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Processo nº 527/02
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. O Ministério Público recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da LTC, da decisão do Juiz do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga que, na graduação de créditos em que é exequente A., e executado B., recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 8 de Maio, quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário nela conferido prefere às garantias reais legal e anteriormente constituídas e registadas, e, nessa conformidade graduou um crédito do Centro Regional de Segurança Social do Norte depois do crédito exequendo e de um crédito reclamado por C., ambos garantidos por penhoras já anteriormente registadas.
É do seguinte teor, na parte que aqui interessa, a decisão recorrida:
Como já vimos, o crédito exequente goza da garantia concedida pela penhora registada definitivamente a favor do exequente e relativamente a todos os imóveis penhorados, em 21 de Junho de 2000.
O crédito reclamado por C. goza da garantia concedida pela penhora, está registada a seu favor relativamente a todos os prédios penhorados, em 6 de Dezembro de 2000.
Quanto ao crédito reclamado pelo Centro Regional de Segurança Social do Norte, deve atentar-se antes de mais que o mesmo poderia gozar da garantia concedida por hipoteca legal, nos termos do artº 12º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio. Todavia, não procedeu o credor ao registo da mesma pelo que não pode ser tida em conta para o efeito.
Mas gozará tal crédito da garantia que lhe é concedida pelo artº 11º do mesmo Decreto-Lei e que consiste num privilégio imobiliário com graduação logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil?
Esta disposição (artigo 11º) foi analisada já pelo menos por duas vezes pelo Tribunal Constitucional (Acórdão nº 160/2000 e Acórdão nº 354/2000, publicados respectivamente no DR II Série nº 234 de 10/10 e nº 257 de 7/11) os quais se pronunciaram ambos no sentido de que a interpretação segundo a qual é aplicável a graduação do artº 748º e a rejeição de outras garantias previstas no artº 751º é inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão consagrados no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
Aderimos totalmente às posições aí expendidas, verberando que a interpretação a incidir sobre o citado artº 11º deve-o ser com o sentido de que o privilégio imobiliário (geral?) dos créditos da Segurança Social só deve ser graduado logo após os créditos referidos no artº 748º do Código Civil se outra preferência não resultar de garantias reais legal e anteriormente constituídas e registadas .
Assim, na presente graduação deve ter-se em atenção o disposto no artigo 822º do Código Civil e no artigo 6º, nº 1, do Código de Registo Predial.
2. Já neste Tribunal, o relator, afigurando-se-lhe que a questão a resolver seria simples, tendo em conta a jurisprudência fixada no Acórdão nº
160/00 (Diário da República , II Série, de 10 de Outubro de 2000), bem como no Acórdão 354/00 (Diário da República, II Série, de 7 de Novembro de 2000) e confirmada no Acórdão nº 109/02 (Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 2002), este tirado em plenário, lavrou decisão sumária a negar provimento ao recurso, considerando que tal jurisprudência seria aqui de aplicar, mutatis mutandis.
No entanto, tendo o Ministério Público reclamado para a conferência, esta viria, por unanimidade, a ordenar o prosseguimento dos autos,
«tendo em conta a eventual complexidade das questões suscitadas» naquela reclamação.
3. Só o Ministério Público apresentou alegações, expendendo a seguinte argumentação:
O Tribunal Constitucional já se pronunciou efectivamente, em numerosos arestos, sobre a questão da constitucionalidade de normas que outorgam a entes públicos – como garantia de créditos fiscais ou para-fiscais – determinados privilégios creditórios, conduzindo a uma prioridade no pagamento relativamente aos restantes credores do executado.
Assim – e no que toca aos privilégios mobiliários gerais, concedidos quer pelo Código Civil (artigo 736º), quer por disposições legais avulsas (v.g. artigo 10º do Decreto-Lei 103/80) para garantia de créditos fiscais ou da segurança social, - tem o Tribunal Constitucional emitido um juízo de não inconstitucionalidade das normas que o outorgam, fundado na ideia de que as finalidades subjacentes aos sistemas fiscal e da segurança social legitimam e justificam a quebra da regra da “par conditio creditorum”, de modo a facultar a prioridade no pagamento pelo valor de certos bens, atribuída a determinados créditos de entidades públicas, ponderada a sua natureza e origem (cfr. Acórdãos
688/98 e 153/02).
Porém, nos acórdãos 354/00 e 561/00, já considerou o Tribunal Constitucional colidente com o princípio da confiança a norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei 103/80, interpretada como outorgando às instituições de previdência um privilégio imobiliário geral, dotado de sequela, nos termos do artigo 751º do Código Civil, sobre todos os bens imóveis existentes no património do devedor à data da instauração da execução – e oponível, independentemente de registo, a todos os adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens por ele «ocultamente» onerados .
