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Processo n.º 283/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nestes autos, vindos do 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Maia, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, invocando, como fundamento, a recusa de aplicação, por parte do tribunal a quo, do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na sua actual redacção, “na parte em que determina o desentranhamento da contestação, caso o R. não comprove o pagamento da taxa de justiça nos dez dias subsequentes à distribuição”.
2. A presente acção teve início como procedimento de injunção, intentado por A. SA, peticionando a condenação do requerido IAPMEI – Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, IP, aqui recorrido, no pagamento de um valor devido por força de contrato celebrado.
O recorrido apresentou oposição.
Em consequência, os autos foram remetidos à distribuição.
O recorrido não procedeu, porém, ao pagamento da taxa de justiça.
Por decisão de 6 de Abril de 2010, o Tribunal recusou a aplicação do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na redacção introduzida pelo Regulamento das Custas Processuais, na parte em que determina o desentranhamento da contestação, caso o réu não comprove o pagamento da taxa de justiça nos dez dias subsequentes à distribuição, e determinou o cumprimento do artigo 486.º-A do Código de Processo Civil.
A argumentação utilizada é do seguinte teor:
“Tem sido meu entendimento que a alteração introduzida no art. 20º do DL. 269/98, de 01/09, pelo recente Regulamento das Custas Processuais, implica que se considere inaplicável ao processo de injunção o art. 486º A do C. P. Civil.
Com efeito, comparadas as redacções do anterior art. 19º e do actual art. 20º do diploma em causa, retira-se com clareza que:
- na primeira versão do diploma estabelecia-se a consequência do desentranhamento da petição inicial para os casos em que o A. não comprovava ter procedido ao pagamento da taxa de justiça nos 10 dias subsequentes à distribuição do processo como acção;
- na actual versão, tal consequência é estabelecida com carácter genérico, determinando a lei o desentranhamento da 'respectiva peça processual' caso tal pagamento não ocorra.
Assim, o legislador estabeleceu agora, no âmbito do processo de injunção, a mesma consequência para qualquer das partes que não cumpra a obrigação de comprovar o pagamento da taxa de justiça nos 10 dias subsequentes à distribuição - o desentranhamento do respectivo articulado.
Este regime difere do regime geral estabelecido no Código de Processo Civil e aplicável às demais formas do processo.
Neste diploma, a não comprovação do pagamento da taxa de justiça inicial apenas implica o não recebimento da petição inicial (ou a sua posterior rejeição, se a secretaria a receber), concedendo-se ao R. a possibilidade de proceder a tal pagamento, com multa, nos termos do art. 486º A do C. P. Civil, em novo prazo que a lei estabelece.
Existe claramente fundamento para esta diferença de tratamento, consoante a omissão se verifica na parte activa ou passiva da acção.
Com efeito, o desentranhamento da petição inicial (ou o seu não recebimento, no caso das demais formas do processo) não faz precludir o direito do A. que pode, se assim o desejar, propor de imediato nova acção.
No caso do R., pelo contrário, o desentranhamento da sua contestação implica que os seus fundamentos de defesa não possam voltar a ser apresentados, condicionando assim a decisão a proferir à análise apenas dos factos e questões jurídicas apresentadas pelo A. na petição inicial.
Justifica-se assim tratar de forma diferente A. e R., consoante o efeito que o desentranhamento da peça processual possa ter na afirmação dos seus direitos.
Ora, se assim é, não se percebe a equiparação que o novo Regulamento introduziu no âmbito do processo de injunção, estabelecendo a mesma e imediata consequência, quer se trate de omissão do A., quer se trate de omissão do R..
Poder-se-ia adiantar que sendo o processo de injunção uma forma simplificada se teria considerado justificável que ao R. fosse dada apenas uma oportunidade de pagamento, tanto mais que o novo Regulamento estabeleceu que se a parte não estiver representada por Advogado e a sua constituição não for obrigatória, não poderão ser retiradas consequências da falta de pagamento de quaisquer quantias sem que este seja notificado com a advertência das consequências estabelecidas. Contudo, esta norma também é aplicável ao processo comum de declaração e assim, por exemplo, ao processo sumaríssimo, também ele reservado para acção de valor inferior a 5.000,00 euros, justificando-se assim que o regime ora estabelecido para a injunção tivesse sido também estabelecido para aquela forma de processo.
Por outro lado, a simplicidade do processo de injunção é claramente uma ilusão se tivermos em consideração que este pode ser aplicável a acção de qualquer valor, desde que estejam em causa transacções comerciais - DL 32/2003,de 17/02, transformando-se o processo injuntivo em acção ordinária com a apresentação da contestação ou a sua distribuição por frustração de citação do requerido.
Note-se que a escolha da forma do processo, no caso concreto, depende exclusivamente do A. que pode optar pela demanda do R. através do procedimento de injunção ou a forma especial da acção declarativa para cumprimento dos contratos ou o processo comum de declaração, não sendo razoável que a escolha do A. faça diminuir os direitos de defesa do R..
A Constituição da Republica Portuguesa estabelece um direito de acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, no seu art. 20º, que só pode efectivar-se através de um processo equitativo e orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas (vide neste sentido, Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira).
Impõe-se assim, por imperativos constitucionais, recusar a aplicação do citado art. 20º do DL. 269/98, de 01/09, na redacção introduzida pelo Regulamento das Custas Processuais, quando está em causa a omissão de comprovação do pagamento da taxa de justiça pelo R. nos 10 dias subsequentes à distribuição do processo injuntivo como acção, aplicando-se directamente o que dispõe o art. 486º A do C. P. Civil para a verificação de tal omissão.”
É desta decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso, apresentando alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“1. O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público, como obrigatório, 'nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, 72.º, n° 1, alínea a) e n° 3, 75, 75°-A' da LOFPTC”.
2. Vem impugnado o despacho, proferido em 06/04/2010, nos autos de acção especial para cumprimento de obrigação, Proc. n.º 389760/09.0YPRT, do 4.° juízo de competência cível do Tribunal Judicial da Maia, em que é A. a A., S. A., e R. o IAPMEI/IP (fIs. 55).
3. A decisão recorrida 'recusa por inconstitucional a aplicação do artigo 20° do DL 269/98, de 01/09 na sua actual redacção, na parte que determina o desentranhamento da contestação caso o R. não comprove o pagamento da taxa de justiça nos 10 dias subsequentes à distribuição [do procedimento injuntivo como acção] determinando-se o cumprimento do 486°A do C.P. Civil também no âmbito do processo de injunção' (idem).
4. Segundo a 'interpretação normativa' perfilhada na decisão recorrida, o art. 20.°, cit., institui um 'ónus processual' nos termos do qual se o R. não comprovar o pagamento da taxa de justiça nos 10 dias subsequentes à distribuição, do procedimento de injunção como acção, então é desentranhada a sua peça processual de defesa.
5. Fica, assim, segundo o entendimento perfilhado na decisão recorrida, irremediavelmente comprometida a sua oposição à pretensão do requerente da injunção, pois já não terá outra oportunidade para fazer valer as suas razões na subsequente acção declarativa especial, pois não beneficiará da notificação para efectuar o pagamento omitido, acrescido de multa (CPC, art. 486.º-A, n.º 3).
6. Os direitos à protecção pela via judicial e ao processo equitativo estão garantidos pela Constituição (art. 20.°, n.ºs 1 e 4).
7. Neste domínio, o 'legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente protegidos relevantes (…) e, em conformidade, disciplinar o âmbito do processo, a legitimidade, (…) Não é, por isso, incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes ( ... ) Em qualquer caso (...) os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva'.
8. Ora, o efeito desfavorável estabelecido pelo desacatamento deste ónus processual (desentranhamento da peça processual da defesa) é, na 'interpretação normativa' em causa, irreversível.
