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Proc. nº 379/00
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. A (ora recorrente) foi acusado pelo Exmº Promotor de Justiça de Justiça junto do 3º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, pela prática de um crime de peculato, previsto e punível pelo artigo 193º, nº 1, al. a) do Código de Justiça Militar.
2. Por acórdão de 2 de Março de 2000 decidiu o 3º Tribunal Militar Territorial de Lisboa:
'1. Declarar que os factos imputados ao réu A, Sar/Chefe GNR nº ... não constituem crime essencialmente militar e, consequentemente, julgar o foro militar absolutamente incompetente em razão da matéria para deles conhecer e competente o foro comum.
2. Subsidiariamente julgar inconstitucional a norma constante do art. 193º, nº 1 do CJM, se interpretada no sentido de que tal factualidade imputada ao réu constitui crime essencialmente militar, por violação do artigo 215 nº 1 da CRP/89.
3. Julgar inconstitucional a norma constante da alínea a) do nº 1 do art. 193º CJM, por violação dos princípios constitucionais da igualdade (art. 13º) e da proporcionalidade (art. 18º, nº 2), comparativamente com a norma constante do art. 375º nº 1 CP.
(...)'.
3. Deste acórdão foi interposto pelo Exmº Promotor de Justiça recurso obrigatório para o Supremo Tribunal Militar que, por acórdão de 4 de Maio de
2000, decidiu:
'(...) conceder provimento ao recurso julgando-se competente o foro militar para conhecer dos factos dos autos e revogando-se o acórdão recorrido na parte em que declarou que o foro militar é absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer dos factos dos autos; que estes não constituem crime essencialmente militar; e que é inconstitucional a norma constante do art. 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, se interpretado no sentido de que a factualidade imputada nos autos ao réu constitui crime essencialmente militar. Não se conhece, por carência de qualquer efeito prático, da
(in)constitucionalidade do segmento normativo constante da alínea a) do n.º 1 do art. 193º Código de Justiça Militar.
(...)'.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade da norma que se extrai do n.º 1 do artigo 193º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril, enquanto qualifica o crime de peculato militar como crime essencialmente militar, por alegada violação do disposto no artigo 215º, n.º 1 da Constituição
(na redacção decorrente da revisão de 1989).
5. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'a) O elemento diferenciador entre o tipo de crime previsto no artigo 193º do CJM e o do artigo 375º do Código Penal é a qualidade de «integrado ou ao serviço das Forças Armadas», o qual no Código Penal corresponde a «funcionário»; b) O conceito de funcionário público para efeitos penais abrange o funcionário militar, pelo que se o R. não tivesse sido julgado em tribunal militar, tê-lo-ia sido nos tribunais comuns; c) Com a promulgação da CRP de 1976 passou a competir aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares, sendo que com o afastamento do foro pessoal, a qualidade de militar, por si só, deixou de ser motivo para a qualificação do facto como crime essencialmente militar; d) O Tribunal Constitucional na sua jurisprudência mais recente tem exigido a violação dum bem especificamente militar na qualificação de um crime como essencialmente militar; e) Por outro lado, com as alterações do artigo 213º da CRP, passou a competir aos tribunais militares o julgamento dos crimes estritamente militares; f) O conceito de crime essencialmente militar não pode deixar de ser entendido como sendo facto que ofende bens jurídicos que se encontram particularmente adstritos à prossecução das finalidades das forças armadas e que transcendam a tutela indirecta e mediata da disciplina destas; g) Da conjugação do artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 com o n.º 3 do artigo 211º da CRP, resulta que, presentemente aos tribunais militares compete o julgamento dos crimes essencialmente militares; g) No caso dos autos não é ofendido um interesse associado à função específica de defesa nacional, condição de livre desenvolvimento dos cidadãos portugueses e da preservação dos seus interesses individuais e colectivos; h) O facto de o arguido ter a qualidade de militar é irrelevante para qualificar o facto praticado como essencialmente militar e por maioria de razão como estritamente militar, afastado que está o foro pessoal dos militares e sendo que não foram postos em causa bens especificamente militares ligados à função militar específica de defesa da Pátria; i) O dinheiro tem natureza e função pecuniária, económica e fiduciária, e não é pelo facto de estar afecto à GNR ou às Forças Armadas que passa a ter natureza de essencialmente militar, tal como o afecto ao Ministério da Justiça, da Educação da Solidariedade, das Finanças, não têm natureza de essencialmente judiciário, académico, solidário ou financeiro. j) Não referindo o libelo mais do que o dinheiro pertencia ao «Estado, a quem causou prejuízo», não poderia deduzir-se que foram afectados interesses militares de defesa nacional socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria; k) Se todos os cidadãos são iguais perante a lei, não se vislumbra razão para, em tempo de paz, distinguir condutas desviantes do dinheiro destinadas para pagamento de água, luz, energia, bens de consumo corrente, seja na Academia Militar, no Hospital de Santa Maria, no Grupo Territorial de Sintra da GNR ou no bar da Escola Secundária de Sacavém; l) A essencialidade do dinheiro é genérica e comum a todos: escolas, hospitais,
órgãos de soberania, encontrando-se a sua protecção assegurada pelo direito penal comum; m) A norma do artigo 193º n.º 1 do CJM é inconstitucional, enquanto nela se qualifica como crime essencialmente militar o crime de peculato através da distracção e utilização em proveito próprio de dinheiro, pertencente ao Estado e que não se destina à satisfação de interesses socialmente valiosos, que se ligam
à função militar específica de defesa da Pátria, por violação dos artigos 211º e
213º da CRP (versão de 1997 e atento o disposto no artigo 197º da LC n.º 1/97). n) Sendo a norma do artigo 193º n.º 1 do CJM inconstitucional nos termos sobreditos, o tribunal militar é incompetente para conhecer do crime de que vem acusado Réu'.
6. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, o Ministério Público concluiu da seguinte forma: ' O crime de peculato do artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, enquanto qualificado como crime essencialmente militar, seja por nele se tutelar um bem jurídico próprio da instituição castrense, seja por se conexionar estruturalmente com a mesma instituição não ofende o disposto no artigo 215º da Constituição (versão de 1989)'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma que se extrai do n.º 1 do artigo 193º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril, enquanto qualifica o crime de peculato militar como crime essencialmente militar. Esta questão não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional que, recentemente, no seu Acórdão n.º 194/2002 (ainda inédito, mas que pode ser consultado na página do Tribunal Constitucional na Internet, em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm ), tirado na 2ª Secção, teve oportunidade de com ela se confrontar, tendo concluído pela não inconstitucionalidade da referida norma. Ponderou, então, este Tribunal:
' (...) 3. O artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, tem a seguinte redacção: Artigo 193º
(Peculato)
1. Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, tendo em seu poder ou
à sua responsabilidade, em razão das suas funções militares, permanentes ou acidentais, dinheiro, valores ou objectos que lhe não pertençam, os distrair de suas legais aplicações em proveito próprio ou alheio, será condenado:
(...)
O recorrente sustenta que o disposto no artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 significa que os tribunais militares que se mantêm em vigor por força dessa disposição apenas têm competência para julgar os crimes estritamente militares, nos termos do artigo 213º da Constituição.
Ora, tal argumentação assenta num equívoco evidente: o artigo 213º reporta-se a tribunais militares a constituir, quando os actuais forem extintos o que coincidirá com a regulamentação do artigo 211º, n.º 3, da Constituição. Enquanto tal não acontecer, mantêm-se em vigor os tribunais militares, não fazendo sentido, naturalmente, a invocação do disposto no artigo 213º da Constituição (como de resto entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º
47/99). O parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma em questão será então o artigo 215º da Constituição (na versão decorrente da Revisão de 1989).
4. O recorrente sustenta que a apropriação do dinheiro pertencente às Forças Armadas não constituiu uma afectação de um qualquer bem ou valor específico daquela instituição. O recorrente procura fundamentar tal entendimento, invocando as situações de apropriação de dinheiro pertencente a outros serviços do Estado, o que, na sua perspectiva, não consubstanciaria situações substancialmente diferentes do caso dos autos.
A apreciação da questão de constitucionalidade normativa que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade pressupõe a identificação dos elementos de conexão entre uma dada incriminação e os valores da instituição militar, elementos esses necessários para que se possa fundamentar um juízo de constitucionalidade sobre a qualificação de um crime como essencialmente militar. Ora, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, diversas vezes, sobre a conformidade à Constituição da qualificação de determinadas incriminações como crimes essencialmente militares. No Acórdão n.º
271/97 (D.R., I Série-A, de 15 de Fevereiro de 1997), o Tribunal Constitucional considerou o seguinte:
«[...] é consensual a ideia de que o punctum saliens dos «crimes essencialmente militares» se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias,
«tal como sucede com o direito penal Comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico», pelo que «o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão» (Cf. 'Justiça militar', in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25 e 26).'
Consequentemente, nesse aresto, foi julgada inconstitucional a norma do artigo 207º, nº 1, alínea b), com referência ao artigo 1º do Código de Justiça Militar, enquanto nele se qualifica como crime essencialmente militar o crime negligente de ofensas corporais cometido por militar em acto de serviço, causado por desrespeito de norma de direito estradal.