Por sua vez – e na sequência de jurisprudência firmada na fiscalização concreta – declarou o Tribunal Constitucional, nos acórdãos nºs
362/02 e 363/02, a inconstitucionalidade de normas que outorgavam à Fazenda Nacional e à Segurança Social um privilégio imobiliário geral, susceptível de preferir à hipoteca (mesmo que anteriormente constituída e registada), nos termos previstos no artigo 751º do Código Civil.
A especificidade do caso dos autos radica em que o privilégio imobiliário geral, outorgado à Segurança Social, é oposto, como causa de prioridade no pagamento, não ao titular de um direito real de gozo, entretanto adquirido, nem ao titular de um direito real de garantia, previamente constituído e registado, mas tão-somente no confronto de simples credores comuns que, instaurando as respectivas execuções, nelas obtiveram penhora de certos imóveis, incluídos no âmbito do referido privilégio (na própria execução ou noutra execução singular, sustada nos termos do artigo 871º do Código de Processo Civil), beneficiando, deste modo, apenas garantia emergente do artigo
822º, nº 1, do Código Civil.
Será esta situação equiparável à garantia de que beneficia o credor hipotecário?
Note-se, desde logo, que a análise das simples disposições de direito civil aplicáveis afastam liminarmente tal equivalência de situações: é que, nos termos do artigo 686º, nº 1, do Código Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certo imóvel, pertencente ao devedor ou a terceiro, “com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”; afasta-se, deste modo, expressamente a oponibilidade à hipoteca de um “privilégio geral”, apenas se logrando obter tal efeito através de uma discutível atribuição aos privilégios imobiliários gerais, avulsamente criados à revelia e fora do quadro normativo do Código Civil, do regime consagrado no artigo 751º deste diploma.
Pelo contrário, é naturalmente bem mais fraca a garantia que, para o credor comum, emerge de se ter antecipado na execução e nela obtido penhora de certos bens do devedor: o artigo 822º do Código Civil apenas lhe confere o
“direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior” – e sendo evidente que o privilégio geral (ainda que não revista obviamente as notas de sequela e prevalência, não se configurando, dada a fluidez e indeterminação do seu objecto como um verdadeiro direito real) não deixa de se configurar como uma garantia real das obrigações (enquadrável nas garantias especiais, incidentes sobre determinados bens, conduzindo à atribuição de uma preferência no pagamento pelo respectivo valor).
Ora, no caso dos autos, é manifesto que – estando em causa débitos da Segurança Social constituídos entre 1994 e 1997 – a inerente garantia real de tais obrigações é anterior à emergente de penhoras realizadas no ano de 2000.
A oponibilidade aos exequentes do privilégio geral, por parte de certo credor privilegiado, não passa, pois, pela invocação do regime contido do artigo 751º do Código Civil, mas tão-somente pela interpretação e aplicação do artigo 822º do Código Civil – que gradua a preferência emergente de simples penhora na base de todas as demais garantias reais das obrigações.
A Lei Fundamental não obsta a que a lei ordinária possa eventualmente postergar o princípio da “par conditio creditorum”, outorgando uma preferência no pagamento, nomeadamente, a determinados entes públicos, relativamente aos demais credores comuns, tendo em atenção a natureza e os fins do crédito privilegiado e a sua conexão com a realização de determinados objectivos constitucionalmente relevantes (no caso, as funções cometidas à Segurança Social pelo artigo 63º da Constituição da República Portuguesa).
O que já estará vedado ao legislador infraconstitucional é a outorga a certos créditos privilegiados, à revelia das regras do registo, de um desproporcionado privilégio, susceptível de abalar direitos reais de gozo ou de garantia, legitimamente adquiridos por terceiros na desculpável ignorância da existência do referido – e oculto – privilégio imobiliário geral, por tal já afrontar o princípio da confiança.
Ora, quanto a este ponto, é totalmente diversa a situação do credor hipotecário e do mero credor comum que – antecipando-se no desencadear da sua própria execução – obtém (e regista) penhora a seu favor, como concretização do seu “poder virtual de execução” bem devendo saber que:
- a eventual insolvabilidade do devedor poderá precludir a garantia emergente da penhora, nos termos do procedimento falimentar;
- a mera garantia decorrente da penhora não poderá precludir quaisquer outras garantias reais anteriores: ou seja, a simples antecipação no desencadear do processo executivo não é, só por si, facto susceptível de inverter a ordem substantiva de graduação das “garantias reais” tipificadas nos artigos 656º a 761º do Código Civil.
