalho, bem como das conservatórias, cartórios notariais e às situações identificadas em lei como regime de direito público privativo, aplicam-se as respectivas disposições estatutárias.
[...]'
E, na sua sequência, o artigo 44º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, aprovado nos termos da alínea c) do n.º 1 do então artigo 201º
– hoje, artigo 198º – da Constituição da República Portuguesa, por constituir o desenvolvimento do regime jurídico estabelecido no Decreto-Lei n.º 184/89, veio dispor igualmente:
'Artigo 44º Salvaguarda de regimes especiais
1 - Ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável
às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho e, bem assim, ao pessoal abrangido por regimes identificados em lei como regimes de direito público privativo aplicam-se as respectivas disposições estatutárias.
[...] '
Esta salvaguarda de regimes especiais foi expressamente mencionada no Acórdão n.º 36/96, atinente ao Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 197 e sgs.), onde se escreveu:
' [...] Ao tempo da edição do Decreto-Lei n.º 101/88, não existia propriamente uma lei-quadro que de modo global, enunciasse os 'Princípios básicos fundamentais' do regime da função pública, tendo contudo sido já aprovados, ao abrigo de credencial parlamentar, alguns diplomas que vieram estabelecer regras gerais sobre tal matéria.
Assim, e num primeiro momento, foram aprovados o Decreto-Lei n.º
191-C/79 (já atrás referido) e o Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de Junho, relativo ao regime jurídico e condições de exercício das funções de direcção e chefia.
Mais tarde, o Decreto-Lei n.º 248/85, de 15 de Julho, para além de revogar o Decreto-Lei n.º 191-C/79, procedeu à reestruturação do regime geral das carreiras da função pública, estabelecendo também um conjunto de princípios e de regras respeitantes a matérias ligadas ao sistema de carreiras e à sua aplicação na Administração Pública.
Numa linha de continuidade destes textos legais, foram depois aprovados, também no uso de delegação legislativa, os Decretos-Leis n.º 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Dezembro, relativos ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública — diplomas estes cujo conhecimento, apesar de posteriores às normas sob controvérsia, serve para iluminar a questão em apreço -, os quais, nos artigos
41º e 44º, respectivamente, salvaguardam a existência de regimes especiais aplicáveis ao pessoal de certos serviços e organismos, nomeadamente 'institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho e, bem assim, ao pessoal abrangido pelos regimes identificados em lei como regimes de direito público privativo aplicam-se as respectivas disposições estatutárias[...]'.
Não lhe foi, porém, feita qualquer referência, nem de qualquer modo tida em conta no já referido Acórdão n.º 129/99.
Poder-se-ia, porventura, pensar que a salvaguarda de regimes especiais referida na epígrafe do artigo conduziria tão-só a excepcionar as situações preexistentes à data da entrada em vigor do citado Decreto-Lei n.º
184/89, de 2 de Junho, razão pela qual não seria aplicável a situações criadas posteriormente. Isso, todavia, não só não resulta de forma inequívoca do texto legal, como até se pode afirmar que nele não tem qualquer correspondência verbal, havendo, ao invés, boas razões para aceitar a tese exactamente oposta.
Na verdade, o referido artigo 41º do mencionado Decreto-Lei n.º
184/89 não faz qualquer distinção entre situações passadas e situações futuras. E não se diga que a utilização do verbo salvaguardar implica que tal só possa ser aplicado a situações preexistentes, já que, no contexto, se pode afirmar que tal verbo vale por exceptuar e, estando utilizado no presente, se aplica, por conseguinte, às excepções que existam ou venham a existir enquanto vigorar. Aliás, a ser intenção do legislador ressalvar apenas situações preexistentes, não lhe teria faltado uma forma mais explícita de o fazer, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei.
Por outro lado, também não parece que seja possível deduzir uma tal solução do disposto no artigo 2º do mencionado Decreto-Lei n.º 184/89, já que tal preceito – que submete os institutos públicos ao regime constante do referido diploma – não pode deixar de ser lido em conexão com as regras especiais nele mesmo contidas.
Finalmente, não parece, dada a realidade institucional existente, que o legislador de 1989 tivesse querido deixar subsistir determinadas situações do passado, não permitindo que se resolvesse a situação em termos de futuro. Com efeito, o disposto no artigo 15º, alíneas a), b) e c) da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro, indicia que se estará, mais do que perante a intenção de pôr a salvo situações eventualmente existentes, face à tentativa de construção de uma nova forma de solucionar as diversas questões suscitadas pelo regime do pessoal da administração pública. 'Rever os princípios de gestão de recursos humanos, tendo em vista a sua flexibilização pela valorização do mérito e do empenhamento no serviço público, pela flexibilização dos quadros de pessoal e das regras de recrutamento, [...]', como se prescreve na alínea b) do citado artigo, não pode deixar de ter esse sentido.