Com fundamentação semelhante, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional «(...) as normas do artigo 186° n° 1 alíneas a) e d) e n° 2 do CJM, no Acórdão n° 347/86, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 8° vol., pp. 585 e segs.; e isto concretamente porque as condutas aí puníveis 'têm uma conexão relevante com o dever militar ou, quando menos, com a segurança ou a disciplina das forças armadas. Ou seja: tais condutas afectam inequivocamente interesses de carácter militar, não saindo, por isso, do âmbito estritamente castrense. Elas, na verdade, atingem - para além do bem jurídico da genuinidade documental, em causa nas falsificações punidas pelo Código Penal - outros valores que são essencialmente militares (o dever militar, a segurança e a disciplina militar)».
Por seu turno, no Acórdão n.º 432/99, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 201º, n.º 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, na medida em que qualifica como essencialmente militar o crime de furto de objectos pertencentes a militares, quando praticados por outro militar, tendo então afirmado o seguinte:
«Entre o direito penal geral e o direito penal cujo objecto está associado à actividade militar há, seguramente, uma relação de especialidade, no sentido de este último se referir à tutela de bens jurídicos especiais, inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às Forças Armadas. A diferenciação entre o direito penal e o direito disciplinar é uma das características irrenunciáveis da configuração do Estado de direito como sistema diverso das suas concretas instituições internas. Os fins gerais do Estado de direito não se confundem em absoluto com o bom funcionamento e a auto-reprodução dessas mesmas instituições. É essa capacidade de distinguir o funcionamento do Estado de direito como bem jurídico-penal dos bens jurídicos relativos ao bom funcionamento interno das suas concretas instituições que permite não confundir a desobediência ao superior hierárquico, por si mesma, com a violação do Estado de direito ( o que, em última análise, também explica a estatuição do artigo
271°, n° 3, da Constituição reiterada pelo artigo 36°, n° 2, do Código Penal, segundo a qual 'cessa o dever de obediência quando conduza à prática de um crime'). Deste modo, uma especial configuração dos crimes relacionados com a instituição militar terá que ser justificada, para além dos aspectos conexionados com a qualidade do autor ou com a disciplina das Forças Armadas, pela protecção de bens essenciais à existência, coesão e preservação da sociedade em geral - pois só tais bens têm específica dignidade penal (sobre esta relação entre a tutela penal e a essencialidade dos bens militares para o Estado de direito, cf. Acórdãos nºs. 958/96, D.R., II Série, de 19 de Dezembro de 1996; 329/97, de 17 de Abril de 1997, inédito; 201/98, D.R., II Série, de 24 de Julho de 1998). Não será, tão-só, a mera preservação da disciplina dos militares, como ratio da pena ou de uma sua agravação relativamente ao crime comum, que justificará a natureza essencialmente militar dos tipos criminais. A categoria dos crimes essencialmente militares não poderá ser delimitada formalmente como classe de crimes relacionados com a Instituição Militar por qualquer ponto de conexão, mas apenas como classe de crimes que atentem contra bens jurídicos militares de relevância geral para o Estado de direito democrático».
No Acórdão n.º 47/99, o Tribunal Constitucional apreciou uma questão substancialmente idêntica à dos presentes autos. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional procedeu à apreciação da norma do artigo 201º do Código de Justiça Militar, enquanto qualifica a subtracção, praticada por militar, de objectos pertencentes à administração militar como crime essencialmente militar. Nesse aresto, ponderou-se o seguinte:
«3.3 - A revisão da legislação penal militar impôs-se, desde logo, com a entrada em vigor da CRP, no mínimo pela delimitação da competência dos tribunais militares que o artigo 218° consagrava. Vigorava, então, o CJM aprovado pelo Dec. n° 11292, de 26 /11/25, que previa no seu artigo 1º factos que constituem 'crimes essencialmente militares' (1°) e factos que 'tomam o carácter de crimes militares (2°), sendo considerados crimes essencialmente militares os previstos no capítulo I do título II do livro I (§
único). Crimes essencialmente militares eram, por definição legal, integrados pelos factos que violavam algum dever militar ou ofendiam a segurança e a disciplina do exército ou da armada; o 'carácter de crimes militares' era dado 'em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou de outras circunstâncias'. Com o CJM aprovado pelo DL n° 141/77, de 9 de Abril, consideram-se 'crimes essencialmente militares' - únicos a que o Código se aplica, por imperativo constitucional - 'os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar'. Verifica-se, assim, que o Código vigente incluiu na definição de 'crimes essencialmente militares' o que já constava do conceito expresso no Código anterior, alargando-a aos factos ofensivos dos interesses militares da defesa nacional, tudo com a limitação formal de os crimes merecerem uma tal qualificação pela lei militar. Curiosamente, a maior parte dos crimes que no Código anterior tinham apenas o carácter de crimes militares - o que de algum modo significava que os factos incriminados não violavam deveres militares ou ofendiam a segurança e a disciplina das forças armadas - passam a ser, no Código vigente 'crimes essencialmente militares' - e é precisamente o caso do crime de furto de objectos pertencentes ao Estado praticado por militares, previsto no artigo 226° do CJM anterior. Deste facto dá nota o Consº Luís Nunes de Almeida, na sua intervenção no Colóquio Parlamentar sobre Justiça Militar (cfr. 