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Processo n.º 644/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., Recorrente nos presentes autos em que constam como Recorridos o Ministério Público, B. e Hospitais da Universidade de Coimbra, foi condenado pelo Tribunal Judicial da Lousã, pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e pela prática de um crime de ameaça, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 8 euros. Foi ainda condenado, na procedência do pedido cível de indemnização, a pagar ao Recorrido Hospitais da Universidade de Coimbra, uma indemnização no valor de €147,00, acrescida de juros de mora contabilizados desde a notificação. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, pugnando pela suspensão da execução da pena de prisão que havia sido decretada. Em 6 de Julho de 2011, aquele Tribunal proferiu acórdão mantendo a decisão anteriormente recorrida.
2. Posteriormente, recorreu para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as posteriores alterações (Lei do Tribunal Constitucional – LTC). No seguimento desse requerimento, foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso.
3. O recorrente vem agora dela reclamar dizendo o seguinte:
“1/ Contrariamente ao versado na Decisão Sumária, o Recorrente indica expressamente quais as normas constitucionais violadas pelo Tribunal da Relação com a interpretação e aplicação das normas penais em questão.
2/ Não se trata de uma mera discordância com o Acórdão em crise, mas de uma verdadeira necessidade de verificação do respeito pelas normas constitucionais invocadas e que regem o nosso sistema jurídico.
3/ Na modesta opinião do Recorrente, sempre que há uma interpretação das normas do nosso ordenamento jurídico, sejam elas penais ou civis, contrárias aos princípios consagrados na nossa Constituição, contendo inclusive com os direitos, liberdades e garantias, existe fundamento sério para o recurso para o Tribunal Constitucional, como é in casu.
4/ Não devendo o mesmo abster-se dessa sindicância.
5/ Por outro lado, e quanto ao argumento de que o Recorrente estava em perfeitas condições de antecipar a aplicação inconstitucional das normas penais indicadas, reitera-se o que já foi dito no requerimento de interposição do presente recurso.
6/ Sendo o Tribunal da Relação um tribunal superior e instância de recurso, no entendimento do Recorrente, o expectável seria uma interpretação e aplicação constitucional dos preceitos penais em causa, o que não aconteceu, e extrapolou as legítimas expectativas do Recorrente.
7/ Daí, e salvaguardando o devido respeito pela opinião contrária, não lhe era possível antecipar a aplicação e interpretação efectuadas pelo Douto Tribunal da Relação.”
4. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“4. Entende-se ser de proferir decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso. Como prescreve o artigo 76.º, n.º 3, da LTC, o despacho de admissão do recurso de constitucionalidade proferido pelo tribunal a quo não vincula o Tribunal Constitucional.
4.1. O recurso de constitucionalidade que o Recorrente pretendeu interpor pressupõe a suscitação de questão de constitucionalidade normativa durante o processo, nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC. Significa isto que o recorrente deve lograr enunciar, durante o processo, o critério normativo extraído do preceito ou preceitos legal em causa, em termos de generalidade e abstracção de modo a que o mesmo se apresente totalmente destacado das particularidades e especificidades da concreta situação em causa. Tal suscitação deve ainda ter ocorrido de modo processualmente adequado (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Suscitar a questão de constitucionalidade normativa em moldes processualmente adequados implica que o recorrente enuncie o sentido atribuído ao preceito legal ou bloco normativo que reputa inconstitucional e que pretende ver apreciado no recurso de fiscalização concreta, e, adicionalmente, que aduza, de modo claro, ainda que sucinto, as razões justificativas, in casu, de um juízo de inconstitucionalidade.
4.2. Saliente-se, em primeiro lugar, que o Recorrente pretende ver apreciada ‘uma interpretação e aplicação inconstitucional’ de vários preceitos do Código Penal sem ter o cuidado de enunciar – nem sequer minimamente – que interpretação seria essa e qual o conteúdo normativo extraível, enquanto ratio decidendi, do acórdão recorrido cuja inconstitucionalidade tenta sustentar e ver apreciada por este Tribunal. Na realidade, o Recorrente demonstra uma manifesta discordância com a decisão de não suspensão da pena de prisão. Mas esta discordância com a decisão não basta para que possa utilizar o mecanismo de impugnação das decisões judiciais previsto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC. Com efeito, o recurso de constitucionalidade ali previsto tem por objecto normas ou interpretações normativas, e não a sindicância das decisões judiciais propriamente ditas. Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas aferir a compatibilidade com a Constituição da interpretação normativa efectivamente aplicada pela decisão recorrida, não lhe cabendo qualquer outra apreciação da decisão judicial recorrida, nomeadamente na parte em que dá por não preenchidos os pressupostos de suspensão da execução da pena de prisão. De tudo isto resulta que o objecto do presente recurso de constitucionalidade, tal como vem delimitado pelo Recorrente, não se apresenta idóneo.