As expectativas do credor comum – fundada e legitimamente resultantes de mera obtenção e registo de penhora a seu favor – não podem, deste modo, abranger uma preferência no pagamento que precluda, pura e simplesmente, quaisquer garantias reais outorgadas por lei a outros credores preferentes: é que os privilégios (mobiliários ou imobiliários) gerais surgem com a constituição do direito de crédito a que são inerentes, mas a sua eficácia só opera com o acto de penhora dos bens sobre que virtualmente incidem, já que não atribuem ao respectivo titular um poder específico sobre bens determinados, só assumindo relevo efectivo na altura do concernente acto de penhora e no quadro do procedimento visando efectivar o concurso de credores.
Não se trata, pois, no caso dos autos, de invocar – e obter - a sequela ou prevalência de um privilégio creditório no confronto de direitos reais de gozo adquiridos por terceiro ou de direitos reais de garantia constituídos pelo devedor, mas de opor ao mero credor comum - que desencadeou a sua própria execução e nela obteve penhora - da existência de uma garantia real pré- existente nesse momento e que -–com o acto de penhora e subsequente procedimento concursal – ganhou relevo e actualidade. E, como nos parece inquestionável, tal efectivação da garantia real não afronta quaisquer expectativas válidas e fundadas do exequente, que bem conhecia – ou devia conhecer – os limites inerentes à garantia decorrente (apenas) de penhora feita em seu favor, em execução por si instaurada.
Consequentemente, conclui no seguinte sentido:
1º - Não viola os princípios constitucionais da igualdade e da confiança a oponibilidade, em procedimento de reclamação e verificação de créditos, de um privilégio imobiliário geral dos créditos da segurança social ao próprio exequente, bem como a outro credor comum que reclama o seu crédito ao abrigo do disposto no artigo 871º do Código de Processo Civil, os quais apenas beneficiam da garantia emergente da penhora, nos termos previstos no artigo 822º do Código Civil – e sendo os créditos garantidos pelo privilégio anteriores à data de efectivação da penhora.
2º - Na verdade, a quebra da regra da “par conditio creditorum” é justificada pela finalidade e relevo constitucional dos créditos da segurança social, não sendo, deste modo, violado o princípio da igualdade dos credores.
3º - E a referida prevalência do privilégio geral, no confronto do credor comum que apenas obteve penhora a seu favor, não viola o princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, já que o exequente bem sabe ou deve saber - que a feitura e registo da penhora não preclude a oponibilidade, no seu confronto, de garantias reais anteriores, de que sejam titulares quaisquer credores preferenciais.
II – Fundamentação
4. É do seguinte teor a norma questionada, constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio de 1980:
Artigo 11º
(Privilégio imobiliário)
Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.
Por seu turno, o artigo 748º do Código Civil dispõe:
Artigo 748º
(Ordem dos outros privilégios imobiliários)
1. Os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações;
b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial.
No Acórdão nº 160/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., pág. 619), este Tribunal julgou a norma em questão inconstitucional, quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário nela conferida preferia à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil.
Com efeito, este artigo 751º preceituava, antes da reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março:
Artigo 751º
(Privilégio imobiliário e direitos de terceiro)
Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
Na redacção decorrente do citado Decreto-Lei nº 38/2003, a preferência estabelecida neste artigo 751º do Código Civil só é agora aplicável aos privilégios imobiliários especiais, afastando-se, assim, a interpretação que conduzia à sua aplicação também em relação aos privilégios imobiliários gerais. Foi esta última interpretação que o Tribunal Constitucional censurou, no já referido Acórdão nº 160/00:
5. - É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos
2º do Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 pretendeu dar alguma preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748º do Código Civil.
No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo
(já que a ele não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
Não se questiona que face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas
- como é o caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º -, se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da 'par conditio creditorum' (como se concluiu no do já citado acórdão 688/98), nem, tão pouco, que se atribua um regime procedimental específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cfr. acórdãos 51/99 publicado no Diário da República IIª série, de 05/04/99, e
281/99, inédito).
6. - A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não pode, no entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio imobiliário geral.
Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs.
303/90 e 625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e 18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra,
1993, pág. 333; Isabel Pereira Mendes, “Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial” in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág.
604; Paula Costa e Silva, “Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente”, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58,
1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).
Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80.
A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
Na sequência deste acórdão e doutras decisões no mesmo sentido, veio este Tribunal a declarar, com força obrigatória geral, no Acórdão nº 363/02
(Diário da República, I Série-A, de 16 de Outubro de 2002), a inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, insíto no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República, da norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº
103/80, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido à segurança social prefere á hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil.
5. No caso dos autos, a situação é diversa – o que está em causa é saber se é constitucionalmente admissível que o privilégio imobiliário geral atribuído pela disposição em causa aos créditos da segurança social possa preferir, já não à hipoteca, mas à garantia conferida pela penhora ao credor comum.
Nesta perspectiva, convém recordar que este Tribunal já decidiu que os privilégios creditórios da Segurança Social – sem prejuízo das ressalvas já apontadas – têm fundamento constitucional. Assim aconteceu, a propósito do privilégio mobiliário geral de que ela beneficia, no Acórdão 688/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º vol., pág. 567), onde se escreveu:
4.1. Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº
103/80, tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante (ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio).
A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta negativa.
Na realidade, de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à segurança social (nº 1 do artigo 63º), impondo como uma das tarefas do Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (nº 2 do mesmo artigo).
Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das contribuições impostas para esse fim, designadamente as a cargo ou da responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes.
A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do devedor (desta arte postergando outros direitos reais de garantia - excepção feita ao penhor - que sobre eles fosse constituído), e, de outra, que não está em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora.
Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos, comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de qualquer garantia especial.
Tudo está, pois, em saber se, no caso dos autos, a ponderação a efectuar entre os fundamentos da existência do privilégio, por um lado, e a confiança dos cidadãos, por outro, pende no sentido de se considerar aquele como incompatível com a Constituição. Ou seja, o que importa averiguar é se as razões que levaram este Tribunal a concluir pela inconstitucionalidade da prevalência do privilégio sobre a hipoteca anteriormente registada valem, da mesma forma, relativamente a essa prevalência face à penhora.
Relativamente à garantia emergente da penhora, dispõe o artigo
822º do Código Civil:
Artigo 822º
(Preferência resultante da penhora)
1. Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.
2.Tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto.
A este propósito deste artigo, assinalam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., pág. 95):
Tem-se dito, contra a preferência, que ela se apresenta como um prémio injustificado dado ao credor que foi apenas mais apressado do que os outros em penhorar os bens do seu devedor. Foi esta a razão que levou o legislador a abolir a preferência resultante da penhora, pelo Decreto nº 21
758, de 22 de Outubro de 1932, havendo declaração de insolvência civil (art.
21º), e, posteriormente, pelo Código de Falência, havendo declaração de falência
(art. 89º, § 2º).
Esta consideração tem natural importância, quando se trate da liquidação do património do devedor, caso em que são chamados ao processo todos os credores. Porém, na simples execução, tal como ela é hoje concebida pelo Código de Processo, com intervenção apenas dos credores com garantias reais sobre os bens penhorados, parece que não se justifica o afastamento da preferência. O processo de execução deixou de ter, desde 1961, o carácter colectivo universal que revestia em 1939, e o aproximava da falência ou da insolência civil. Além disso, a penhora obtida por um dos credores pode ser um benefício para todos os outros, evitando a dissipação dos bens, e é justo que tire desse benefício algum proveito o exequente.
Foram estas as razões que levaram o nosso legislador a manter, como princípio geral, a preferência resultante da penhora, embora se continuasse a admitir, como excepções, as da declaração de falência ou de insolvência (arts. 1235º, nº 3, e 1315º do Cód. Proc. Civil, hoje em dia substituídos pelo art. 200º, nº 3, do Cód.. dos Proc. Esp. De Recuperação da Empresa e de Falência, onde se estabelece que, na graduação dos créditos, não é atendida a preferência resultante da penhora).
Na perspectiva que nos interessa abordar, há que reconhecer que várias das razões inventariadas na jurisprudência anterior deste Tribunal para concluir pela inconstitucionalidade da norma que atribui prevalência ao privilégio imobiliário em causa relativamente à hipoteca se aplicam igualmente aqui:
- trata-se de um ónus oculto
- frustra-se a fiabilidade que o registo merece
- inexiste qualquer conexão entre o imóvel onerado e a dívida à Segurança Social
- a Segurança Social podia ter oportunamente procedido ao registo da hipoteca legal, nos termos do disposto no artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80
Todavia, como bem refere o Ministério Público não se pode deixar de reconhecer que, face à hipoteca, é bem mais fraca a garantia do credor comum resultante da penhora: a dívida exequenda não goza ab origine de qualquer privilégio, não está de qualquer modo relacionada com o bem penhorado e surge num momento imprevisível dependente da simples tramitação processual.