'Justiça Militar- Colóquio Parlamentar', 1995, pp. 77), ajuizando que o legislador do CJM utilizara um conceito - o de crime essencialmente militar sedimentado com o sentido de abranger apenas os factos que atingiam bens jurídicos essenciais e específicos da instituição militar, passando ele a compreender situações que nunca como tal haviam sido consideradas. O artigo 215° n° 1 da CRP (revisão de 89) deixa para a lei a definição do conceito de 'crimes essencialmente militares'. A liberdade de conformação que é assim deixada ao legislador ordinário não faz com que o juízo de constitucionalidade se baste com a qualificação de crime essencialmente militar que a lei infra-constitucional dê a determinados factos; e nem sequer o próprio conceito legal de 'crime essencialmente militar' fica subtraído a esse juízo, sem embargo de se aceitar que 'a caracterização típica do conceito de 'crimes essencialmente militares' resultará, acima de tudo, da natureza dos bens jurídicos violados em cada crime, sendo certo que, quando se verifique ofensa de interesses específicos elencados no artigo 1° n° 2 do Código
(...) existirá, em princípio. um crime daquela natureza' (Acórdão n° 680/94 in DR II Série de 25/2/95, com sublinhado nosso). Ora, o que na caracterização do crime essencialmente militar o Tribunal Constitucional deixou dito como consensual foi - recorde-se - 'a ideia de que o punctum saliens dos 'crimes essencialmente militares' se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser naturalmente, bens jurídicos militares.'(cit. Acórdão n° 271/97)».
O Tribunal, depois de afirmar que o bem jurídico tutelado pela norma apreciada não é apenas o património militar, concluiu o seguinte:
«Mas, no caso do crime de furto de objectos pertencentes à administração militar, praticado por militar, se há um círculo de bens ou interesses violados que se justapõe ao do crime de furto comum, o que dele exorbita é já uma área onde os referidos interesses fundamentais da instituição militar são directamente atingidos; o facto de o agente do crime ser militar funciona aqui com uma carga valorativa própria que permite considerá-lo como elemento essencial de conexão com a instituição militar não como elemento acidental ou acessório como sucedia no crime de homicídio culposo ou de ofensas corporais culposas por desrespeito de normas de direito estradal. Em suma, pois, o crime de furto previsto no artigo 201° n° 1 alínea d) do CJM, enquanto qualificado como crime essencialmente militar por força do artigo 1 o do mesmo Código, seja por nele se tutelar um bem jurídico próprio da instituição castrense, seja por se conexionar estruturalmente com a mesma instituição, não ofende o disposto no artigo 213° da CRP (revisão de 89)».
9. Nos presentes autos está em causa a apreciação da conformidade à Constituição da norma que qualifica como crime essencialmente militar o crime de peculato praticado por militares tendo por objecto dinheiro das Forças Armadas.
As considerações constantes do Acórdão n.º 47/99 podem ser invocadas no presente processo. Com efeito, os bens apropriados pelo arguido militar pertencem exclusivamente à administração militar, estando directamente adstritos
à prossecução das finalidades cometidas às Forças Armadas. Também aqui se identifica uma área onde os interesses fundamentais da instituição militar são directamente atingidos: trata-se de um militar que desvia ilegitimamente bens pertencentes às forças armadas, aos quais ele tem acesso por força das suas funções de militar. Existe, pois, uma conexão estrutural, essencial com a instituição militar, que faz com que o crime praticado atinja também valores fundamentais inerentes à existência e funcionamento dessa instituição.
A invocação dos casos de apropriação ilegítima de bens afectos a outros serviços públicos não se afigura procedente para sustentar a tese da inconstitucionalidade defendida pelo recorrente. Por um lado, a especificidade do crime de peculato praticado por militares decorre, desde logo, das funções particulares das Forças Armadas, substancialmente diferentes das funções dos outros órgãos do Estado. Por outro lado, o crime de peculato, previsto no artigo
375º do Código Penal, consubstancia um crime específico, em face do crime de abuso de confiança, previsto no artigo 205º do Código Penal. Desse modo, verifica-se que a apropriação ilegítima de bens, quando praticada por funcionários, também merece um tratamento diferenciado relativamente ao mesmo facto quando praticado por não funcionários.
Improcede, portanto, o presente recurso'.
8. É, pois, esta jurisprudência - para cuja fundamentação se remete - que, por manter inteira validade, agora há que reiterar. III Decisão Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta Lisboa, 28 de Março de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida