Imprimir acórdão
Processo nº 695/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - A Câmara Municipal de ... recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida no 2º Juízo Criminal dessa Comarca, em processo crime onde se constituiu assistente, sendo arguido B.
O recurso foi, na oportunidade, objecto de despacho judicial de não admissão, tido por manifestamente extemporâneo.
Inconformada, reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 405º do Código de Processo Penal (CPP), e suscitou a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 414º do mesmo diploma, que terá sido interpretada e aplicada sem considerar, na contagem do prazo de recurso, o disposto no nº 6 do artigo 698º do Código de Processo Civil
(CPC), observável ex vi do artigo 4º do primeiro desses diplomas, o que, em seu entender, viola o disposto nos artigos 13º, 20º, nº 5, e 32º, nºs. 1 e 7, da Constituição da República (CR).
Negado provimento à reclamação, por despacho de 30 de Novembro de 2001, interpôs a Câmara Municipal de... recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o qual culminaria no acórdão nº 239/2002, de 29 de Maio de 2002, julgando-o manifestamente infundado.
1.2. - Notificada do assim decidido, a interessada dirigiu-se, então, ao Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, a interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça – nos termos dos artigos 437º e seguintes do CPP
– do despacho acima mencionado daquele Magistrado, por alegada oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de Setembro de 2000 (recurso nº
1435/00), publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, tomo IV, pág. 49.
Esta reacção mereceu do Presidente do Tribunal da Relação um novo despacho, de 22 de Junho de 2002, não admitindo o recurso interposto.
Consoante se escreveu, então, '[a]decisão do presidente do tribunal superior a que alude o artigo 405º do Código de Processo Penal não é um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nem é um acórdão do Tribunal da Relação, pelo que, obviamente, não está abrangida pelas normas dos artigos 437º e segs. do mesmo Código'.
Deduzida reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido despacho, em 2 de Outubro último, mantendo a decisão anterior e, consequentemente, indeferindo a reclamação apresentada.
Ponderou-se então:
'Como resulta claramente do artº 437º do CPP, a lei só permite o recurso para a fixação de jurisprudência quando se encontrem em oposição acórdãos do Supremo Tribunal ou da Relação. Não permite uma extensão desse recurso aos casos de oposição entre uma decisão de um Presidente do tribunal superior e um acórdão da Relação. Nem tão pouco a equiparação estabelecida no artº 70º, nº 3 da LTC pode ter aplicação ao caso dos autos, uma vez que respeita à admissibilidade dos recursos para o Tribunal Constitucional. Quanto à invocada inconstitucionalidade cabe referir que face ao disposto no artº 32º, nº 1, da lei fundamental, as garantias de defesa em processo penal se bastam com a apreciação do objecto da causa em duas instâncias. Note-se que aqui estamos perante uma decisão do Presidente do tribunal superior que aprecia uma reclamação e não um recurso, a qual nos termos do nº 4 do artº 405º do CPP é definitiva quando confirma o despacho de indeferimento. Acresce que não se visualiza nenhuma situação de desigualdade perante terceiros, uma vez que em situações como a dos autos a ninguém é conferida a possibilidade de recorrer.'
2. - É desta decisão que a Câmara Municipal de...., novamente inconformada, interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 437º do CPP quando interpretada como foi no despacho recorrido, ou seja, no sentido da inadmissibilidade do recurso extraordinário para fixação da jurisprudência quando a oposição de julgados se materializa, não entre acórdãos, nos termos nela previstos, mas entre um acórdão da Relação e um despacho do Presidente da Relação, proferido, nos termos do nº 4 do artigo 405º do CPP – o que, em sua tese, viola o disposto nos artigos 13º e 20º, nº 5, da CR.
Recebido o recurso, a recorrente alegou oportunamente, formulando um extenso elenco conclusivo que, deste modo, se sintetiza:
a) a oposição de julgados é 'manifesta e flagrante', porquanto no acórdão fundamento foi decidida a admissão do recurso com o acréscimo do prazo previsto no nº 6 do artigo 698º do CPC, enquanto na decisão recorrida não se admitiu o recurso interposto no período desse acréscimo no prazo do recurso;
b) a interpretação feita – segundo a qual o artigo
437ºdo CPP só admite como fundamento do recurso para fixação de jurisprudência a oposição entre acórdãos e não entre um acórdão e uma decisão de Presidente de Tribunal Superior- é literal e redutora e consubstancia uma 'aplicação positivista do direito', violadora dos princípios constitucionalmente consagrados da Justiça e da Segurança;
c) é uma interpretação que não toma em consideração a equiparação plena das reclamações para os Presidentes dos Tribunais Superiores aos recursos, estabelecida no nº 3 do artigo 70º da Lei nº 28/82, impondo-se uma interpretação extensiva da norma do artigo 437º, sistemática e teleológica ou, pelo menos, a interpretação analógica, de outro modo estabelecendo uma 'clara discriminação' geradora de desigualdade perante terceiros, relativamente a recursos interpostos no prazo acrescido e como tal admitidos;
d) na verdade, semelhante interpretação viola o princípio da igualdade previsto no artº 13º da Constituição da República Portuguesa, porquanto não há que distinguir a natureza das decisões em conflito
(despachos ou acórdãos) para se admitirem os recursos extraordinários de fixação de jurisprudência quando há oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, pois só assim se consagra a segurança na aplicação do direito, em prejuízo da arbitrariedade sustentada na discriminação e na desigualdade entre situações idênticas (oposição de julgados), merecedoras do mesmo tratamento face à lei, isto é, de resolução definitiva do conflito jurisprudencial subjacente;
e) trata-se, assim, de uma interpretação e aplicação formal do artº 437ºdo CPP, assente num argumento extraído do sentido literal do seu teor, só possível, como ficou exposto, por existência de lacuna da lei, causadora de discriminação arbitrária e totalmente irrazoável, em clara violação daquele princípio da igualdade material estabelecido no artº 13ºda CRP;
f) por outro lado, é igualmente violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva, assegurada pelo artigo 20º da Constituição, coarctando-se à recorrente o seu direito à obtenção de uma decisão judicial que fixe jurisprudência nesta controversa questão: o legislador, ao consagrar na lei o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, com o objecto de dirimir os conflitos na aplicação do direito, emergentes da oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, revela, inequivocamente, que a tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos cidadãos só é definitivamente garantida com tal instrumento (recurso), pois só assim se alcança a certeza e a segurança na aplicação do direito.
O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, por sua vez, contra-alegou, concluindo:
'1- A solução jurídica constante das normas invocadas como inconstitucionais pelo recorrente – e traduzida em condicionar a admissibilidade do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência à invocação de um efectivo conflito de acórdãos, provenientes de tribunais situados no mesmo patamar da hierarquia judiciária – não afronta o direito de acesso à justiça do assistente, nem viola o princípio da igualdade.
2- Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - O presente recurso de fiscalização concreta tem por objecto a norma do artigo 437º do CPP, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência quando a oposição de julgados se materializa não entre acórdãos, mas entre um acórdão da Relação e um despacho do Presidente da Relação, proferido nos termos do nº 4 do artigo 405º do mesmo Código.
2.1. - O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre problemática com estreita semelhança à presente.
Assim, no acórdão nº 247/97 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Maio de 1997), considerou-se que a norma do nº 2 do artigo 437º não inclui, na sua previsão, a hipótese de oposição entre um acórdão do Tribunal da Relação e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que sobre a mesma questão de direito se debruçam, no domínio da mesma legislação, entendendo, no entanto, que tal não fere normas ou princípios constitucionais.
Contemplando, então, uma eventual violação do disposto no artigo 32º da Constituição, o que, no caso sub judice, foi também convocado, se bem que indirectamente (cfr. conclusão 25º das alegações do recurso) –, o citado aresto ponderou, designadamente:
'[...] Começando pelo plano da pretensa violação do princípio constitucional das
'garantias de defesa do arguido em processo penal', consagrado em toda a sua extensão no artigo 32º da Lei Fundamental, não se vê como ele dê cobertura a um eventual direito do arguido a interpor e a 'esgotar sistematicamente todas as vias de recurso em abstracto existentes no ordenamento jurídico', incluindo a ora questionada e não prevista expressamente no Código de Processo Penal [...]
Com efeito e de acordo com a jurisprudência reiteradamente afirmada por este Tribunal Constitucional, e no quadro das garantias de defesa do arguido, o que se vem afirmando é a garantia de um segundo grau de jurisdição relativamente a decisões condenatórias em pena privativa de liberdade, para que fique assegurado ao arguido o direito a uma reapreciação de tais decisões (cfr., v.g. os acórdãos nºs 31/87 e 265/94, publicados no Diário da República, II Série, nºs 76, de 1 de Abril de 1987, e 165, de 19 de Julho de 1994, respectivamente).
Só que isso não significa que seja necessariamente o Supremo Tribunal de Justiça, a assegurar essa reapreciação - no caso isso poderia ser conseguido através do recurso para fixação de jurisprudência -, podendo perfeitamente atingir-se esse objectivo com o tribunal de relação, como aqui, aliás, aconteceu
[...].'
Num segundo momento, o acórdão citado passou a encarar a eventualidade de violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da lei fundamental, escrevendo-se a este respeito:
'[...] também [neste plano] não se alcança como se possa ver aí uma solução materialmente infundada, porque baseada em motivos subjectivos ou arbitrários, sendo este aspecto o que releva para aferir a violação do princípio da igualdade, como é jurisprudência corrente deste Tribunal Constitucional. Enquanto princípio vinculativo da lei, traduzindo a ideia geral de proibição do arbítrio, não é o princípio da igualdade violado pela norma questionada do artigo 437º, nº 2, quando exclui da sua previsão certo fundamento possível do recurso extraordinário para fixação da jurisprudência. Sem necessidade de entrar na caracterização teórica desse recurso - podendo dizer-se sempre que ele visa 'obstar à sedimentação e cristalização de correntes jurisprudenciais contraditórias no âmbito dos tribunais a que compete dirimir, em última instância, certa questão de direito' (...), e encurtando razões, tem de reconhecer-se em todo o caso que a tal possibilidade de que fala a recorrente de se formarem 'conceitos opostos', relativamente à mesma questão fundamental de direito, não é motivo bastante para que se imponha ao legislador a previsão de um recurso extraordinário para a fixação da jurisprudência abrangendo todas as hipóteses possíveis, a nível de tribunais superiores, de oposição de decisões quanto à mesma questão fundamental de direito. Na verdade, a oposição de decisões, em tais circunstâncias, é uma constante do mundo judiciário, seja em processo penal, seja em processo civil, para a qual a lei pode ou não prever modos de 'remediar', mas eles não têm necessariamente de passar pela última palavra de um recurso extraordinário, cabendo ao legislador, no quadro da discricionaridade legislativa, arrumar as hipóteses em que tem cabimento esse recurso, sem que se possa falar em violação do princípio da igualdade. Exactamente porque não se descortinam motivos subjectivos ou arbitrários na arrumação dessas hipóteses.'
2.2. - O entendimento subscrito no citado acórdão nº 247/97 foi reiterado no acórdão nº 571/98, publicado no Diário da República, II Série, de
26 de Novembro de 1999, aí se citando não só outros lugares jurisprudenciais, como estendendo as considerações anteriores aos parâmetros do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, ou seja, ao artigo 20º da CR.