9. É, portanto, extrema a gravidade desta consequência da lei porque não mais o R. poderá fazer valer as suas razões no processo, quedar-se-á indefeso e a condenação será, nas mais das vezes, inelutável.
10. Atenta a gravidade das consequências ligadas ao desacatamento deste ónus processual, concluímos que, na 'interpretação normativa' perfilhada na decisão recorrida, e no que à peça processual, onde é deduzida a defesa, diz respeito, a disposição do art. 20.°, cit., transgride o aludido princípio da proporcionalidade das limitações do direito de acesso à protecção pela via judicial e ao processo equitativo e, como tal é materialmente inconstitucional (CRP arts. 18.°, n.º 2, 20.°, n.ºs 1 e 4 e 277.º, n.º 1).
11. Todavia, a 'interpretação normativa', em apreço, assenta na premissa que o âmbito de aplicação do art. 20.° respeita à acção subsequente ao procedimento de injunção.
12. Porém, tal premissa não representará a única - nem talvez a melhor interpretação da lei ordinária, a qual aponta no sentido de que o âmbito de aplicação do art. 20.°, cit. está circunscrito ao procedimento de injunção e não se refere, portanto, à subsequente acção declarativa especial.
13. Assim sendo, apenas se aplicaria no caso da omissão da comprovação do pagamento da taxa de justiça pela apresentação de requerimento de injunção (RCP, art. 7.°, n.º 3), pelo que não concorreria inconstitucionalidade no caso dos autos, que respeita à peça processual de defesa do demandado.
14. Portanto, segundo uma 'interpretação conforme à Constituição', o preceituado art. 20.°, cit., deve ser interpretado no sentido de que o desentranhamento da peça processual, ali cominado, não se aplica à falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça pelo R., nos 10 dias subsequentes à distribuição do processo injuntivo como acção declarativa especial (LOFPTC, art. 80.°, n.º 3).
Portanto, deverá, por último, no entender deste Ministério Público, proceder a 'interpretação conforme a Constituição' da norma constante do art. 20.º do DL n.º 269/98, de 28 de Agosto, nos termos propostos e, consequentemente, ser concedido provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida para ser reformada quanto à questão de constitucionalidade, em conformidade com a interpretação fixada.”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
3. O presente recurso tem como objecto a apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de Fevereiro – articulado com o disposto no n.º 4 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais (implicitamente pressuposto) – segundo a qual, caso o réu não comprove o pagamento da taxa de justiça, nos 10 dias subsequentes à distribuição do procedimento injuntivo como acção, é desentranhada a peça processual de defesa, ou seja, a oposição, que valerá como contestação no âmbito de tal acção.
4. Antes de entrarmos na análise do concreto preceito identificado supra, impõe-se contextualizar o seu surgimento e inserção sistemática, no âmbito do diploma legislativo de que faz parte.
O Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, surgiu no contexto da procura de vias de simplificação processual e desjudicialização, como resposta ao aumento exponencial de acções de reconhecimento e cobrança de dívidas, intentadas sobretudo por grandes empresas comerciais, com padrões de contratualização abrangendo múltiplos consumidores.
Foi objectivo deste diploma criar, no domínio do cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior ao da alçada dos tribunais de 1.ª Instância, um modelo de acção, inspirado no figurino da acção sumaríssima, mas com maior simplificação, em consonância com a corrente simplicidade das pretensões subjacentes, frequentemente caracterizadas pela não oposição dos demandados.
Especificamente no que concerne ao procedimento de injunção – que havia sido instituído pelo Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, com o desiderato de facultar aos credores de obrigações pecuniárias a obtenção de títulos executivos, de forma mais simples e célere – o diploma legislativo em análise teve como finalidade incentivar a sua utilização, o que implicou a reforma de aspectos processuais que vinham merecendo críticas doutrinárias, nomeadamente quanto à dificuldade de articular a estrutura da providência e a necessidade de intervenção judicial, para decisão de questões incidentais.
As virtualidades do procedimento de injunção, no tocante à rapidez de resposta a incumprimentos de obrigações pecuniárias – facultando que o credor fique munido de título executivo, de forma simplificada e célere –, constituíram motivação para o alargamento da sua aplicabilidade à obrigação de pagamento decorrente de transacções comerciais entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, independentemente do valor, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.
Ficou assim ultrapassada a originária limitação quantitativa do recurso ao procedimento de injunção, que se cingia aos contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância. Posteriormente, tal valor genérico foi alterado para “valor não superior à alçada da Relação” (ex vi Decreto-Lei n.º 107/2005, de 1 de Julho) e, depois, para “valor não superior a (euro) 15.000” (ex vi Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).
Relativamente à concreta alteração legislativa que introduziu a actual redacção do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, foi claramente motivada pela necessidade de adequar a regulação, em matéria de custas, ao novo regime decorrente do Regulamento das Custas Processuais.
Da presente síntese ressalta que o âmbito de aplicação do procedimento de injunção foi progressivamente alargado, em virtude das sucessivas alterações legislativas, podendo abranger pretensões de pagamento de valores consideráveis, mesmo superiores à alçada da Relação, desde que estejam em causa transacções comerciais, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 32/2003 de 17 de Fevereiro.
Podemos, assim, concluir que o regime simplificado de tramitação, pressuposto neste procedimento, encontra a sua fundamentação, cada vez mais, na expectativa de simplicidade jurídica da pretensão substantiva, não correspondendo a uma menor importância dos interesses pecuniários envolvidos, os quais podem determinar a posterior transmutação do procedimento injuntivo numa acção declarativa de condenação, com processo especial ou comum, nomeadamente sob a forma ordinária, em função do valor da causa.
5. Concentrando agora a nossa atenção no preceito em que se centra o presente recurso, observemos a sua literal estatuição:
“Na falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, é desentranhada a respectiva peça processual.”
A interpretação normativa em apreciação, no presente recurso, pressupõe que o âmbito objectivo de aplicação do aludido artigo 20.º se estende, não apenas ao procedimento de injunção, mas igualmente à acção declarativa de condenação em que aquele procedimento se tenha transmutado, em consequência da dedução de oposição.
É que, no caso de o procedimento de injunção passar a seguir como acção, em virtude de o requerido ter apresentado oposição, é devido o pagamento de taxa de justiça pelo autor e pelo réu, no prazo de dez dias, contado desde a distribuição, nos termos gerais fixados no Regulamento das Custas Processuais (n.º 4 do artigo 7.º).
Interpretado o preceito em análise nos termos desenvolvidos na decisão recorrida, resulta que a omissão de comprovação do pagamento da taxa de justiça pelo réu redunda no imediato desentranhamento da contestação, sem qualquer solução intermédia, nomeadamente de concessão de prazo suplementar para supressão da omissão, nos termos previstos no artigo 486.º-A, n.ºs 3 a 6, do Código de Processo Civil.
Definida tal interpretação como objecto do presente recurso, será sobre a mesma que incidirá a apreciação da alegada desconformidade com os parâmetros constitucionais, especificamente sobre o direito a um processo equitativo, como corolário do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP).
6. Consubstanciando um direito fundamental, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva corresponde, concomitantemente, a uma garantia de protecção dos restantes direitos fundamentais, pela via judiciária, constituindo, por isso, um alicerce estruturante do Estado de Direito democrático.
Representa a consagração da possibilidade de defesa jurisdicional de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos, conferindo-lhes assim condições de efectividade prática.
No presente caso, é a vertente da garantia dum processo equitativo que assume crucial importância como alvo de análise, por corresponder, de entre as várias dimensões em que a tutela jurisdicional efectiva irradia, àquela que surge como potencialmente beliscada pela interpretação normativa posta em crise.