4.3. Mas verifica-se ainda a omissão de outro pressuposto que inviabiliza o conhecimento do presente recurso. Como já se referiu, o recurso em análise pressupõe a suscitação da inconstitucionalidade de norma durante o processo, isto é, até que seja proferida a decisão final. É certo que este requisito pode ser dispensado em determinados casos. São situações verdadeiramente excepcionais em que se constata que a aplicação de certo preceito, ou a aplicação de certo preceito num determinado sentido ou com uma certa interpretação, surge como absolutamente imprevisível, insólita ou inesperada. Este juízo de excepcionalidade não é meramente subjectivo: não basta que o recorrente alegue ter sido surpreendido pela decisão. Com efeito, ele pode, efectivamente, ter sido surpreendido mas podia-lhe ser exigível que antecipasse um tal cenário e, consequentemente, acautelasse a interposição do recurso mediante a suscitação, de modo antecipado e prudente, da questão.
4.4. Nos presentes autos, e como o próprio Recorrente indica, a questão de constitucionalidade foi invocada somente na interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, tendo tal sido justificado com a não antecipação, pelo Recorrente, da aplicabilidade dos preceitos impugnados na decisão a proferir pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Este argumento é, no entanto, manifestamente inaceitável. Ao interpor o recurso para aquela instância, o Recorrente pretendia ver apreciada, e julgada procedente, a questão da suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada. Todos aqueles preceitos do Código Penal se relacionam, directa ou indirectamente, com a questão que integrou no objecto do recurso, definindo, nomeadamente, o critério de escolha da pena, a determinação da medida da pena, as finalidades das penas e medidas de segurança, a contagem dos prazos da pena de prisão, os pressupostos e duração da suspensão da execução da pena de prisão e a previsão de regras de conduta ou de regime de prova. Não pode o Recorrente, portanto, tentar justificar a omissão de um pressuposto essencial ao conhecimento do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade que pretende interpor, com a não antecipação da aplicação destes preceitos. Tal não antecipação – a ter existido – não seria nunca aceitável para estes efeitos concretamente pretendidos, partindo do prisma de um sujeito processual mediano colocado naquela concreta posição processual.
Face ao exposto, resta concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso.”
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Como se sabe, o conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como sucede nos autos, depende da verificação prévia de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo. Isso mesmo decorre não só de tal preceito, mas também do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
5.1. Na decisão sumária ora em crise determinou-se o não conhecimento do recurso pelo facto de, por um lado, o Recorrente não indicar qualquer questão normativa e, por outro, por não ter suscitado a inconstitucionalidade perante o Tribunal da Relação, apenas o tendo feito no recurso dirigido ao Tribunal Constitucional. Sustenta agora aquele que indicou “expressamente quais as normas constitucionais violadas pelo Tribunal da Relação com a interpretação e aplicação das normas penais em questão”. E adianta que, sendo o “Tribunal da Relação um tribunal superior e instância de recurso (…) o expectável seria uma interpretação e aplicação constitucional dos preceitos penais em causa (…).”
O Recorrente limita-se, portanto, a rejeitar os fundamentos que estiveram subjacentes ao não conhecimento sem, no entanto, apresentar quaisquer argumentos que os possam afastar.
5.2. Ora, relativamente à inconstitucionalidade que suscitou, reitera-se que não basta a mera indicação de um bloco normativo com a invocação de que a interpretação do mesmo terá sido inconstitucional e que qualquer interpretação que redundasse na não suspensão da pena de prisão seria inconstitucional.
O recurso de constitucionalidade português tem por objecto normas e não decisões judiciais. Assim, e quando se pretende atacar uma determinada interpretação normativa, não basta indicar as normas de onde a mesma terá sido extraída, é necessário que se especifique o seu conteúdo. Se assim não fosse, o Tribunal Constitucional estaria a substituir-se ao recorrente naquilo que é o seu ónus e que corre por sua conta: a delimitação do objecto do recurso de constitucionalidade.
5.3. No caso dos autos, o Recorrente limitou-se a indicar o bloco normativo cuja interpretação – não especificada – terá violado os parâmetros constitucionais que cotejou no requerimento de recurso. O que individualizou foi, tão-somente, a opção judicial da Relação “ao não suspender a pena de prisão aplicada”. O objecto do recurso integra, portanto, a opção jurisdicional que afastou a suspensão da execução da pena privativa da liberdade, e não, como se exigiria, a interpretação do bloco de preceitos do Código Penal que, violando normas e princípios constitucionais, fundamentaria essa mesma opção. É esta exigência que não foi observada pelo Recorrente e que, face ao teor da reclamação, o mesmo persiste em olvidar.
5.4. Quanto à suscitação da inconstitucionalidade em momento prévio, e à exigência da sua antecipação pelo Recorrente, limitou-se este a dizer que o expectável seria uma interpretação e aplicação constitucional, pelo Tribunal da Relação, dos preceitos legais em causa. Este argumento é manifestamente infundado. A expectativa do respeito pelas normas constitucionais é geral, abrange todos os tribunais e não apenas os de recurso, tanto mais num sistema, como o nosso, em que todos os tribunais, mesmo os de primeira instância, têm acesso directo à Lei Fundamental, devendo recusar a aplicação de normas inconstitucionais, nos termos do artigo 204.º da Constituição. Não se vislumbra, portanto, qualquer fundamento sério para se entender que, neste caso, a suscitação atempada da questão de constitucionalidade não era exigível.
Por tudo o que ficou exposto, resta concluir pela manifesta improcedência da reclamação.
III – Decisão
6. Acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 3 de Outubro de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.