11. No presente caso, estamos perante um instituto público, sob a forma de um serviço personalizado, cujas disposições estatutárias mandam aplicar ao respectivo pessoal o regime do contrato individual de trabalho. É, manifestamente, um dos casos em que, como já vimos, a criação de excepções aos princípios básicos definidores do regime e âmbito da função pública não constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pois que, em decreto-lei parlamentarmente autorizado, que definiu as bases – o já amplamente referido Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho –, se previu, desde logo, a possibilidade de introdução dessa mesma excepção.
Assim, por tudo quanto se deixa exposto, deve entender-se que a normação impugnada se encontrava coberta pelo disposto no transcrito artigo 41º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, o que exclui a verificação da alegada inconstitucionalidade orgânica.
III – decisão
12. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 3º e 6º do Decreto-Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, e dos artigos 43º e 44º dos Estatutos do Instituto Geográfico Português, aprovados pelo mesmo diploma legal. Lisboa, 25 de Março de 2003 Gil Galvão Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra (votei a decisão, embora com algumas dúvidas sobre se a salvaguarda que se surpreende no nº 4 do artº 41º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, se não reportaria tão só aos regimes especiais aí mencionados que, à data da edição daquele diploma, eram regulados pelas respectivas disposições estatutárias, dúvidas essas que, todavia, me não possível ultrapassar) Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Carlos Pamplona de Oliveira – vencido nos termos da declaração do Sr. Conselheiro Mário Torres. Artur Maurício (vencido nos termos da declaração de voto do Exmº Cons. Mário Torres) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido de ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição da República Portuguesa (CRP), das normas constantes dos artigos 3.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, e dos artigos
43.º e 44.º dos Estatutos do Instituto Geográfico Português, aprovados por esse diploma.
1. Acompanho o precedente acórdão – sublinhando que quanto a estas proposições se regista unanimidade do Tribunal – enquanto afirma que:
– o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, editado pelo Governo ao abrigo da autorização legislativa concedida pelo artigo 15.º da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro, 'deve ser entendido como um diploma que define as bases sobre o regime e âmbito da função pública';
– entre essas bases consta a que, relativamente às formas de constituição da relação jurídica de emprego nos serviços da Administração Pública, incluindo os institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundos públicos (cf. artigo 2.º, n. 1), as limita taxativamente à nomeação, ao contrato administrativo de provimento e ao contrato de trabalho a termo certo (artigos 5.º e 7.º), daqui derivando 'a proibição expressa de celebrar outro tipo de contratos com carácter subordinado, designadamente de contratos de trabalho sem prazo';
– é admissível a introdução de excepções a estas regras básicas, mas os órgãos constitucionalmente competentes para tal são a Assembleia da República ou o Governo desde que parlamentarmente autorizado, já que 'a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários em matéria de bases do regime e âmbito da função pública não podem ser considerados como constituindo o desenvolvimento de tais bases', uma vez que, ainda que se admita que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP, 'não abrange a particularização e a concretização do regime da função pública (...), ela não pode deixar de incluir a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime';
– porém, a criação de excepções aos princípios básicos definidores do regime e âmbito da função pública não constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República quando 'a própria lei de bases prever, desde logo, a possibilidade de introdução dessas mesmas excepções, desde que as identifique com um mínimo de precisão e determinabilidade, ou de tais excepções serem previstas, nos mesmos termos, em decreto-lei parlamentarmente autorizado que defina as referidas bases'.
Até aqui subscrevo inteiramente o encadeamento argumentativo do precedente acórdão.
Porém, entendeu-se – e aqui radica a minha discordância da posição que fez vencimento – que o artigo 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º
184/89 (e, na sua sequência, o artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de
7 de Dezembro, diploma que foi aprovado pelo Governo não ao abrigo de qualquer autorização legislativa, antes nos termos do artigo 201.º [ hoje, artigo 198.º]
, n.º 1, alínea c), da CRP, por constituir o desenvolvimento do regime jurídico estabelecido no Decreto-Lei n.º 184/89), ao proceder à 'salvaguarda de regimes especiais', designadamente quanto ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos, visou não só excepcionar as situações preexistentes à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 184/89, mas também possibilitar a introdução, no futuro, de 'regimes especiais', constituindo, assim, habilitação para que o Governo, mesmo sem credencial parlamentar, editasse a normação questionada no presente pedido.
2. Entendo, ao invés, que a norma invocada (o artigo
41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89) apenas visou salvaguardar regimes especiais existentes à data da entrada em vigor desse diploma.