Miguel Teixeira de Sousa (Acção Executiva Singular, pág. 251) defende mesmo que a penhora não é um direito real de garantia:
A penhora não é um direito real de garantia, mas é fonte de uma preferência sobre o produto da venda dos bens penhorados, dado que o exequente adquire por ela o direito a ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (art.º 822º, nº 1, CC). Esta regra prevê a hipótese de existirem, além do exequente, outros credores com garantias reais sobre os bens penhorados ou com uma segunda penhora sobre esses mesmos bens e destina-se a hierarquizar o crédito do exequente na sua relação com os créditos que beneficiam dessas garantias ou daquela penhora.
Para outros autores, deve considerar-se «a penhora como uma garantia real das obrigações, embora não plena» (Almeida Costa, Noções de Direito Civil, 2ª ed. pág. 260). É que «a preferência a que aludimos não será atendida nos casos de liquidação de herança declarada vaga para o Estado e de falência ou insolvência do executado» (id., ibidem).
De todo o modo, a verdade é que o credor comum que obteve a penhora do imóvel não tem uma expectativa jurídica tão forte como a do credor hipotecário, já que o seu privilégio desaparece no quadro dos procedimentos falimentares. Por isso, se pode dizer, com Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo processo civil, Lisboa 1997, pág. 647):
Quanto à harmonização entre os interesses do exequente e dos demais credores do executado, o direito português optou por um sistema de intervenção restrita destes credores na execução pendente. Caracteriza-se este pela possibilidade de os credores com garantia real sobre os bens penhorados (e só eles) reclamarem os seus créditos (artºs 864º, nº 1, al. b), e 865º, nº 1) e de serem pagos com preferência ao exequente (artº 604º, nº 2, CC; artºs 865º, nº 1, e 873º, nº 2), que só tenha a seu favor a preferência resultante da penhora
(artº 822º CC). Portanto, não se admite que todo e qualquer credor possa reclamar o seu crédito, mas só aqueles cujos créditos estejam garantidos por uma garantia real sobre os bens penhorados na execução (artºs 864º, nº 1,al. b), e
865º, nº 1).
Esta intervenção destina-se a permitir que esses credores oponham ao exequente, na própria execução instaurada por este, as preferências ligadas às garantias reais que possuem sobre os bens penhorados (artº 604, nº 2, CC) e que lhes permitem ser pagos, com preferência a qualquer outro credor, através do produto da venda desses bens (artºs 865º, nº 1 e 873º, nº 2) ou da adjudicação destes (artº 875º, nº 2). [...]
[...]
Tudo isto demonstra que o direito executivo português se orienta pelo princípio da prioridade, embora esta última beneficie não só o exequente, como qualquer credor com garantia real sobre os bens penhorados. Por isso, a regra da par condicio creditorum tem mais relevância como critério de distribuição das perdas na acção falimentar (cfr. art.º 209º CPEREF) do que como critério de satisfação dos vários credores na acção executiva singular.
Do exposto resulta que a situação do credor comum que obteve a preferência resultante do registo da penhora tem uma garantia fortemente limitada, pois todo e qualquer credor pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir pagamentos, mostrando que foi requerido processo especial de recuperação da empresa ou da falência do executado. E, nos termos do artigo
200º, nº 3 do CPEREF, na graduação de créditos não é atendida a preferência proveniente da penhora.
Por outro lado, também algumas das razões que justificaram, na jurisprudência citada, a conclusão pela inconstitucionalidade do segmento normativo então apreciado não ocorrem no caso a que se reportam os autos. Na verdade, verifica-se que:
- só excepcionalmente a penhora ocorrerá antes da existência do crédito da Segurança Social
- pela própria natureza da penhora, que não resulta de um específico negócio jurídico, não se verifica lesão desproporcionada do comércio jurídico
Não estamos, assim, perante um desproporcionado privilégio da segurança social, afectando um direito real de garantia plena que incide ab origine sobre determinado imóvel e em que a dívida exequenda resulta de um negócio jurídico celebrado no pressuposto da constituição desse mesmo direito real de garantia. Pelo contrário: a garantia dos credores comuns é todo o património do devedor, mas não qualquer bem específico, sendo sobretudo função da penhora a individualização desses bens que hão-de responder pela dívida.
Nesta conformidade, não parece assim ser arbitrária, irrazoável ou infundada a consagração do referido privilégio a favor da Segurança Social. Não estamos, com efeito, perante uma afectação inadmissível, arbitrária ou excessivamente onerosa da confiança, já que a preferência resultante da penhora
é de, algum modo, temporariamente aleatória.
III - Decisão
6. Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 8 de Maio, interpretada em termos de o privilégio mobiliário geral nela conferido às instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da penhora sobre determinado imóvel; b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Abril de 2003 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira José Manuel Cardoso da Costa