Destacou-se, então, ao retomar-se a fundamentação desenvolvida no acórdão nº 673/95 (no Diário citado, II Série, de 20 de Março de
1996) que o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente postulado não garante, só por si, que em todas as situações se assegura o direito a um duplo grau de jurisdição.
Na verdade, a jurisprudência constitucional tem, reiterada e uniformemente, afirmado caber ao legislador ordinário uma ampla liberdade de conformação concreta do direito ao recurso, desde que preservado o direito ao recurso das decisões condenatórias (e, segundo alguns, se ressalve igualmente a tutela judicial efectiva para garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos), excepção a violações radicais no sistema dos recursos instituído e da igualdade dos cidadãos na sua utilização (cfr., v.g., acórdãos nºs. 638/98 e 40/2000, publicados no jornal oficial citado, II Série, de 15 de Maio de 1999 e 20 de Outubro de 2000, respectivamente).
3. - Não é este, obviamente, o caso dos autos, pois nem estão em causa as garantias de defesa do arguido, nem a figura do assistente se compagina com esse enquadramento garantístico, como se passa a ponderar.
Com efeito, a fundamentação então invocada para o desenho constitucional da questão suscitada, de modo a poder concluir-se não se justificar a ampliação do âmbito do recurso de uniformização de jurisprudência, em termos de se impor que o Supremo Tribunal de Justiça tenha de dirimir os conflitos jurisprudenciais surgidos, independentemente de quais sejam os órgãos jurisdicionais que hajam proferido as decisões em causa sobre a mesma questão de direito, essa fundamentação naqueles arestos convocada, deve ser observada no caso judice, até porque um argumento de maioria de razão o aconselha.
Na verdade, na especificidade do concreto caso, há a considerar – ainda – que se está perante um recurso interposto pelo assistente, o que, desde logo, não coloca o problema das garantias de defesa, mas sim o do direito de acesso à justiça pelo assistente, como recorrente.
Acresce , como observa o Ministério Público, nas suas alegações, que 'seria bem mais insólito do que a ampliação do dito recurso extraordinário a decisões proferidas por diferentes tribunais superiores
(Relação e Supremo) a ampliação do recurso de uniformização de jurisprudência de modo a abarcar decisões proferidas pelo Presidente do tribunal superior, no específico procedimento de reclamação, e um acórdão de um outro tribunal superior, sendo certo que o ‘conflito jurisprudencial’ relevante sempre foi, no nosso ordenamento jurídico – quer em processo penal, quer em processo civil – um conflito de acórdãos e não uma mera colisão entre soluções constantes de quaisquer outras decisões judiciais, ainda que processualmente definitivas, por inatacáveis em via de recurso ordinário (v.g. a sentença proferida em 1ª instância e insusceptível de recurso ordinário)'.
A solução acolhida não viola, na realidade, nem o direito de acesso à justiça – que não comporta um irrestrito direito a aceder ao Supremo Tribunal de Justiça, muito menos por via de recurso extraordinário – nem o princípio da igualdade, já que não se recorta como solução legislativa arbitrária ou discricionária condicionar o acesso aos meios de uniformização de jurisprudência a uma efectiva colisão de acórdãos, e não (também) de outras decisões judiciais, mesmo que definitivas, por insusceptíveis de impugnação ordinária.
Acresce que não é convocável, a este propósito, uma norma como a do nº 3 do artigo 70º da Lei nº 28/82: a equiparação aí estabelecida circunscreve-se aos recursos de constitucionalidade na vertente da fiscalização concreta, onde se consagra uma acepção ampla do recurso ordinário, sob uma lógica equiparativa decorrente de aí se atribuírem às reclamações função processual idêntica à de um recurso, o que nada tem a ver com os meios possíveis de alcançar uniformização de jurisprudência prevista na lei processual civil.
Reitera-se, consequentemente, aplicando-a aos presentes autos, a anterior orientação jurisprudencial, que se considera ser a correcta. III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Sem custas, por delas a recorrente estar isenta. Lisboa, 28 de Março de 2003 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida