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Proc. n.º 612/02
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A., interpôs recurso contencioso com vista à declaração da nulidade – ou, subsidiariamente, à anulação jurisdicional – do acto administrativo praticado pelo MINISTRO DAS FINANÇAS, por despacho exarado em 3 de Junho de 1998, que negou à recorrente autorização para aquisição de acções da B. que, adicionadas às por si já detidas, ultrapassassem 10% do capital respectivo.
Entendeu a recorrente, antes do mais, que o procedimento administrativo impugnado – que negou aquela autorização pretendida -, era inaplicável, caindo o caso da recorrente fora do domínio próprio de aplicação do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro. E que, se o fosse, tal diploma seria inconstitucional, por violação da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República consagrada no artigo 296º da Constituição da República Portuguesa.
A invocada inconstitucionalidade, no entender da recorrente, causaria a nulidade do acto administrativo que negou a pretendida autorização, ou, subsidiariamente, para o caso de assim se não entender, a sua anulabilidade.
Considerou a recorrente que, ainda que não elencada no catálogo de matérias sujeitas a reserva absoluta de competência exclusiva da Assembleia da República – actual artigo 164º, a que correspondia o artigo 167º, na versão anterior à revisão de 1997 -, a inserção da matéria das reprivatizações dos bens nacionalizados no período revolucionário na reserva absoluta de competência do Parlamento «não oferece quaisquer dúvidas», sendo, aliás, uma «evidência resultante da própria formulação constitucional: se se fala em aprovação “por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções”, trata-se obviamente de matéria que só pode ser legiferada pela Assembleia da República».
Apoiando-se na doutrina constitucionalista, considerou que aquela exigência de maioria qualificada, bem como as restantes «exigências procedimentais e formais» contribuem para a qualificação da lei relativa a esta matéria como uma lei de valor reforçado, uma lei de «enquadramento» distinta das leis de bases, nomeadamente em virtude do «grau de densificação material da lei-quadro, o qual é bem mais exigente que o de uma vulgar lei de bases».
Após citar GOMES CANOTILHO, a recorrente afirmou:
[...] a definição dos princípios, das regras e dos procedimentos que hão-de regular em geral as privatizações pertencem constitucionalmente ao âmbito legislativo material da Assembleia da República, a qual não pode transferir essa competência para o Governo, por essa competência lhe haver sido absolutamente reservada.
De resto, o figurino constitucional da lei-quadro é o de que a regulamentação geral e abstracta das operações de privatização há-de ser completamente efectuada na lei-quadro da Assembleia da República, deixando-se ao Governo a competência para emanar actos legislativos que, em concreto, instituam as reprivatizações de cada empresa.
[...]
[...] a actual LQP, ela própria, só prevê a possibilidade de o Governo legislar sobre reprivatizações a respeito do processo individual de cada empresa.
E, portanto, de em nenhum caso, ser chamado a disciplinar genericamente a matéria das reprivatizações, seja no que concerne às suas modalidades, seja no que respeita ao estabelecimento ou levantamento de limitações à aquisição ou transmissão de acções representativas do capital social reprivatizando.
Aliás, no rigor das coisas, é até essa a concepção directamente eliciável do actual art. 296º da CRP 76 (que, na prática, aglutinou os anteriores arts. 85º e 296º, vigentes à data da emanação do Dec-Lei nº 389/93), pois aí não se fala expressamente em qualquer competência legislativa, ainda que de simples concretização, do Governo.
[...]
Ainda que se entenda, com a maioria da doutrina, que a lei-quadro tem de ser concretizada por acto legislativo, este «silêncio constitucional» mostra bem que, mesmo na perspectiva da lei fundamental, a intervenção do Governo há-se ser sempre efectuada a propósito da privatização de cada uma das empresas a reprivatizar e que ao Governo não é outorgada qualquer competência para a regulação legislativa do processo das privatizações em geral.
[...]
Neste momento, sabendo-se como se sabe, que o Dec.-Lei n.º 380/93 procura estabelecer um procedimento autorizativo, de alcance geral, incidente indistintamente sobre todos os processos de reprivatização, não permitido pela LQP, é por demais evidente que o Governo se arrogou o direito de usurpar competências legislativas em absoluto reservadas à Assembleia da República.
Na verdade, quando estabelece a necessidade de autorização prévia para a aquisição, por uma única entidade, de acções representativas de 10% do capital com direito a voto das sociedades em curso de reprivatização, o legislador Governo está a pôr uma regra que é da exclusiva competência da Assembleia da República.
E, após notar que o artigo 13º da Lei Quadro das Privatizações
(constante da Lei n.º 11/90, de 5 de Abril) disciplina restrições e condicionamentos à aquisição de certas percentagens de capital ou de acções das sociedades a reprivatizar, prevendo ainda essa disposição a «possibilidade de os decretos-leis que, em concreto, instituem a reprivatização fixarem um “valor máximo” da participação social susceptível de ser detida pelo conjunto das entidades estrangeiras e organizarem “modos de controlo” do respeito por esse valor máximo», assinalou todavia a seguinte diferença:
[...] é que enquanto o art. 13º, n.º 3, da LQP confere a essa restrição dignidade legislativa (impondo, portanto, a sua consagração no decreto-lei que aprove a reprivatização), o Decreto-Lei n.º 380/93 organiza um processo simplesmente administrativo, tramitado completamente à margem e por cima dos decretos-leis que, em cada caso, levam a efeito as concretas privatizações.
[..] se o condicionamento criado é um «lugar paralelo» daquelas restrições directa e expressamente previstas pela LQP, então isso quer dizer que a disposição do Dec.-Lei n.º 380/93 pertence substantivamente ao âmbito material da LQP e, por conseguinte, integra o domínio legislativo da Assembleia da República.
A recorrente concluiu assim pela inconstitucionalidade orgânica e formal, não estando em causa «uma pura relação de ilegalidade [...] por se operar a violação de uma lei com valor reforçado», mas antes que «o que verdadeiramente está em jogo é uma violação directa e imediata da Constituição, por o Governo, através de decreto-lei, haver regulado matéria que indubitavelmente pertence à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República».
No mais, a recorrente defendeu a invalidade do acto administrativo impugnado, «por se basear numa norma derrogada» e «por se arrimar numa norma manifestamente inconstitucional», e suscitou ainda a invalidade do mesmo acto por outros fundamentos: assim, invocou a sua anulabilidade por insuficiência de fundamentação, por usurpação de poderes e por violação de lei, esta com base em
«violação do princípio da igualdade».
2. A autoridade recorrida apresentou a sua resposta, na qual, relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada, começou por distinguir «dois tipos de privatizações», à face do texto constitucional: «uma reprivatização qualificada ou “reforçada”, com um processo legislativo específico, respeitante aos meios de produção e outros bens nacionalizados após o 25 de Abril de 1974 (directamente nacionalizados e só indirectamente desde que integrados nos sectores básicos da economia) e uma privatização comum, aplicável a todas as outras privatizações, incluindo as reprivatizações indirectas».
Passou depois a analisar o conceito de lei-quadro, considerando que a doutrina nacional se encontra dividida acerca da natureza jurídica dessa figura, só introduzida pela revisão constitucional de 1989. Confrontando a figura da lei-quadro com as leis de bases, nomeadamente, a autoridade recorrida afirmou:
Tal como muitas outras leis reforçadas, as leis-quadro são leis pressupostas pela Constituição como parâmetro de outras leis, como pressuposto de execução de um programa normativo-constitucional. É aquilo a que Gomes Canotilho chama de parametricidade pressuposta, parametricidade essa material, na medida em que as leis paramétricas regulam materialmente a produção de outras leis, constituindo o seu pressuposto ou parâmetro, a fim de ser concretizado um determinado programa normativo-constitucional.
Ou, como afirma Carlos Blanco de Morais, “As leis-quadro ou de enquadramento são, no hemisfério do entendimento geral da linha doutrinária e jurisprudencial dominante, leis-pressuposto de outras leis, que não só vincula as linhas essenciais do conteúdo das últimas, como podem estipular igualmente alguns aspectos (adjectivos) da sua produção”.
E concluiu:
Por essa razão, se diz que a lei-quadro funciona como uma lei de princípios. Resta averiguar se o respeito desses princípios é feito segundo juízos de mera compatibilidade ou se, pelo contrário, o que se exige é uma verdadeira conformidade da actuação legislativa do Governo com a referida lei-quadro. [...]
Embora a resposta possa depender da extensão da parametricidade procedimental de cada lei-quadro, a natureza da lei-quadro induz claramente no sentido da mera compatibilidade [...] reforçada pela natureza concorrencial da competência do Governo e pela vinculação directa deste órgão aos princípios constitucionais constantes do art. 296º.
[...]
Sem prejuízo de a aprovação da lei-quadro das privatizações ser da competência exclusiva da Assembleia da República, e por uma maioria qualificada, o desenvolvimento e a regulamentação dos processos de reprivatização integram o elenco das matérias abrangidas pela competência concorrencial do Governo e da Assembleia da República.
[...]
E no que respeita à matéria das reprivatizações, embora tenha reservado à Assembleia da República o seu enquadramento e a definição dos respectivos parâmetros normativos, a Constituição postula uma verdadeira divisão de trabalho entre a Assembleia da República e o Governo (cfr. Jorge Miranda, “As Privatizações...”, ob. cit., p.58). A Assembleia da República aprova os princípios, estabelece os parâmetros e define o quadro; o Governo desenvolve, concretiza e especifica os princípios, dentro dos parâmetros e no âmbito do quadro de objectivos definidos.
[...]
Afastada a tese de que as privatizações são matérias de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, é, também, de afastar a tese de que estas matérias são da reserva relativa da Assembleia da República referida na alínea l) do n.º 1 do art. 165º, para o que seria necessário uma lei de autorização da Assembleia da República. Como bem afirma Carlos Blanco de Morais, esta disposição “trata-se de uma competência que se refere a «privatização» e não às «reprivatizações» atinentes ao n.º 1 do art.
296º, as quais assentam em pressupostos materiais, e em um regime específico. Tem-se deste modo que a competência referente à alínea l) do n.º 1 do art. 165º concerne às privatizações simples” (ob. cit., p. 750, nota 2569).
Por último, está igualmente afastada a tese de que a competência legislativa do Governo vem da lei-quadro: a competência vem da norma constitucional, assim o impõe o princípio da prescrição (constitucional) normativa da competência. Deste modo, “impõe-se assinalar que os «termos» de um quadro de privatizações se referem essencialmente às regras processuais de uma dada operação, e não à prévia questão da definição de quadros de competência legislativa de onde parte ulteriormente a definição desses processos, quadros que radicam apenas no que a seu respeito tiver sido disposto pela Constituição”
(Carlos Blanco de Morais, ob. cit., p. 751).
Mais uma vez, é forçoso concluir que, quando o Governo legisla em matéria de reprivatizações, o faz não só no exercício da sua competência legislativa complementar ou de desenvolvimento, referida na alínea c) do actual art. 198º da CRP, mas igualmente no exercício da sua competência legislativa concorrencial, nos termos da alínea a) do art. 198º da CRP.
A autoridade recorrida concluiu assim pela constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, reconhecendo ao Governo «uma significativa margem de manobra e liberdade de conformação na definição dos regimes jurídicos que conjuntamente com os princípios e parâmetros estabelecidos nas leis-quadro ou nas leis de enquadramento, formam o complexo normativo aplicável a determinadas matérias às quais foi reconhecido relevo constitucional». No entender da autoridade recorrida, o Governo «tem poderes para desenvolver a lei-quadro, concretizá-la e complementá-la, sempre que a parametricidade normativa da mesma se revele insuficiente para assegurar a concretização do projecto ou programa normativo-constitucional em causa», sendo estes poderes limitados pelos parâmetros estabelecidos na lei-quadro.
Por fim, o Ministro das Finanças alegou que a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 380/93 era uma «falsa questão», sem qualquer relevância, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, porquanto «os âmbitos de aplicação material dos dois diplomas – a Lei n.º 11/90 e o Decreto-Lei n.º 380/93 – não coincidem: a lei-quadro das privatizações aplica-se aos bens e às acções a reprivatizar, o que pressupõe ainda a sua titularidade pública; enquanto que o Decreto-Lei n.º 380/93 só se aplica às acções já reprivatizadas, e dentro destas, apenas abrange certos actos de aquisição de participações qualificadas, actos esses sempre subsequentes às operações de reprivatização»; em segundo lugar, devido à «natureza regulativa» do Decreto-Lei n.º 380/93, o qual, nos termos do Ministro das Finanças, «não é parâmetro de outros decreto-leis; não é pressuposto material de outros actos normativos; [...] não veio disciplinar genericamente a matéria das reprivatizações», ou seja, possui uma «mera eficácia intersubjectiva», o que definitivamente afastaria qualquer inconstitucionalidade orgânica ou formal do diploma.
3. Nas suas alegações, a recorrente reiterou a argumentação apresentada na petição, e afirmou, no tocante à questão de inconstitucionalidade, que a «matéria de reprivatizações, por força do art. 296º da CRP 76, pertence inequivocamente à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República», e que a autoridade recorrida confunde
«o tipo de competência legislativa [...] com a extensão ou densidade da reserva». E prosseguiu:
[...] o facto de uma matéria ser absolutamente reservada à Assembleia da República não implica que ela o seja na globalidade da sua extensão.
[...]
No caso em apreço, [...] a reserva absoluta se cinge à definição do
«quadro» da matéria em causa. A complementação ou a execução desse quadro é matéria concorrencial. Um ponto, porém, é incontroverso na doutrina: a matéria das reprivatizações, apesar de não constar do elenco do art. 164º da CRP 76, pertence à reserva parlamentar absoluta de competência legislativa.
Passou, então, a analisar a natureza jurídica das leis-quadro e a competência legislativa do Governo na matéria de reprivatizações, pela forma seguinte:
[...] a matéria das reprivatizações é quanto ao seu quadro geral objecto de uma reserva absoluta de competência parlamentar. Só a sua execução em concreto – a adopção de actos legislativos que disciplinem a reprivatização de cada empresa – é que pode caber a ambos os órgãos legislativos. E isto pese embora a circunstância de a LQP, aparentemente, ter devolvido ao Governo a competência exclusiva para determinar actos concretamente reprivatizadores.
[...]
[...] a competência legislativa do Governo cinge-se à emanação de decretos-leis que operem a reprivatização de cada empresa nacionalizada, não lhe estando cometido o encargo de legislar, em termos gerais e abstractos, sobre as reprivatizações. Ao estabelecer a disciplina de cada processo reprivatizador ou de uma fase de um certo processo, o Governo não pode regular genericamente a matéria das reprivatizações. A densidade própria das leis-quadro e o valor paramétrico que lhes é inerente excluem à partida uma tal competência. E isso mesmo é corroborado pela circunstância da tipologia de limitações própria do Dec.-Lei n.º 380/93 estar, como se viu, imediatamente regulada na LQP.
[...]
Mas, no caso do decreto em apreço, [...] onde o Governo está mandatado para legislar caso a caso, pretende-se que agora legisle em termos gerais e abstractos, para todos os processos de reprivatização, substituindo-se ao legislador parlamentar e estabelecendo, nas vezes dele, uma restrição que ele não quis consagrar.
A recorrente juntou às suas alegações parecer do Professor Doutor António Menezes Cordeiro, relativo à aplicabilidade do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, no caso da B., e à possibilidade de o Ministro das Finanças proibir a detenção de quaisquer percentagens de acções superiores a 10% e às consequências dessa proibição a nível mobiliário.
O parecer apreciou também a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, começando logo por considerar que este diploma traduziu «uma modificação estrutural no regime das reprivatizações», porquanto veio «submeter a autorização política as aquisições minimamente significativas de bens reprivatizados». Desta forma, o diploma em causa, na opinião daquele jurisconsulto, seria, «materialmente, um diploma de reprivatização», logo, incluído na «reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, directamente resultante do artigo 296º/1, da Constituição».
4. Por sua vez, o Ministro das Finanças, nas suas alegações, refutou as considerações da recorrente, nomeadamente no tocante à questão da inconstitucionalidade orgânica, mantendo e reiterando as posições assumidas na sua resposta, reforçando ainda os seguintes aspectos:
Esta maior densificação normativa das leis-quadro não impede, no entanto, para a Autoridade Recorrida, que o órgão concretizador das mesmas, na insuficiência ou perante a incompletude da parametricidade jurídica da lei-quadro, estabeleça ele próprio, no exercício das competências legislativas que lhe foram conferidas directamente pela Constituição, certos parâmetros auto-vinculativos de actos seus posteriores, ou seja, efectue opções legislativas de carácter genérico e abstracto, desde que naturalmente no respeito integral dos princípios e parâmetros definidos na lei-quadro que ele pretende desenvolver ou concretizar [...].
Isto porque uma menor margem de conformação legislativa não equivale, nem pode equivaler, a uma ausência de margem de conformação legislativa.
[...]
Tal como muitas outras leis reforçadas, as leis-quadro são leis pressupostas pela Constituição como parâmetro de outras leis, como pressuposto de execução de um programa normativo-constitucional, pelo que a sua violação, pelos decretos-lei de desenvolvimento, complemento ou de execução, gera um problema de ilegalidade – ilegalidade sui generis, diz a doutrina – e só indirectamente de inconstitucionalidade. A contradição opera-se entre duas normas ordinárias e não entre a norma constitucional e uma norma ordinária.
A autoridade recorrida concluiu pela constitucionalidade do diploma em causa, reiterando as alegações já formuladas naquela resposta inicial.
O Ministério Público, no seu visto, pronunciou-se no sentido manifestado pela autoridade recorrida, subscrevendo o teor das respectivas alegações.
5. Por acórdão de 3 de Junho de 2000, o STA negou provimento ao recurso.
No tocante à questão de inconstitucionalidade suscitada, o STA entendeu que a mesma se não verificava, desde logo, porquanto «o Governo podia validamente legislar em matérias conexas com as reprivatizações, fazendo-o fora dos decretos-leis que a LQP previa para as operações particulares e de modo a contemplar tais assuntos em termos que transversalmente tocassem todas as operações do género».
Pode-se ler neste aresto:
Portanto, e para além do núcleo essencial que, no tocante às reprivatizações a fazer, a Constituição obrigava a incluir na lei quadro emanada da Assembleia, esta podia fazer constar dessa lei, em modo determinado ou indeterminado, outros aspectos laterais ou acessórios da questão fulcral a regular, antecedentes, concomitantes ou subsequentes dela. Se o fizesse, esses assuntos beneficiariam também da potência normativa qualificada inerente ao tipo de lei de que constavam; mas, se o não fizesse, nada impedia que o Governo, no uso da sua competência legislativa, regesse tais aspectos através de decreto-lei independente (cfr. o actual art. 198º, n.º 1, da Constituição, que tem correspondência em todas as versões anteriores dela).
E, apesar de no Decreto-Lei n.º 380/93 se ter afirmado expressamente que o mesmo foi editado «no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido na Lei n.º 11/90, de 5 de Abril», o acórdão não deixou de constatar que «a matéria abordada no art. 1º do DL n.º 380/93 não fora contemplada na LQP; e vimos mesmo que os diplomas que concretizem leis desse tipo não devem ser tidos, ao menos por via de regra, como de mero desenvolvimento, pois o legislador desses diplomas usa de plena liberdade dentro dos limites, principiais e procedimentais, estabelecidos por aquelas leis». Pelo que o aresto em causa entendeu que o termo «desenvolvimento» foi utilizado no Decreto-Lei n.º 380/93
«num sentido comum, e juridicamente menos próprio».
E, por fim, concluiu:
Por outro lado, e dado que o entrave administrativo que o DL n.º
380/93 introduziu tomou como objecto imediato negócios relativos a acções já privatizadas, temos que esse diploma se dirigiu a uma realidade distinta daquela que a imposição constitucional de uma lei quadro emanada da Assembleia pressupôs, pois essa exigência inserta na Lei Fundamental só faz verdadeiro sentido se relacionada com os actos de autêntica transferência, para a titularidade dos particulares, de bens que permanecessem no estado de nacionalizados.
Deste modo, soçobra a pretensão de que o DL n.º 380/93 ofendera uma
«reserva absoluta de competência legislativa parlamentar em matéria de reprivatizações». Consequentemente, não houve qualquer «usurpação», por parte do Governo, daquela competência legislativa, nem qualquer ofensa do princípio constitucional da separação de poderes – que, aliás, e atenta a ampla competência legislativa do Governo, nunca ocorreria ainda que o DL n.º 380/93 fosse organicamente inconstitucional.
6. Inconformada com esta decisão, a recorrente interpôs recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA.
Admitido o recurso, apresentou alegações, nas quais, reiterando as argumentações já anteriormente expendidas, continuou a sustentar a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 380/93.
Para além da reiteração das considerações já nos anteriores articulados efectuadas, a recorrente, referindo-se à posição vertida no acórdão recorrido, relativa à incidência do Decreto-Lei n.º 380/93 apenas sobre acções já reprivatizadas, afirmou ainda:
Antes de tudo o mais, importa lembrar que é o próprio Governo, enquanto legislador, que assume a pertinência substantiva das disposições do Dec.-Lei n.º 380/93 à matéria das reprivatizações, precisamente quando emana formalmente esse diploma como desenvolução da LQP.
[...]
Pois bem: se o próprio tribunal reconhece que os processos de reprivatização é que constituem a ratio essendi do Dec.-Lei n.º 380/93 (fls. 23 do Acórdão), como pode dizer-se, sem flagrante contradição lógica, que o Dec.-Lei n.º 380/93 é exógeno e exterior ao processo das privatizações e ao círculo normativo da LQP? [...]
E passou então a desenvolver os dois argumentos que considerou demonstrativos de que o diploma em causa versa sobre a matéria das reprivatizações:
Primeiro, o estabelecimento pelo decreto-lei em questão de um procedimento administrativo de autorização constitui um obstáculo ou barreira administrativa à liberdade de transmissão dos valores mobiliários. Nesse quadro, a restrição que é operada pelo Dec.-Lei n.º 380/93 é em tudo análoga àquelas que a LQP estabelece ou autoriza no seu art. 13º. Na verdade, o n.º 3 dessa disposição prevê expressamente a possibilidade de os decretos-leis que instituem em concreto a privatização definirem um «valor máximo» da participação social susceptível de ser detida pelo conjunto das entidades estrangeiras e, do mesmo passo, organizarem «modos de controlo» do respeito por esse valor máximo. Ora,
[...] se o condicionamento criado pelo Dec.-Lei n.º 380/93 é em tudo análogo aos condicionamentos e restrições directamente directamente efectuados pela LQP, então não podem restar dúvidas de que o decreto-lei em jogo versa substantivamente sobre a matéria das reprivatizações, podendo (senão mesmo devendo) constituir objecto da LQP.
Segundo, nos termos da Constituição, o objecto de reprivatização vem a ser a «titularidade dos meios de produção ou de outros bens nacionalizados». O que significa que é a «empresa» como um todo que consubstancia o objecto da reprivatização e não já um simples conjunto ou lote de acções (como, aliás, resulta cristalinamente da formulação normativa das als. c) e d) do n.º 1 do art. 296º da CRP 76). Ora, na realidade, atenta esta concepção constitucional de reprivatização –que, insista-se, concerne à empresa como um todo e não apenas a uma parte do seu capital -, terá de se concluir que qualquer diploma legislativo que seja atinente à transmissão de acções já privatizadas, por estas se referirem ao capital social de uma empresa em curso de reprivatização, não poderá deixar de se integrar na respectiva matéria e ficar, portanto, sob a alçada da LQP. [...]
[...] dir-se-á mesmo que, seja qual for a área material em que se insira um certo diploma legislativo, seja qual for o órgão que o emane e a competência que ele invoca, se ele contiver disposições – ainda que esparsas – atinentes ao problema das reprivatizações, terá sempre de respeitar e de se conformar aos parâmetros definidos na LQP. É que, como diz expressis verbis a sentença recorrida, esta é uma lei de valor reforçado, com força hierárquica superior, que não pode ser desbancada nem violada pela generalidade dos instrumentos legislativos correntes ou normais.
A recorrente concluiu assim, e ainda, pela invalidade (nulidade) do acto administrativo em causa, por «se tratar de um acto que aplica uma norma manifestamente inconstitucional».
7. A autoridade recorrida veio, por sua vez, nas suas alegações de recurso, manter as posições anteriormente assumidas e pugnar pela procedência da decisão recorrida. Afirmou aí:
O Decreto-Lei n.º 380/93, porque incide apenas sobre acções já reprivatizadas de empresas reprivatizandas, não interfere por nenhum modo nas operações de reprivatização propriamente ditas.
[...]
A opção governamental pelo faseamento dos processos de reprivatização, com a consequente criação de empresas parcialmente privatizadas, trouxe para o Governo, compreensivelmente, novas e acrescidas preocupações relativas à evolução da estrutura accionista das empresas em pleno processo de reprivatização.
[...] pois naturalmente não é indiferente ao ente reprivatizador a evolução da estrutura accionista de uma sociedade em reprivatização, concretamente, e a mero título exemplificativo, a existência, ou não, de entidades detentoras de participações relevantes, a identidade dessas entidades, os seus interesses – e a articulação destes com os da empresa, dos demais accionistas e com os objectivos de reprivatização -, ou o maior ou menor grau de dispersão das acções emitidas pela sociedade. Sobretudo se se pensar em processos de reprivatização que devam desenvolver-se considerando um contexto de grupo empresarial, no estabelecimento, ou não, de alianças estratégicas e em eventuais objectivos de internacionalização de empresas em reprivatização e da economia nacional em geral.
Por essa razão, decidiu o Governo aprovar um diploma legal que lhe permitisse acompanhar a evolução das estruturas accionistas das empresas em pleno processo de reprivatização, relativamente às acções já reprivatizadas, tendo em vista a prossecução tanto dos objectivos definidos em geral na lei-quadro para as reprivatizações, quer em especial dos objectivos em concreto definidos pelo Governo para o processo de reprivatização em causa.
[...] como se disse, e repete, o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 380/93 é um regime exógeno e exterior a cada operação de reprivatização, que lhe pode suceder ou pressupor, e o facto de estar enxertado num dado processo de reprivatização não significa que tem a mesma natureza dos regimes e actos de reprivatização propriamente ditos.
E é um regime exógeno e exterior a cada operação de reprivatização, pois estas operações pressupõem a titularidade pública das acções a reprivatizar em cada operação e o regime do Decreto-Lei n.º 380/93 pressupõe a sua titularidade privada, o mesmo quer dizer, pressupõe acções já reprivatizadas e não acções reprivatizandas.
O regime autorizativo instituído pelo Decreto-Lei n.º 380/93 refere-se, assim, apenas aos actos de aquisição subsequentes às operações de privatização, [...] não abrangendo as operações de reprivatização [...], nem os limites de aquisição de acções a reprivatizar fixados para cada e em cada operação de reprivatização.
[...] nem sequer abrange todas elas. Com efeito, dentro das acções reprivatizadas, só estão abrangidas pela autorização prévia do Ministro das Finanças as acções que estiverem envolvidas em actos de aquisição de participações qualificadas.
Deste modo, a autorização prévia instituída pelo DL n.º 380/93 abrange apenas os actos, individuais e concretos, de aquisições de participações qualificadas de acções já reprivatizadas, representativas do capital social de sociedades em pleno processo de reprivatização [...]
E, relativamente à natureza da lei-quadro como lei de valor reforçado, afirmou a autoridade recorrida:
[...] constitui opinião pacífica entre a doutrina constitucionalista portuguesa que a lei-quadro das Privatizações é, precisamente, e ao invés, uma lei de valor reforçado de vinculação específica, ou de carácter especial, na medida em que a sua observância apenas se impõe a determinadas leis que com ela tenham uma relação especial, precisamente a relação que decorre do seu âmbito material de aplicação – a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974 (v., por exemplo, Jorge Miranda, «Manual de Direito Constitucional», II, 1991, p. 327).
[...]
Por essa razão, o objecto de um processo de reprivatização não é a
«empresa como um todo», mas sim as acções representativas do seu capital social.
[...]
[...]
Não existe, assim, nenhuma analogia entre este específico condicionalismo [instituído pelo Decreto-Lei n.º 380/93] e os condicionalismos e restrições previstos na lei-quadro, isto porque estes últimos têm por objecto acções a reprivatizar e não acções reprivatizadas, aparecendo sempre como condições de aquisição de acções a reprivatizar, mesmo que incluam restrições à alienação das acções, uma vez reprivatizadas.
[...]
Enquanto a lei-quadro regula em termos genéricos alguns aspectos substantivos e procedimentais dos processos e operações de reprivatização, o Decreto-Lei n.º 380/93 só tem aplicação uma vez concluído parcialmente um processo de reprivatização, não contendo nenhuma disposição que afecte ou interfira nas operações de reprivatização propriamente ditas. Relembre-se, aliás, que é o próprio Decreto-Lei que tem a preocupação de ressalvar a aplicação integral do regime jurídico em concreto definido para cada processo de reprivatização (n.º 2 do seu art. 1º).
[...]
Numa palavra: o Decreto-Lei n.º 380/93 tem mera eficácia intersubjectiva, tendo como seus destinatários principais os potenciais adquirentes de participações qualificadas (de acções reprivatizadas) de sociedades parcialmente reprivatizadas e por objecto actos individuais e concretos. A inexistência, no Decreto-Lei n.º 380/93, de qualquer dimensão normativa paramétrica material, impede ou afasta, e de forma definitiva, a discussão sobre a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) do diploma aprovado pelo Governo, no exercício das suas competências concorrenciais e complementares, ou seja, ao abrigo das alíneas a) e c) do antigo art. 201º da CRP (actual art. 198º).
O Ministro das Finanças afirmou ainda, relativamente à competência legislativa do Governo na matéria de reprivatizações:
Importa, no entanto, referir que, se o Governo tinha e tem, competência concorrencial e complementar para legislar em matérias de reprivatização, mesmo em termos paramétricos, por maioria de razão terá essas mesmas competências em matérias que embora relacionadas com as reprivatizações, e por elas justificadas, não se confundem com as mesmas, e sem que as mesmas assumam qualquer dimensão normativa paramétrica material.
[...]
Na realidade, sem prejuízo de a aprovação da lei-quadro das privatizações ser da competência exclusiva da Assembleia da República, e por uma maioria qualificada, o desenvolvimento da lei-quadro e a regulamentação dos processos de reprivatização integram o elenco das matérias abrangidas pela competência concorrencial do Governo e da Assembleia da República.
[...] não é a matéria das reprivatizações que integra a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, é a aprovação dos parâmteros e princípios gerais na forma de lei-quadro que a integra. [...]
[...]
Ora, é precisamente porque a reserva de competência pode atingir diversos níveis de «profundidade», que a Autoridade Recorrida defende que a Constituição só reserva absolutamente ao Parlamento o tratamento dos princípios e parâmetros gerais – ou se se quiser das «bases» - em matéria das reprivatizações, pertencendo o seu «desenvolvimento» a uma área concorrencial.
Assim, a autoridade recorrida concluiu que a competência legislativa do Governo nesta matéria vem da norma constitucional, e não da lei-quadro, e que
«a Constituição, em matéria de reprivatizações, postula uma verdadeira divisão de trabalho entre a Assembleia da República e o Governo: a Assembleia da República aprova os princípios, estabelece os parâmetros e define o quadro; o Governo desenvolve, concretiza e especifica os princípios, dentro dos parâmetros e no âmbito do quadro de objectivos definidos».
8. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da manutenção da decisão recorrida, uma vez que as conclusões da recorrente se mostravam idênticas às anteriores, à excepção de três conclusões «novas» que apenas «tiveram a intenção de imputar ao acórdão os vícios de erro de julgamento, com tal referência expressa», não se verificando, no entender do Ministério Público, qualquer erro de julgamento naquele aresto recorrido.
Por acórdão do Pleno de 6 de Junho de 2002, o STA negou provimento ao recurso, por considerar que a recorrente não aduzira «qualquer argumento novo em ordem a pôr em causa o decidido», nem tendo indicado «as razões porque discorda do acórdão recorrido em ordem a poderem ser apreciadas [...], apenas reeditando os argumentos usados no recurso contencioso em prol da anulação do acto impugnado».
9. Inconformada, a recorrente veio, então, interpor recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LOTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade orgânica de «todas as normas do Dec.-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro (arts. 1º a 6º, em especial o art. 1º, em torno do qual os restantes se organizam)», por
«violação da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República estabelecida no art. 296º da Constituição da República Portuguesa».
Admitido o recurso, e já neste Tribunal, a recorrente juntou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1.ª- O Dec.-Lei n.º 380/93 é inconstitucional, já que a matéria disciplinada por aquele decreto-lei – regulamentação das restrições em matéria de reprivatizações – pertence, nos termos do art. 296º da Constituição, à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República.
2.ª- Nestes termos, tal matéria não pode ser estabelecida por simples decreto-lei (seja autorizado, seja de desenvolvimento, seja ainda de concretização de uma lei-quadro).
3.ª- A inconstitucionalidade patenteia-se ainda no âmbito de aplicação do Dec.-Lei n.º 380/93, já que ele se aplica transversalmente a todos os processos de reprivatização.
4.ª- Ora, nos termos do art. 296º da Constituição e da LQR, o Governo só dispõe de competência para emanar decretos-leis que, em concreto, a propósito de cada empresa, promovam reprivatizações.
5.ª- Não lhe cabe, por conseguinte, qualquer papel na conformação geral e abstracta na disciplina das reprivatizações.
6.ª- A inconstitucionalidade manifesta-se outrossim no plano do conteúdo e do objecto do próprio Dec.-Lei n.º 380/93, já que este disciplina materialmente as restrições à liberdade de transmissão de acções reprivatizadas de empresas em curso de reprivatização.
7.ª- A organização de um procedimento de autorização administrativa incidente sobre a aquisição de acções que perfaçam uma participação social superior a 10% do capital social de uma empresa reprivatizanda é em tudo equivalente ao conjunto de restrições disciplinadas na própria LQR (Lei n.º
11/91, de 5 de Abril), designadamente, no seu art. 13º.
8.ª- Tal procedimento não é senão um lugar paralelo daquele art.
13º, pelo que as normas do Dec.-Lei n.º 380/93 incidem sobre «matéria de lei-quadro», a qual está reservada ao Parlamento e não pode ser legislada pelo Governo.
9.ª- O Dec.-Lei n.º 380/93 relega para o plano estritamente administrativo e procedimental a matéria das restrições à liberdade de transmissão (ou, pelo menos, de aquisição), passando por cima e à margem de cada um dos decretos-leis de reprivatização.
10.ª Com isso, retira dignidade legislativa à matéria das restrições
à liberdade de transmissão e vulnera directamente o princípio da reserva da função legislativa e o princípio constitucional da separação dos poderes.
11.ª- Ao invés do que se sustenta no Acórdão da primeira instância, o facto de o Dec.-Lei n.º 380/93 se reportar às acções já reprivatizadas de empresas em curso de reprivatização não o põe fora do alcance dos parâmetros da LQR, a qual teria sempre de respeitar e à qual nunca se poderia substituir.
12.ª- É o próprio Governo que o admite, quando faz aprovar aquele decreto-lei como complemento da LQR.
13.ª- Porque invade uma área de reserva absoluta do Parlamento, vulnerando o núcleo essencial do princípio da separação dos poderes, o Dec.-Lei n.º 380/93 é orgânica e formalmente inconstitucional, pelo que deve ser desaplicado à espécie, sendo desse modo nulo (ou subsidiariamente, anulável) o acto administrativo ao abrigo dele praticado (art. 133º, n.º 2, al. d), do CPA).
10. Por sua vez, a autoridade recorrida enunciou as seguintes conclusões:
a) O procedimento autorizativo constante do Decreto-Lei n.º 380/93 tem plena aplicação às acções já reprivatizadas da B..
b) O regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 380/93 é um regime exógeno e exterior a cada operação de reprivatização, uma vez que estas operações pressupõem a titularidade pública das acções a reprivatizar em cada operação e o regime do Decreto-Lei n.º 380/93 pressupõe a sua titularidade privada, o mesmo quer dizer, pressupõe acções já reprivatizadas e não acções reprivatizandas.
[...]
e) [...] o Decreto-Lei n.º 380/93 apenas abrange as acções que estiverem envolvidas em actos de aquisição de participações qualificadas, ou seja, apenas abrange os actos, individuais e concretos, de aquisição de participações qualificadas de acções já reprivatizadas, representativas do capital social de sociedades em pleno processo de reprivatização, e não actos de aquisição de acções a reprivatizar, actos esses sujeitos ao condicionalismo próprio da regulamentação aplicável a cada fase ou operação concreta do processo de reprivatização.
f) Constitui opinião pacífica entre a doutrina constitucionalista portuguesa que a lei-quadro das Privatizações é uma lei de valor reforçado de vinculação específica, ou de carácter especial, na medida em que a sua observância apenas se impõe a determinadas leis que com ela tenham uma relação especial, precisamente a relação que decorre do seu âmbito material de aplicação
– a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974.
g) O objecto de um processo de reprivatização não é a «empresa como um todo», mas sim as acções representativas do seu capital social.
h) A autorização instituída pelo Decreto-Lei n.º 380/93 não constitui um obstáculo ou barreira administrativa à liberdade de transmissão dos valores mobiliários, antes representando uma limitação à aquisição de acções reprivatizadas e apenas à aquisição de participações qualificadas.
[...]
j) E mesmo que o Decreto-Lei n.º 380/93 versasse sobre matéria das reprivatizações, podendo constituir objecto da lei-quadro, [...] ainda assim, a matéria constante do Decreto-Lei n.º 380/93 não foi objecto da lei-quadro, podendo o Governo, no exercício legítimo das suas competências legislativas, legislar sobre a mesma.
k) Do Decreto-Lei n.º 380/93 não decorre, assim, a fixação de um valor máximo da participação no capital social de empresas reprivatizandas, mas tão somente a necessidade de a aquisição de uma participação qualificada ser objecto de uma autorização prévia.
[...]
m) As limitações à transmissibilidade incidem sobre o próprio processo transmissivo e não sobre a pessoa do adquirente – a operação translativa de propriedade não se pode verificar sem a intermediação de qualquer dos mecanismos jurídicos de limitação, se previstos de forma adequada e lícita na lei ou no contrato social da sociedade emitente em causa.
n) Questão distinta da livre transmissibilidade das acções admitidas a cotação é a das limitações à detenção de acções – limitações essas que não incidem sobre o processo transmissivo, mas antes sobre a situação jurídica da pessoa ou adquirente dos valores em causa.
[...]
s) A Constituição só reserva absolutamente ao Parlamento o tratamento dos princípios e parâmetros gerais – ou se se quiser das «bases» - em matéria de reprivatizações, pertencendo o seu «desenvolvimento» a uma área concorrencial; não é a «matéria das reprivatizações» que integra a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República; é a aprovação dos parâmetros e princípios gerais na forma de lei-quadro que a integra.
t) Afastada a tese de que as reprivatizações são matéria de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, é, também, de afastar a tese de que estas matérias são da reserva relativa de competência da Assembleia da República referida na alínea l) do n.º 1 do art. 165º, uma vez que essa disposição refere-se unicamente às privatizações.
u) Do mesmo modo, é de afastar a tese de que a competência legislativa do Governo vem da lei-quadro: a competência vem da norma constitucional, assim o impõe o princípio da prescrição (constitucional) normativa da competência.
[...]
w) Em suma, poder-se-á dizer que a Constituição, em matéria de reprivatizações, postula uma verdadeira divisão de trabalho entre a Assembleia da República e o Governo: a Assembleia da República aprova os princípios, estabelece os parâmetros e define o quadro; o Governo desenvolve, concretiza e especifica os princípios, dentro dos parâmetros e no âmbito do quadro de objectivos definidos.
[...]
z) Os âmbitos de aplicação material dos dois diplomas – a Lei n.º
11/90 e o Decreto-Lei n.º 380/93 – não coincidem: a lei-quadro das privatizações aplica-se aos bens e às acções a reprivatizar, o que pressupõe ainda a sua titularidade pública; enquanto que o Decreto-Lei n.º 380/93 só se aplica às acções já reprivatizadas, e dentro destas, apenas abrange certos actos de aquisição de participações qualificadas, actos esses sempre subsequentes às operações de reprivatização.
aa) O Decreto-Lei n.º 380/93 não é parâmetro de outros Decreto-Leis; o Decreto-Lei n.º 380/93 não é pressuposto material de outros actos normativos; o Decreto-Lei n.º 380/93 não é vinculativo do exercício de competências legislativas próprias do Governo ou de outro órgão legislativo; o Decreto-Lei n.º 380/93 não veio disciplinar genericamente a matéria das reprivatizações; o Decreto-Lei n.º 380/93 não limita ou vincula o conteúdo dos decretos-lei que aprovem as operações concretas de reprivatização.
bb) O Decreto-Lei n.º 380/93 tem mera eficácia intersubjectiva, tendo como seus destinatários principais os potenciais adquirentes de participações qualificadas (de acções reprivatizadas) de sociedades parcialmente reprivatizadas e por objecto actos individuais e concretos.
cc) Se o Governo tinha e tem, como se defendeu, competência concorrencial e complementar para legislar em matérias de reprivatização, mesmo em termos paramétricos, por maioria de razão terá essas mesmas competências em matérias que, embora relacionadas com as reprivatizações, e por ela justificadas, não se confundem com as mesmas, e sem que as mesmas assumam qualquer dimensão normativa paramétrica material.
dd) O Decreto-Lei n.º 380/93 não padece, assim, de nenhuma inconstitucionalidade orgânica, formal ou material, nem de qualquer ilegalidade.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
11. Antes de mais, cumpre delimitar o objecto do presente recurso.
A recorrente suscitou, como consta do requerimento de interposição do recurso, a questão da inconstitucionalidade orgânica de «todas as normas» do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, referindo-se, assim, à «globalidade do decreto-lei».
Mas, porque estamos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal apenas pode conhecer as questões de constitucionalidade de norma ou normas que tenham sido concretamente aplicadas na decisão recorrida, não podendo, pois, in casu, fiscalizar a constitucionalidade do diploma na sua globalidade.
Ora, como resulta da decisão recorrida, esta não aplicou todas as normas do Decreto-Lei nº 380/93, mas apenas as normas constantes do artigo 1º desse diploma legal, normas ao abrigo das quais foi produzido o despacho objecto da impugnação contenciosa.
Esse artigo dispõe o seguinte:
Artigo 1.°
1 - A aquisição, entre vivos, a título oneroso ou gratuito, por uma só entidade, singular ou colectiva, de acções representativas de mais de
10% do capital com direito a voto ou a aquisição de acções que adicionadas às já detidas ultrapassem aquele limite, em sociedades que venham a ser objecto de reprivatização, ficam sujeitas a autorização prévia do Ministro das Finanças.
2 - Sem prejuízo do que venha a ser estabelecido para cada operação de privatização, o disposto no número anterior só se aplica aos actos de aquisição subsequentes às operações de privatização.
A recorrente entende que estas normas violam a reserva absoluta de competência parlamentar prevista no artigo 296º da Constituição, o qual reserva a «lei-quadro, aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções», a regulação da reprivatização dos bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974, já que as normas em causa têm por objecto matéria que se deveria inserir no âmbito da lei-quadro, pois disciplinam «materialmente as restrições à liberdade de transmissão de acções reprivatizadas de empresas em curso de reprivatização».
A recorrente considera ainda que o procedimento organizado pelo Decreto-Lei n.º 380/93, ao submeter a autorização do Ministro das Finanças a
«aquisição, entre vivos, [...] de acções representativas de mais de 10% do capital com direito a voto ou a aquisição de acções que adicionadas às já detidas ultrapassem aquele limite», é assim um «lugar paralelo daquele art. 13º» da Lei n.º 11/90 (Lei Quadro das Reprivatizações), o qual disciplina a matéria das restrições às aquisições ou subscrições dos capitais a reprivatizar.
No entender da recorrente, a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93 seria ainda patenteada pelo facto de estas normas conterem uma regulamentação genérica, de aplicabilidade a todos os processos de reprivatização, quando, nos termos da Lei-Quadro, «o Governo só dispõe de competência para emanar decretos-leis que, em concreto, a propósito de cada empresa, promovam reprivatizações».
12. A actual redação do artigo 296º da Constituição resultou da revisão constitucional de 1997, que aglutinou nessa norma os anteriores artigos
85º e 296º. Embora não contendo verdadeira alteração substancial, é àquela versão anterior à última revisão constitucional que nos deveremos ater para efeitos de apreciação da questão de constitucionalidade suscitada, pois que tal era a versão em vigor à data da emissão do decreto-lei de onde constam as normas impugnadas e apenas foi arguida a respectiva inconstitucionalidade orgânica.
Dispunha, então, o artigo 85º, n.º 1, da Constituição:
Artigo 85º
(Nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974)
1. A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 só poderá efectuar-se nos termos de lei-quadro aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.
2. [...]
Por sua vez, o artigo 296º determinava:
Artigo 296º
(Princípios para a reprivatização prevista no n.º 1 do artigo 85º)
A lei-quadro prevista no n.º 1 do artigo 85º observará os seguintes princípios fundamentais:
a) A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974 realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública;
b) As receitas obtidas com as reprivatizações serão utilizadas apenas para amortização da dívida pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço da dívida resultante de nacionalizações ou para novas aplicações de capital no sector produtivo;
c) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares;
d) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito à subscrição preferencial de uma percentagem do respectivo capital social;
e) Proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a reprivatizar, por intermédio de mais de uma entidade independente.
A lei-quadro editada ao abrigo do transcrito artigo 85º da Constituição é a Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, adiante designada por LQP.
Assumem particular interesse para a questão suscitada nos autos as seguintes disposições desta lei:
Artigo 4.º Transformação em sociedade anónima
1 - As empresas públicas a reprivatizar serão transformadas, mediante decreto-lei, em sociedades anónimas, nos termos da presente lei.
2 – [...]
3 – [...]
Artigo 11.º Regime de aquisição ou subscrição de acções por pequenos subscritores e emigrantes
1 - A aquisição ou subscrição de acções por pequenos subscritores e emigrantes beneficiará de condições especiais, desde que essas acções não sejam transaccionadas durante um determinado período a contar da data da sua aquisição ou subscrição.
2 – [...]
Artigo 12.º Regime de aquisição ou subscrição de acções por trabalhadores
1 – [...]
2 - A aquisição ou subscrição de acções pelos trabalhadores da empresa a reprivatizar beneficiará de condições especiais, não podendo essas acções ser objecto de negócio jurídico que transmita ou tenda a transmitir a sua titularidade, ainda que com eficácia futura, durante um determinado período a contar da data da sua aquisição ou subscrição, sob pena da nulidade do referido negócio.
3 – [...]
4 – [...]
Artigo 13.º Regulamentação e restrições
1 - O decreto-lei referido no n.º 1 do artigo 4.º aprovará o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 6.º, as condições especiais de aquisição de acções e o período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 2.
2 - Nas reprivatizações realizadas através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública nenhuma entidade, singular ou colectiva, poderá adquirir ou subscrever mais do que uma determinada percentagem do capital a reprivatizar, a definir também no diploma a que se refere o n.º 1 do artigo 4.º, sob pena, consoante for determinado, de venda coerciva das acções que excedam tal limite, perda de direito de voto conferido por essas acções ou ainda de nulidade.
3 - O diploma que operar a transformação poderá ainda limitar o montante das acções a adquirir ou a subscrever pelo conjunto de entidades estrangeiras ou cujo capital seja detido maioritariamente por entidades estrangeiras, bem como fixar o valor máximo da respectiva participação no capital social e correspondente modo de controlo, sob pena de venda coerciva das acções que excedam tais limites, ou perda do direito de voto conferido por essas acções, ou ainda de nulidade de tais aquisições ou subscrições, nos termos que forem determinados.
4 - Para efeitos dos números anteriores, consideram-se como a mesma entidade duas ou mais entidades que tenham entre si relações de simples participação ou relações de participação recíprocas de valor superior a 50% do capital social de uma delas ou que sejam dominadas por um mesmo accionista.
13. Importará, antes de mais, interpretar e definir o âmbito de aplicação das normas impugnadas, constantes do Decreto-Lei n.º 380/93.
Como consta expressamente do n.º 2 do artigo 1º deste diploma, o disposto no seu n.º 1 «só se aplica aos actos de aquisição subsequentes às operações de privatização», referindo-se ainda esse n.º 1 às «sociedades que venham a ser objecto de reprivatização», o que significa que ela apenas visa as transmissões de participações posteriores ou subsequentes à reprivatização, ou seja, não se dirige às alienações do Estado aos particulares, mas apenas visa as alienações entre privados.
É aí que se fundamenta o Ministro das Finanças, para afirmar que a norma em causa é «exterior» ou ulterior ao processo de reprivatização, ao considerar o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 380/93 como «um regime exógeno e exterior a cada operação de reprivatização», não possuindo a mesma natureza «dos regimes e actos de reprivatização propriamente ditos», ainda que se possa apresentar enxertado num dado processo de reprivatização; entendeu o Ministro das Finanças que enquanto as operações de reprivatização «pressupõem a titularidade pública das acções a reprivatizar em cada operação», já as acções visadas pelo Decreto-Lei n.º 380/93 pressupõem «a sua titularidade privada», ou seja, «acções já reprivatizadas», e, dentro destas, apenas as que «estiverem envolvidas em actos de aquisição de participações qualificadas».
Por sua vez, e de forma semelhante, também o acórdão do STA entendeu que a limitação introduzida pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93 «tomou como objecto imediato negócios relativos a acções já privatizadas», e, assim, se dirigiu a uma realidade distinta daquela pressuposta pela lei-quadro, a qual se relaciona «com os actos de autêntica transferência, para a titularidade dos particulares, de bens que permanecessem no estado de nacionalizados».
Ora, ainda que o diploma vise efectivamente as acções já reprivatizadas, no sentido de acções ou títulos já anteriormente transitados para titularidade privada, o facto é que apenas visa essas mesmas acções enquanto o processo de reprivatização se encontra em curso, ou seja, enquanto ainda existem acções de titularidade pública na mesma empresa.
Essa interpretação esteve, aliás, subjacente ao processo a que se reportam os autos, tendo fundamentado o despacho recorrido, no qual se entendeu
(aliás, tal como tem sido prática do Governo nos restantes casos de aplicação do Decreto-Lei n.º 380/93):
De acordo com o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, a aquisição de acções já reprivatizadas, emitidas por sociedades cujo processo de reprivatização não se encontre ainda totalmente concluído, que confiram a determinada entidade, adicionadas ou não às por essa entidade já detidas, directa ou indirectamente, mais de 10% dos direitos de voto correspondentes ao capital da sociedade em curso de reprivatização devem ser autorizadas previamente pelo Ministro da Finanças.
E, mais adiante, escreveu-se ainda nesse despacho:
O sistema de autorização para detenção de participações relevantes em sociedades cujo processo de reprivatização se encontre ainda em curso, consagrado no Decreto-Lei nº 380/93, especificamente no seu artigo 1.º, visa garantir o controlo da evolução da estrutura accionista da sociedade durante o processo de reprivatização, tal como decorre expressamente, e desde logo, do preâmbulo do diploma em referência.
Cada processo de reprivatização obedece, em estrita articulação com o quadro imposto pela Lei nº 11/90, de 5 de Abril, designadamente no seu artigo
3.º, a um conjunto de objectivos específicos, objectivos esses relacionados, entre outros aspectos, com a empresa objecto de reprivatização, cmi o sector de actividade em que esta se insira, com o mercado de capitais, em alguns casos, e com a economia em geral. Constitui, por isso, um instrumento relevante de prossecução de objectivos de natureza política, estratégica e económica.
É compreensível, deste modo, que não seja indiferente ao ente reprivatizador a evolução da estrutura accionista de uma sociedade em reprivatização, concretamente, e a mero título exemplificativo, a existência, ou não, de entidades detentoras de participações relevantes, a identidade dessas entidades, os seus interesses - e a articulação destes com os da empresa com os demais accionistas e com os objectivos da reprivatização - ou o maior ou menor grau de dispersão das acções emitidas pela sociedade. Sobretudo se se pensar em processos de reprivatização que devam desenvolver-se considerando um contexto de grupo empresarial, no estabelecimento, ou não de alianças estratégicas e em eventuais objectivos de internacionalização de empresas em reprivatização e da economia nacional em geral. Tal como é justificável que, em determinados modelos, e por vezes, se imponha aos accionistas dominantes a manutenção, durante certo período - o qual se poderá prolongar para lá do processo de reprivatização -, de dada posição no capital social ou de outras obrigações específicas. Ter-se-á de entender, naturalmente, que cabe sempre ao Governo, enquanto responsável último pelo processo de privatizações, decidir sobre os momentos em que, entre outras, e sempre em função dos objectivos que presidem às reprivatizações em geral e a cada processo em concreto, aquelas definições devem ser tomadas.
Esta interdependência entre o sistema de autorização consagrado na lei ou, se se pretender, entre a necessidade de assegurar o controlo da evolução das estruturas accionistas como forma de garantir, em qualquer circunstância, a prossecução dos objectivos, gerais e específicos, dos processos de reprivatizáção, resulta, de algum modo, da própria Lei nº 11/90. Com efeito, esta, no nº 2 do artigo 13.º, impõe ao legislador ordinário a fixação de um limite de participação no capital social que, no âmbito das operações de reprivatização, nenhuma entidade poderá ultrapassar. Tal foi o que sucedeu na 1ª fase de reprivatização da B., na qual aquele limite foi, por força do artigo 10º do Decreto-Lei nº 56/95, fixado justamente em 10% do capital da sociedade.
Pretende-se, com esta possibilidade - que, em rigor, para a generalidade das modalidades de reprivatização, vincula o legislador ordinário - de definição de regras sobre a estrutura accionista por via legislativa, conjugado com o sistema de autorização prévia, assegurar que todas as fases do processo de reprivatização se realizem nas condições pretendidas pelo Governo.
Esta interpretação foi também defendida pelo Governo português perante o Tribunal de Justiça das Comunidades, no processo C-367/98, Comissão das Comunidades Europeias contra a República Portuguesa, que teve por objecto a norma constante do artigo 13º, n.º 3, da Lei n.º 11/90, o Decreto-Lei n.º 380/93 e o Decreto-Lei n.º 65/94, de 28 de Fevereiro. Como se pode ler no texto do próprio Acórdão, de 4 de Junho de 2002
(http://europa.eu.int/jurisp/cgi-bin/form.pl), «o Governo português alega que o mesmo só se aplica enquanto a operação de reprivatização estiver em curso e apenas se refere a participações importantes, isto é, as que conferem mais de
10% dos direitos de voto».
A conclusão que parece assim surgir de forma clara é a de que o Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, se pretende aplicar, em todas as suas normas, de forma clara e inequivoca, às empresas em curso de reprivatização, ou seja, em pleno processo de reprivatização, e enquanto este perdurar, ao longo das suas possíveis várias fases.
Com efeito, o processo de reprivatização é uma operação complexa, o que tem levado a que o Governo tenha optado geralmente por efectuar cada uma das reprivatizações de forma faseada ao longo de certos períodos de tempo, e não através de uma só operação de alienação da totalidade das acções representativas do capital social das empresas a reprivatizar, ainda que tal procedimento faseado não esteja directa e expressamente contemplado na lei-quadro.
Isto significa, então, que as normas em causa visam e fazem parte necessariamente do processo de reprivatização. É irrelevante que só tenham a ver com as acções já privatizadas e apenas se dirijam às transmissões posteriores entre particulares, pois que, desde logo, apenas visam estas transmissões durante o processo de reprivatização, na forma descrita, e já não serão aplicáveis quando o processo se encontre concluído.
Por outro lado, as situações a que o Decreto-Lei n.º 380/93 se reporta surgem como paralelas àquelas situações de indisponibilidade previstas pela Lei-Quadro no seu artigo 12º. Com efeito, nos termos do n.º 2 desta disposição, as acções adquiridas ou subscritas pelos trabalhadores da empresa a reprivatizar não poderão «ser objecto de negócio jurídico que transmita ou tenda a transmitir a sua titularidade, ainda que com eficácia futura, durante um determinado período a contar da data da sua aquisição ou subscrição», o que demonstra que a Lei n.º 11/90 possui também normas que visam as transmissões posteriores das acções reprivatizadas, restringindo ou limitando por certo período a respectiva transmissibilidade.
Recorrendo a uma análise comparativa, conclui-se que, de um caso para o outro, apenas muda o ponto de vista ou o sujeito visado, que, enquanto na LQP é o alienante, já no Decreto-Lei n.º 380/93 é a pessoa do adquirente. O que não afasta o paralelismo óbvio entre as situações em causa. Não se trata, portanto, de processos exógenos ou exteriores ao processo de reprivatização, antes são por ele moldados e determinados, deixando de fazer sentido após o seu termo.
O objecto do Decreto-Lei n.º 380/93 insere-se assim, inequivocamente, no âmbito de matérias atinentes aos processos de reprivatização.
14. As normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93 visam, de forma inequívoca, aplicar-se a todos os processos de reprivatização em curso. Essa vocação é, aliás, um dos pontos fundamentais na argumentação da recorrente para sustentar a tese da inconstitucionalidade da norma, apesar de a mesma prever a possibilidade de o regime nela previsto ser derrogado, caso a caso, pelos decretos relativos a cada reprivatização.
É certo que a LQP apenas prevê, no seu artigo 4º, conjugado com o artigo 13º, n.º 1, a elaboração pelo Governo de decretos-leis a respeito de cada processo concreto de reprivatização de empresas públicas, fixando «as modalidades de cada operação de reprivatização». E prevê, ainda, de forma expressa – no seu artigo 13º, n.ºs 1, 2 e 3 – que cada um desses decretos concretizadores aprove «as condições especiais de aquisição de acções» e «o período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11º, n.º 1 e 12º, n.º
2» bem como a percentagem do capital a reprivatizar que cada entidade poderá adquirir ou subscrever, podendo, também, «limitar o montante das acções a adquirir ou a subscrever pelo conjunto de entidades estrangeiras».
Debruçando-se expressamente sobre esta questão, PAULO CASTRO RANGEL, (A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a propósito da inconstitucionalidade do Dec.-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro), Legislação-Cadernos de Ciência de Legislação, vol. 23, Out/Dez 98, Lisboa, págs.
28-29), defende que «a actual Lei-Quadro das Reprivatizações, ela própria, só prevê a possibilidade de o Governo legislar sobre reprivatizações a respeito do processo individual de cada empresa. E, portanto, de, em nenhum caso, ser chamado a disciplinar genericamente a matéria das reprivatizações, seja no que concerne às suas modalidades, seja no que respeita ao estabelecimento ou levantamento de limitações à aquisição ou transmissão de acções representativas do capital social reprivatizando». O Decreto-Lei n.º 380/93, no entender deste autor, ao estabelecer um procedimento autorizativo incidente de forma genérica e indiferente «sobre todos os processos de reprivatização», constituiu uma usurpação pelo Governo de «competências legislativas em absoluto reservadas à Assembleia da República», assim concluindo pela inconstitucionalidade orgânica desse diploma.
Ora, o artigo 13º da LQP comete ao Governo a fixação, para cada reprivatização, de uma percentagem-limite do capital a reprivatizar, por cada entidade adquirente (no caso da primeira fase da B., esse limite foi fixado em
10% do capital da sociedade – artigo 10º do Decreto-Lei nº 52-A/95, de 2 de Junho). Poder-se-ia, então, entender que aquele artigo 13º confere ou faculta, ainda, ao Governo a faculdade de fixar também uma percentagem ou um limite semelhante para as acções já privatizadas, nas alienações subsequentes, durante o decurso do processo de reprivatização (numa aplicação paralela ao regime das indisponibilidades previstas no artigo 12º).
Mas então, se o Governo pudesse determinar aquele limite ou percentagem caso a caso, nos termos do disposto expressamente na LQP, nada pareceria obstar a que, por maioria de razão, estabelecesse, desde logo, uma norma genérica nesse âmbito, ou seja, para a generalidade dos casos; assim, o Governo apenas teria que legislar sobre a matéria, em cada caso, na eventualidade de pretender alterar esse limite genérico, em virtude das conveniências concretas de cada reprivatização. De resto, as normas em causa prevêem a possibilidade de preclusão ou afastamento daquela regra pelos concretos decretos privatizadores.
O argumento relativo ao carácter genérico das normas em questão não parece, de per si, bastante para fundamentar uma eventual conclusão de inconstitucionalidade das normas, pelo que carece a recorrente de razão nesse aspecto.
Questão é que se entenda ser permitido ao Governo, nos termos da Constituição e da LQP, fixar a questionada percentagem, sendo indiferente que essa fixação ocorra em cada concreto decreto-lei de reprivatização ou, com carácter geral, num decreto-lei de aplicação genérica.
15. O Tribunal teve já oportunidade de apreciar algumas normas da Lei n.º 11/90, no Acórdão n.º 71/90 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., págs. 12-13), podendo-se ler aí:
[...] à face do disposto na Constituição, esta lei-quadro das reprivatizações é concebida como uma norma sobre a produção normativa [...], destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática, pelo Governo, dos actos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [...] e dotada de uma primariedade material e hierárquica (porque conformadora daqueles decretos-leis [de transformação das empresas] e daquelas resoluções [que aprovam as condições finais e concretas das operações em cada processo] e sobre uns e outras naturalmente prevalecente, não só em razão da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania – já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa).
Do exposto decorre a relevância do grau de densificação normativa desta lei-quadro que há-de ser aquele pretendido pela Constituição para desempenhar a tripla função assinalada.
Desde logo, afigura-se tratar-se de uma lei de princípios, à semelhança das leis de bases, porquanto a Constituição revista consagra ela própria expressamente, em disposição final e transitória (artigo 296º), um elenco daqueles que entendeu que nela deveriam ter acolhimento.
Por outro lado, deverá tratar-se de uma lei ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo composto por um conjunto de actos nela previstos e a ela subordinados, a praticar pelo Governo, e nisto consistirá a sua função habilitante e simultaneamente conformadora.
No dizer de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, pág. 416), «a referida lei-quadro funciona como parâmetro vinculante dos diplomas legislativos que regulem as operações concretas de reprivatização», sendo, portanto, «um instrumento de regulação prévia geral dos diplomas que hão-de regular as privatizações em concreto» (ibidem, pág. 1082).
Por sua vez, CARLOS BLANCO DE MORAIS,( As Leis Reforçadas, Coimbra, págs. 745 e segs.), defende que a reserva material da lei-quadro das reprivatizações se encontra «circunscrita, não à integridade da matéria das privatizações, mas sim a uma esfera especialmente delimitada da mesma». E especifica:
Trata-se pois de uma reserva parcelada, ou de um domínio reservado, já que o mesmo deixa de fora da regulação virtual que lhe inere duas áreas substanciais tangentes.
[...]
Uma segunda área, que designaremos de «complementar», respeita ao domínio material coberto por cada processo concreto de reprivatização abrangido pelo n.º 1 do art. 296º, ou seja, pelas esferas materiais singulares que são objecto de enquadramento directivo por parte da própria lei-quadro das reprivatizações. Trata-se assim de um domínio não lateral mas completivo em relação à esfera da normação de enquadramento, dado que é por esta orientado.
As normas integrativas da lei-quadro das reprivatizações movem-se, deste modo, dentro de um domínio material reservado, fronteiriço a outros dois, devendo as mesmas abster-se de desencadear, seja invasões horizontais em relação a outros processos de privatização, seja uma penetração exacerbada por via de um excesso de densidade reguladora, susceptível de se concretizar em anexações do espaço conformador dos decretos-leis que têm por objecto directivar.
[...]
A reserva da lei-quadro das reprivatizações define-se, assim, como um domínio material paramétrico.
A referida parametricidade assume, em primeiro lugar, a vertente da normação condicional, tendo em conta que não serão autorizadas reprivatizações em concreto, sem a existência prévia da lei-quadro.
Assume igualmente uma função de normação pressuposto de outras leis, já que cumula um regime regulador de algumas especialidades produtivas sobre outros actos legislativos com uma função materialmente directiva sobre o próprio conteúdo dos mesmos actos, dado que cada lei de reprivatização singular, como requisito da sua validade, deverá respeitar as directrizes gerais contidas na lei-quadro.
Mais adiante, este autor descreve esta lei como uma lei materialmente vinculada no seu conteúdo por directrizes constitucionais, na medida em que «o domínio reservado à incidência da lei-quadro das reprivatizações encontra-se materialmente condicionado por um conjunto de princípios reitores dispostos na Constituição». Esses princípios encontram-se descritos no n.º 1 do artigo 296º da Constituição.
Assente assim esta natureza paramétrica da lei-quadro, como definidora do regime jurídico estruturante com o qual se deverão conformar e observar os actos legislativos concretizadores desse mesmo regime, resta então determinar o efectivo alcance desse regime jurídico, ou seja, definir o âmbito da reserva parlamentar absoluta nesta matéria.
JORGE MIRANDA, (As privatizações na revisão constitucional de 1989 e na Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, in Direito e Justiça, vol. V, 1991, pág. 54), questiona «até onde deve ir a Assembleia da República - o órgão com reserva de competência (insista-se) – [...] para as [normas constitucionais] concretizar, para lhes preencher o conteúdo, para as transformar em comandos efectivos? Qual o grau necessário para que, na prática, não ocorra uma transferência do poder legislativo para o Governo?». E, reportando-se ao citado Acórdão n.º 71/90, respondeu pela forma seguinte:
Sem negar uma apreciável esfera de liberdade ao legislador parlamentar, reiterou a regra da densificação: o legislador deve garantir “um núcleo essencial de tradução legislativa das regras constitucionais”.
[...]
O legislador ordinário não tem apenas de não contrariar as normas constitucionais; tem também [...] o dever de as complementar, de as desenvolver, de as realizar. A sua “liberdade de conformação” [...] nem por isso será afectada, porque vários serão os caminhos e os critérios políticos que poderá escolher. O que, precisamente, não poderá fazer será não optar, imprimindo às normas constitucionais uma insuficiente tradução legislativa ou, no limite, reproduzindo-as sem nada fixar de novo.
Se tal acontecer, o legislador cometerá então um verdadeiro desvio de poder legislativo, a que se seguirá a inconstitucionalidade orgânica de actos normativos que, porventura, venha depois o Governo a publicar, por, afinal, vir a ser o Governo, sem credenciais da Constituição para o efeito, a definir o cerne da disciplina legislativa.
Também LINO TORGAL, (Da Lei-Quadro na Constituição Portuguesa de
1976, in Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos da Constituição de 1976, Coimbra, 1997, pág. 945), apelida o artigo 296º da Constituição como o exemplo mais frisante e nítido de um «programa normativo-constitucional» que o legislador ordinário tem de traduzir. E, no tocante ao grau de densificação desse programa pela lei-quadro, nomeadamente por contraposição com as leis de bases, este autor prosseguiu (ob. cit., pág. 950):
Os regimes jurídicos definidos pelo Parlamento tenderão para a completude, para a consagração de praticamente todas as opções legislativas, a ponto de carecerem tão-somente, em momento ulterior, de execução ou aplicação. Na verdade, dado o elevado grau de densidade normativa a adquirir pelos comandos da lei-quadro, não se torna necessário que o órgão legislativo que a concretiza venha ele próprio, em subsequente regulamentação, definir novos quadros de parametricidade jurídica. As opções legislativas necessárias à definição desses regimes jurídicos já foram previamente estabelecidas pela lei-quadro. Daí que a actividade legislativa de desdobramento da lei-quadro seja uma actividade predominantemente «executiva» e em que ao órgão concretizador assiste uma reduzida margem de livre conformação.
Mais adiante, referindo-se à legislação concretizadora, o mesmo autor afirma (ob. cit., pág. 953):
Assim, a legislação complementar não participa da mesma natureza da lei-quadro – já não é ontologicamente ela – mas sua mera aplicação ou execução
(que tem de especial, no confronto com os demais actos jurídicos-públicos de execução – regulamentos e actos administrativos – o facto de ser efectuada ou realizada por via legal).
Por sua vez, PAULO CASTRO RANGEL (ob. cit., pág. 28) defende que «a definição dos princípios, das regras e dos procedimentos que hão-de regular em geral as privatizações pertencem constitucionalmente ao âmbito legislativo material da Assembleia da República, a qual não pode transferir essa competência para o Governo, por essa competência lhe haver sido absolutamente reservada». E prossegue:
De resto, o figurino constitucional da lei-quadro das reprivatizações é o de que a regulamentação geral e abstracta das operações de privatização há-de ser completamente efectuada na lei-quadro da Assembleia da República, deixando-se ao Governo a competência para emanar actos legislativos que, em concreto, instituam as reprivatizações de cada empresa.
Este figurino, aliás, é o que resulta logicamente da própria Lei n.º
11/90, de 5 de Abril, na qual, [...] apenas se prevê que o Governo venha a emanar decretos-leis que transformem, caso a caso, cada empresa a privatizar em sociedade anónima, que aprovem os estatutos respectivos e que determinem o processo e as modalidades de cada operação de reprivatização, bem como as condições em que são admitidas certas restrições à livre aquisição e transmissão de acções.
Com efeito, é esse o modelo que resulta imediatamente dos arts. 4º e
13º da Lei-Quadro. O que equivale a recordar que a actual Lei-Quadro das Reprivatizações, ela própria, só prevê a possibilidade de o Governo legislar sobre reprivatizações a respeito do processo individual de cada de cada empresa. E, portanto, de, em nenhum caso, ser chamado a disciplinar genericamente a matéria das reprivatizações, seja no que concerne às suas modalidades, seja no que respeita ao estabelecimento ou levantamento de limitações à aquisição ou transmissão de acções representativas do capital social reprivatizando.
E, mais adiante (pág. 32), conclui que «a Lei-Quadro das Reprivatizações tem um estatuto constitucional próprio e a tipologia da sua relação com actos concretizadores depende em exclusivo do art. 296º da CRP 76», definindo assim o seu âmbito (ob. cit., pág. 33):
[...] deverá considerar-se matéria da Lei-Quadro das Reprivatizações, reservada à Assembleia da República, tudo quanto seja a disciplina do processo de reprivatização em geral. Tudo o que tenha a ver com a regulamentação geral e abstracta – válida para todas as empresas candidatas a uma reprivatização – será materialmente pertinente ao âmago da Lei-Quadro
(pressuposta, evidentemente, a natureza e dignidade legislativa de tais estipulações). Já, por sua vez, a delimitação em concreto de cada operação de reprivatização (total ou parcial) cai completamente fora do âmbito daquela reserva absoluta de Lei-Quadro. [...]
[...] o art. 296º da CRP 76 organiza uma reserva parlamentar absoluta, em matéria de regulação geral das reprivatizações, exiente em termos de densidade.
[...] assente aquele grau de densidade dos preceitos da Lei-Quadro, a parte que sobeja antolha-se como tarefa ou poder essencialmente executivos ou de aplicação, como função materialmente administrativa. [...]
[...] Efectivamente, a organização constitucional de uma reserva parlamentar absoluta tão exigente tem, como reverso da medalha, a «redução» do
«espaço de conformação normativa» subsistente a jusante. [...] é um espaço de simples aplicação e de execução concreta de directivas pré-definidas.
16. Feita esta breve recensão da doutrina nacional, surge como indiscutível uma primeira asserção: as matérias constantes das alíneas do artigo
296º da Constituição são as que a LQP deve, desde logo, obrigatoriamente regular. Para além disso, e tal como se afirmou no Acórdão n.º 71/90, «deverá tratar-se de uma lei ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo composto por um conjunto de actos nela previstos e a ela subordinados, a praticar pelo Governo, e nisto consistirá a sua função habilitante e simultaneamente conformadora».
Esta lei assume, pois, uma natureza paramétrica, conformadora e habilitante, que não se basta, desde logo, como se fez notar no Acórdão citado, com a mera reprodução das várias alíneas do artigo 296º da Constituição, antes impondo ao legislador parlamentar um determinado grau de densificação normativa, podendo efectuar essa concretização «com maior ou menor detalhe, desde que garanta sempre um núcleo essencial de tradução legislativa das regras constitucionais em causa». Como também referiu JORGE MIRANDA (ob. cit., pág.
58), o legislador parlamentar tem ainda o dever de complementar, desenvolver e realizar as normas constitucionais, por forma a «definir o cerne da disciplina legislativa» referente à matéria das reprivatizações. Este regime deve tender
(cfr. LINO TORGAL, ob. cit., pág. 950) assim «para a completude, para a consagração de praticamente todas as opções legislativas», por forma a, posteriormente, apenas carecer de concretização pelo Governo.
Mas, sendo assim, se o Governo deve ater-se às opções legislativas fundamentais constantes da LQP, atenta a natureza conformadora e habilitante dessa lei, impõe-se a conclusão de que não pode o Governo, no âmbito dessas opções fundamentais, vir inovar ou regular ex novo, ou seja, além do que esteja previsto na LQP.
Quer isto dizer que o Governo, por um lado, deve acatar e respeitar as normações e directrizes expressamente constantes da Lei-Quadro e que, por outro lado, deve abster-se de introduzir regulamentação inovatória, de carácter essencial, no que se refere às reprivatizações. Com efeito, só a LQP poderá definir os princípios, as linhas gerais, as directrizes atinentes a esta matéria, não podendo o Governo ver na ausência de certas opções essenciais na LQP, uma «carta branca» para ele próprio as instituir ou não instituir. Do silêncio da lei-quadro aprovada pela Assembleia da República, não pode resultar, para mais em matéria sujeita a tão intenso grau de reserva parlamentar, uma implícita concessão ao Governo do poder de livremente legislar, vindo este a,
«sem credenciais da Constituição para o efeito, definir o cerne da disciplina legislativa» (cfr. JORGE MIRANDA, ob. cit., pág. 58).
17. Dúvidas não podem existir de que a matéria versada pelas normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93, ao fixarem limites à aquisição de acções reprivatizadas, no decurso do processo de reprivatização – concretamente, ao condicionarem a autorização prévia do Ministro das Finanças a aquisição por uma só entidade, singular ou colectiva, de acções que, por si sós ou adicionadas às já detidas anteriormente, ultrapassem 10% do capital com direito a voto, – constitui uma opção legislativa essencial no âmbito das reprivatizações.
Resta, porém, saber se a LQP não conterá em si mesma, nos termos do disposto no seu artigo 13º, ao prever aí a fixação de uma percentagem máxima do capital social a reprivatizar que cada entidade poderá subscrever ou adquirir, permissão para o estabelecimento de limites de percentagem à aquisição das acções já reprivatizadas, em operações de transmissão subsequentes, quando daí resulte a aquisição global de capital social com direito a voto superior a uma determinada percentagem.
Como se disse atrás, poder-se-ia entender que o n.º 2 do artigo 13º da LQP, ao cometer ao Governo a fixação de uma tal percentagem ou limite nas aquisições iniciais, lhe confere, ainda, a faculdade de fixar também uma percentagem ou limite semelhante para as acções já reprivatizadas, nas subsequentes transmissões das mesmas, durante o decurso do processo de reprivatização, numa aplicação paralela ao regime das indisponibilidades previstas nos artigos 12º e 13º da LQP.
Independentemente dessa questão (saber se daquela previsão se pode retirar a autorização para a fixação de uma percentagem limite de subscrição de acções noutros casos não expressamente previstos no artigo 13º da LQP), a verdade é que existe, desde logo, uma diferença essencial entre a autorização contida nessa disposição e aquela outra contida no artigo 1º do Decreto-Lei n.º
380/93.
Assim, enquanto na lei-quadro se determina que a fixação do limite percentual de acções a adquirir ou subscrever na operação de reprivatização deve ser realizada por meio do decreto-lei reprivatizador, limite esse que será genericamente aplicável a todos os potenciais adquirentes, já no caso do Decreto-Lei n.º 380/93, a aplicação do limite em causa – ainda que genericamente estabelecido - é remetida, caso a caso, para um acto administrativo discricionário, consistente na sujeição à autorização prévia do Ministro das Finanças, o que significa que, no quadro de uma mesma operação de reprivatização, pode ser aplicável a um adquirente e já não a outro, consoante a apreciação discricionária cometida ao Ministro das Finanças.
Essa intenção «controladora» do Governo é expressamente assumida no preâmbulo do diploma, quando aí se considera «indispensável acompanhar a evolução das respectivas estruturas accionistas», isto é, das empresas em processo de reprivatização. E fundamentou também o despacho recorrido, no qual se pode ler que o sistema de autorização previsto no Decreto-Lei n.º 380/93
«visa garantir o controlo da evolução da estrutura accionista da sociedade durante o processo de reprivatização».
Ora, mesmo admitindo que a LQP contempla, de forma implícita, a possibilidade de fixação de um limite máximo ou percentagem à transmissibilidade de acções do capital social já reprivatizado, por analogia com o regime de restrições e indisponibilidades nela previstos, o que ela seguramente não contempla é a possibilidade de determinação de tal limitação, por meio de um acto administrativo discricionário.
O que significa que as normas em causa vieram, nessa estrita medida, introduzir matéria inovadora relativa às restrições ou indisponibilidades, matéria essa que, nessa dimensão, ou seja, no que se refere à aplicação de um limite à aquisição de acções através de acto administrativo discricionário, não foi prevista na lei quadro. E se, indiscutivelmente, tal matéria, como atrás se referiu, corresponde a uma opção legislativa essencial, então as normas em causa vieram regulamentar matéria sobre a qual apenas a LQP podia dispor.
A este propósito, PAULO CASTRO RANGEL (ob. cit., págs. 29-31), que não tem dúvidas em se pronunciar claramente pela inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 380/93, afirma:
É que, [...] o estabelecimento de um condicionamento ou obstáculo administrativo deste teor representa um verdadeiro «lugar paralelo» ou um autêntico «equivalente funcional» das restrições e condicionamentos disciplinados na própria Lei-Quadro das Reprivatizações (mais precisamente no seu art. 13º). De facto, [...] também o art. 13º, n.º 3, prevê a possibilidade de os decretos-leis que, em concreto, instituem a reprivatização fixarem um
«valor máximo» da participação social susceptível de ser detida pelo conjunto das entidades estrangeiras e organizarem «modos de controlo» do respeito por esse valor máximo. Com uma diferença, porém, que não é despicienda: é que enquanto o art. 13º da Lei-Quadro das Reprivatizações confere a essa restrição dignidade formal legislativa (impondo, portanto, a sua consagração no decreto-lei que aprove a reprivatização), o Dec.-Lei n.º 380/93 organiza um processo simplesmente administrativo, tramitado completamente à margem e por cima dos decretos-leis que, em cada caso, levam a efeito as concretas privatizações.
E vai mais longe, concluindo pela forma seguinte:
[...] se o condicionalismo criado é um «lugar paralelo» daquelas restrições directa e expressamente previstas pela Lei-Quadro, então isso quer dizer que a disposição do Dec-Lei n.º 380/93 pertence substantivamente ao âmbito material da Lei-Quadro das Reprivatizações e, por conseguinte, integra indubitavelmente o domínio legislativo da Assembleia da República.
A conclusão inevitável é a de que as normas constantes dos nº. 1 e n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, ao introduzirem limitações à transmissibilidade de acções, em subsequentes transmissões, durante o processo de reprivatização, limitações essas a fixar por acto administrativo discricionário e não previstas na LQP, versaram sobre matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República pelos artigos 85º, n.º 1, e
296º da Constituição (na redacção anterior à revisão constitucional de 1997).
18. Assinale-se, aliás, que, indo mesmo mais longe, numa apreciação da conformidade material do «regime de autorização administrativa» instituído pelo Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, com o Tratado CE, o Acórdão do Tribunal de Justiça, cit., entendeu que esse regime se mostrava contrário às disposições do Tratado, não se demonstrando que o mesmo se mostrava
«proporcionado ao objectivo prosseguido, de modo tal que o mesmo objectivo não poderia ser alcançado por medidas menos restritivas, nomeadamente por um sistema de declarações a posteriori», já que «tal regime deve ser fundamentado em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente pelas empresas em causa, e qualquer pessoa lesada por uma medida restritiva desse género deve poder dispor de uma via de recurso», condições que o Tribunal entendeu não se verificarem no caso português.
III – DECISÃO
19. Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 85º, n.º 1, e 296º da Constituição (na redacção anterior à revisão constitucional de 1997), as normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso.
Lisboa, 9 de Abril de 2003 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de voto
Votei vencida e pronunciei-me no sentido da não inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
380/93, de 15 de Novembro, pelas razões que a seguir enuncio sucintamente.
1. Em primeiro lugar, entendo que o Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, tem como objecto instituir um regime de autorização que diz respeito a certos actos de aquisição de acções já reprivatizadas, de sociedades em curso de reprivatização, matéria que não pertence necessariamente ao âmbito da reprivatização e que, por isso, não deve estar sujeita aos requisitos estabelecidos nos artigos 85º, n.º 1, e 296º da Constituição (na versão anterior
à revisão constitucional de 1997).
Tendo em conta o que expressamente se dispõe no artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 380/93 não restam dúvidas de que este diploma “só se aplica aos actos de aquisição subsequentes aos actos de privatização”.
É certo que o regime instituído pelo diploma se aplica à aquisição, por uma só entidade, de participações qualificadas em sociedades que se encontrem em curso de reprivatização e que a ordem jurídica portuguesa não define com clareza qual o momento em que deve considerar-se concluído o
“processo de reprivatização”.
Todavia, em minha opinião, quando a Constituição determina que “a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 só poderá efectuar-se nos termos de lei-quadro aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções” (artigo 85º, n.º 1) – fixando os “princípios fundamentais” a observar em tal lei-quadro (artigo 296º) –, tem em vista restritamente o momento em que, e as operações através das quais, se opera a transferência da propriedade dos bens do sector público para o sector privado, e já não os momentos e os negócios jurídicos posteriores.
E compreende-se que assim seja, designadamente se se tiver em conta a história e a teleologia dos preceitos constitucionais em causa. Substituído o anterior princípio da irreversibilidade das nacionalizações efectuadas depois de
25 de Abril de 1974 (artigo 83º, na versão originária da Constituição) pela admissão da reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados (artigo 85º, na versão que resultou da revisão constitucional de 1989), o que a Constituição quis salvaguardar foi a observância de determinados princípios, considerados fundamentais (os mencionados no artigo 296º), aquando da “transferência para mãos privadas da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção nacionalizados a seguir ao 25 de Abril de 1974” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, anotação ao artigo 296º, p.
1081 s).
A lei-quadro das privatizações, aprovada na sequência daqueles preceitos constitucionais (Lei n.º 11/90, de 5 de Abril), densificando os referidos princípios, prevê a transformação, mediante decreto-lei, das empresas públicas a reprivatizar em sociedades anónimas, regula em geral os processos e modalidades de reprivatização e remete para cada decreto-lei de transformação a regulamentação de certas matérias (como a aprovação do processo e das modalidades de cada operação de reprivatização e a concretização de certos limites na aquisição de capital a reprivatizar).
Ao apreciar, em fiscalização preventiva, a conformidade constitucional do decreto da Assembleia da República de que veio a resultar a Lei n.º 11/90, o Tribunal Constitucional teve ocasião de afirmar, no acórdão n.º
71/90 (Diário da República, II Série, n.º 164, de 18 de Julho de 1990, p. 7989 ss), que se trata de “uma lei de princípios, à semelhança das leis de bases, porquanto a Constituição revista consagra, ela própria, expressamente, em disposição final e transitória (artigo 296º), um elenco daqueles que entendeu que nela deveriam ter acolhimento” e de “uma lei ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo composto por um conjunto de actos nela previstos e a ela subordinados, a praticar pelo Governo”. Assim, e utilizando as palavras do Tribunal Constitucional no mencionado acórdão n.º 71/90, “o único critério constitucionalmente adequado para aferir da conformidade à lei fundamental da concretização legislativa dos seus dispositivos será o da cabal tradução, no plano da legislação ordinária, daqueles princípios constitucionais sediados no artigo 296º”.
Na sequência desta caracterização, o Tribunal concluiu que “tal como sucede com as leis de bases, assiste, nesta sede, ao legislador parlamentar uma apreciável margem de liberdade na consagração legislativa dos princípios constitucionais”, podendo “fazê-lo com maior ou menor detalhe, desde que garanta sempre um núcleo essencial de tradução legislativa das regras constitucionais em causa”.
A meu ver, as regras relativas à aquisição de acções já reprivatizadas, de sociedades em curso de reprivatização, tendo em vista o controlo da aquisição de participações qualificadas, não integram seguramente o núcleo essencial dos princípios constitucionais definidos no artigo 296º da Constituição e não teriam por isso de ser objecto de lei-quadro a aprovar nos termos previstos no referido artigo 85º, n.º 1.
Das normas constitucionais relevantes resulta portanto que a matéria das reprivatizações se insere na competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo: à Assembleia da República compete adoptar a lei-quadro, estabelecendo os princípios e parâmetros gerais e fixando a moldura legal para futuros actos normativos, tendo em conta o disposto no artigo
296º da Constituição; o Governo tem poderes para desenvolver a lei-quadro, concretizando e complementando os princípios nela estabelecidos.
Observando agora o quadro legal existente em matéria de reprivatizações, verifica-se que coexistem, relativamente a cada sociedade a reprivatizar, dois regimes: por um lado, quanto à própria operação de reprivatização, o regime que consta da lei-quadro das privatizações, transposto para o respectivo decreto-lei de transformação; por outro lado, no que diz respeito à aquisição, durante o processo de reprivatização, de participações qualificadas, já detidas por entidades privadas, o regime que decorre do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro.
Ora, sendo certo que, na maioria dos casos, o processo de reprivatização se desenvolve em várias fases, a delimitação entre o âmbito de aplicação dos dois regimes há-de fazer-se do seguinte modo: relativamente a cada fase de reprivatização da sociedade, não pode deixar de se respeitar o que se encontra estabelecido na lei-quadro das privatizações e no respectivo decreto-lei de transformação; durante todo o processo de reprivatização, no que se refere à aquisição de participações qualificadas, já detidas por entidades privadas, deve observar-se o regime consagrado no Decreto-Lei n.º 380/93.
Por outras palavras: o regime constitucionalmente exigente das operações de reprivatização pressupõe a titularidade pública das acções a reprivatizar, enquanto o regime de autorização de aquisição de participações qualificadas, definido pelo Decreto-Lei n.º 380/93, pressupõe a sua titularidade privada.
O regime de autorização de aquisição de participações qualificadas, contido no Decreto-Lei n.º 380/93, é portanto um regime exógeno e ulterior a cada operação de reprivatização. Isto mesmo se reconhece, quer no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, aqui recorrido (fls. 379), quer nas contra-alegações de recurso produzidas neste Tribunal pelo Ministro das Finanças
(fls. 538, 540, 577 ss).
Assim entendido o objecto do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, como respeitante à aquisição de participações qualificadas já reprivatizadas, de sociedades em curso de reprivatização, tendo em vista o controlo da aquisição de participações qualificadas, conclui-se que a definição do regime de autorização que dele consta não está abrangida pela reserva parlamentar do artigo 85º, n.º 1, antes releva da competência legislativa genérica do Governo.
2. Por outro lado, o regime constante do diploma em que se inserem as normas em apreciação visa garantir “o reforço da capacidade empresarial nacional e a eficiência do aparelho produtivo, de forma compatível com as orientações de política económica” (cfr. respectivo preâmbulo).
Estando em causa objectivos que devem presidir às reprivatizações, nos termos da lei-quadro (artigo 3º, alíneas a) e b), da Lei nº 11/90), o Decreto-Lei n.º 380/93 em nada pretende inovar, afinal. Trata-se portanto, e apenas, de instituir um controlo administrativo, destinado a garantir o controlo da evolução da estrutura accionista da sociedade durante o processo de reprivatização, e justificado pelos objectivos essenciais das reprivatizações, fixados na lei-quadro, a que acaba de se fazer referência.
Deste modo, a sujeição a autorização governamental não pode deixar de ser entendida em termos estritos, como uma autorização vinculada.
Assim interpretada, a exigência de autorização configura um mero condicionamento, ou seja, “um requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de um direito” (cfr. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, tomo IV – Direitos fundamentais, 3ª ed., Coimbra, 2000, p.
329). Não é com tal exigência afectado o conteúdo essencial de direitos fundamentais, como a liberdade de iniciativa privada ou o direito de propriedade.
Afastada está consequentemente a existência de uma restrição inconstitucional de direitos, liberdades e garantias, já que a matéria regulada pelo Decreto-Lei em análise não está abrangida na reserva da Assembleia da República (a que se referem as disposições conjugadas dos artigos 17º e 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição, na versão que aqui importa considerar).
3. De todo o modo, no caso concreto em análise nos autos, certo é que a autorização prevista no n.º 1 do Decreto-Lei n.º 380/93 não foi concedida.
A solução do caso concreto é portanto a mesma que decorreria da aplicação do regime fixado no diploma que aprovou a primeira fase da reprivatização da B. (Decreto-Lei n.º 56/95, de 31 de Março).
Na verdade, nos termos do artigo 10º, n.º 1, deste Decreto-Lei,
“nenhuma entidade, singular ou colectiva, poderá adquirir, ao abrigo do presente diploma, mais de 10% do capital da sociedade, sendo reduzidos a este limite as propostas de aquisição que o excederem”.
Ora, a limitação da percentagem do capital a adquirir por uma mesma entidade no âmbito das reprivatizações encontra-se expressamente prevista na Lei n.º 11/90 (artigo 13º, n.º 2). A autorização ao Governo, contida neste artigo
13º, n.º 2, da Lei n.º 11/90 para concretizar as percentagens máximas ou os limites a observar nas aquisições iniciais de capital das sociedades a reprivatizar implica necessariamente a admissibilidade de fixação de percentagens ou de limites semelhantes relativamente às acções já reprivatizadas, nas transmissões subsequentes de tais acções. Na verdade, a ideia de permitir o controlo da evolução da estrutura accionista da sociedade, que preside à estatuição do artigo 13º, n.º 2, da Lei n.º 11/90, e, no caso concreto da B., ao regime constante do artigo 10º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
56/95, de 31 de Março, não se restringe ao momento inicial da vida da empresa reprivatizada, antes se justifica por todo o período em que durar o processo de reprivatização. Para o Estado, como sócio necessariamente maioritário no decurso desse processo, não é indiferente a identidade e a qualidade dos sócios que, em qualquer momento do processo, são detentores de participações qualificadas. Neste sentido, não pode deixar de ser reconhecido ao Governo, que é afinal o responsável último pela prossecução dos objectivos da reprivatização, o poder – vinculado, é certo – de controlar a aquisição de participações qualificadas. Por outro lado, a necessidade de tal controlo não se esgota no momento da aquisição inicial, podendo certamente dizer respeito a momentos posteriores de transmissão das acções representativas de capital nas sociedades em curso de reprivatização.
Daí que, do meu ponto de vista, o regime de autorização de aquisição de participações qualificadas, constante do Decreto-Lei n.º 380/93 – embora podendo porventura ser criticável a outros títulos –, encontre justificação no quadro definido pela Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, e não mereça censura quando confrontado com a Constituição Portuguesa.
4. Tendo em conta o exposto, concluí que ao Governo não estava constitucionalmente vedado aprovar as normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 380/93, de 15 de Novembro, e que portanto tais normas não são inconstitucionais.
Maria Helena Brito