Neste sentido aponta desde logo a própria epígrafe
(oficial) do preceito (só se 'salvaguarda' o que existe...) e o tempo verbal utilizado, não parecendo razoável afirmar-se, como o faz o precedente acórdão, que, 'estando utilizado no presente', o verbo salvaguardar 'se aplica, por conseguinte, às excepções que existam ou venham a existir enquanto vigorar', pois, para cobrir esta segunda dimensão, seria mais adequado a utilização do tempo futuro. Trata-se, porém, de argumentação sem relevância decisiva.
O outro argumento invocado no precedente acórdão, extraído da lei de autorização legislativa, também não procede. Invoca-se aí a alínea b) do artigo 15.º da Lei n.º 114/88 – segundo a qual um dos sentidos do diploma a editar seria o de 'rever os princípios de gestão de recursos humanos, tendo em vista a sua flexibilização pela valorização do mérito e do empenhamento no serviço público, pela flexibilização dos quadros de pessoal e das regras de recrutamento, promoção e progressão e pelo enriquecimento funcional dos cargos'
– para se afirmar que ela não pode deixar de indiciar 'que se estará, mais do que perante a intenção de pôr a salvo situações eventualmente existentes, face à tentativa de construção de uma nova forma de solucionar as diversas questões suscitadas pelo regime do pessoal da Administração Pública'. Acontece, porém, que não é essa alínea b) (que respeita à revisão dos princípios de gestão de recursos humanos) a que releva no presente caso, mas antes a alínea c) do citado artigo 15.º, que define o sentido da legislação a emitir pelo Governo quanto à definição dos princípios gerais da relação de emprego público, o que veio a ser feito pelo Decreto-Lei n.º 184/89. Resulta dessa alínea c) que a legislação a publicar pelo Governo devia ter o sentido de 'definir os princípios gerais da relação de emprego público, simplificando e tipificando os diversos títulos de vínculo, identificando as situações que devam ser objecto de nomeação ou de vinculação precária (...)'.
Estes objectivos de simplificação e de tipificação dos títulos de vínculo e de identificação das situações em que cada um destes títulos poderá ser utilizado é manifestamente incompatível com uma cláusula em branco, como aquela que resultará do artigo 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º
184/89, com a extensão que o precedente acórdão lhe atribui. A simplificação pressupõe a redução da complexidade de um sistema com múltiplas formas de vinculação; a tipificação implica a indicação taxativa das formas de vinculação que passam a ser consentidas e a precisa identificação das situações em que cada uma delas pode ser utilizada. Esses objectivos foram atingidos quando o Decreto-Lei n.º 184/89 reduziu a três os títulos de vinculação doravante consentidos (nomeação, contrato administrativo de provimento e contrato de trabalho a termo), com expressa postergação de quaisquer outros (designadamente, o contrato de trabalho sem termo), e com clara enunciação dos casos de utilização da vinculação precária.
A 'ordem' que, desse modo, o Decreto-Lei n.º 184/89 introduziu na matéria fica completamente destruída com o alcance atribuído pelo precedente acórdão ao n.º 1 do artigo 41.º, pois ele permitirá ao Governo, casuisticamente, e independentemente de credencial parlamentar, alterar no futuro o regime do pessoal de todo e qualquer instituto público que revista a forma de serviço personalizado ou de fundo público, substituindo o regime comum da função pública pelo regime do contrato individual de trabalho, e ainda – saliente-se – de todo e qualquer serviço da Administração directa, substituindo o regime comum da função pública pelos mais diversificados regimes de direito público privativos. Isto é: onde o legislador das bases do regime e âmbito da função pública quis simplificar e tipificar os títulos de constituição da relação jurídica de emprego público, com identificação precisa das situações a que cada um se aplica, o Tribunal Constitucional vem permitir a sua ilimitada proliferação, através de intervenções legislativas avulsas do Governo, sem precedência de autorização legislativa e sem prévia enunciação de qualquer critério geral orientador. Concretiza-se assim o efeito perverso denunciado no Acórdão n.º 208/2002 (de cuja orientação o precedente acórdão se afasta) quando referia que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP, 'não pode deixar de incluir a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime, sob pena de se abrir a porta a um esvaziamento da reserva pela via da multiplicação de regimes excepcionais' (sublinhado acrescentado).
Concluindo que o artigo 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º
184/89 apenas visou salvaguardar os regimes especiais existentes à data da sua entrada em vigor (no mesmo sentido, quanto à norma paralela do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 417/89, de 7 de Dezembro, cf. Cláudia Viana, 'A Laboralização do Direito da Função Pública', Scientia Ivridica, tomo LI, n.º 292, Janeiro/Abril
2002, págs. 81-95, em especial pág. 92), tal norma não constitui credencial bastante para habilitar o Governo a, desprovido de autorização legislativa específica, instituir, no caso concreto do Instituto Geográfico Português, um regime de pessoal excepcional ou contrário ao regime geral consagrado nas bases da relação jurídica de emprego público.
Daí a inconstitucionalidade orgânica das normas questionadas.
Mário José de Araújo Torres