O princípio da equitatividade é expressamente referido no n.º 4 do artigo 20.º da Lei Fundamental, que dispõe o seguinte:
“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”
É densificado por vários subprincípios, entre os quais se conta o direito de defesa e direito ao contraditório, traduzido na possibilidade de cada uma das partes apresentar a sua versão e os seus argumentos, de facto e de direito, oferecer provas e pronunciar-se sobre os argumentos e material probatório carreado pela parte contrária, antes da prolação da decisão sobre o litígio. Corresponde, pois, tal direito a uma garantia de equilíbrio e de igualdade de armas entre os litigantes, que vêem constitucionalmente assegurada a possibilidade de exercerem influência efectiva no desenvolvimento do processo, que se pretende que conduza a uma decisão materialmente justa do litígio.
7. Não obstante a ampla liberdade reconhecida ao legislador, no âmbito da definição da tramitação processual, é inegável que a garantia do contraditório, de que decorre a proibição da indefesa, constitui um limite vinculativo incontornável.
Desde logo, e no segmento que aqui nos interessa, as cominações e preclusões, associadas ao incumprimento de determinado ónus processual, não podem revelar-se funcionalmente desajustadas
O princípio do contraditório, como componente do direito a um processo equitativo, terá de manter a sua função operante num conteúdo mínimo, seja qual for a estrutura processual em que se desenhe o acesso à tutela judiciária.
Apesar de se reconhecer a importância de uma estrutura processual deliberadamente simplificada e célere, vocacionada para os objectivos de política legislativa que presidiram ao regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, é imperioso garantir que o bem jurídico celeridade não comprometa, de forma desproporcional, o princípio do contraditório, sob pena de violação incomportável do acesso à tutela jurisdicional efectiva.
A propósito do equilíbrio necessário entre a celeridade processual e a justiça da decisão, em termos transponíveis para a presente situação, refere C. Lopes do Rego:
“As exigências de simplificação e celeridade – assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil – terão, pois, necessariamente que implicar um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador infraconstitucional – podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes ou a adopção de “mecanismos que desencorajem as partes de adoptar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo”, sem, todavia, aniquilar ou restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo e contraditório que lhe estão subjacentes, como instrumentos indispensáveis à obtenção de uma decisão jurisdicional – não apenas célere - mas também justa, adequada e ponderada” (in “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 855).
Do exposto resulta que uma falha processual – maxime que não acarrete, de forma significativa, comprometimento da regularidade processual ou que não reflicta considerável grau de negligência - não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitectura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efectividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade a e relevância - e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes.
Transpondo as considerações expendidas para a interpretação normativa em apreciação, teremos de concluir que associar ao incumprimento de um ónus processual, relativo ao pagamento de custas, a consequência, imediata e irreversível, de desentranhamento da contestação – impossibilitando a consideração das razões de facto e de direito, exceptuando as de conhecimento oficioso, aduzidas em tal peça processual - é manifestamente desproporcional, por acarretar o gravoso e inevitável resultado de impossibilitar a parte incumpridora de fazer valer a sua posição no litígio, em termos determinantes para o desfecho ou dirimição definitiva dos direitos ou interesses controvertidos. Existe, de forma ostensiva, uma restrição inconstitucionalmente intolerável do direito de contraditório, não se assegurando o tratamento equitativo das partes, nem a efectividade da tutela jurisdicional
É de notar que tal solução interpretativa era expressamente afastada na anterior redacção do preceito relativo a custas, no âmbito do mesmo diploma legislativo.
Na verdade, dispunha o artigo 19.º que, se o procedimento de injunção seguisse como acção, seriam devidas custas, calculadas e liquidadas nos termos do Código das Custas Judiciais, devendo as partes efectuar o pagamento da taxa de justiça inicial no prazo de dez dias a contar da data da distribuição, sendo que, sem prejuízo do disposto no Código de Processo Civil, relativamente à contestação, na falta de junção, pelo autor, do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial no prazo referido de dez dias, seria desentranhada a respectiva peça processual.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se, no Acórdão n.º 625/03 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt) sobre a diferenciação de consequências, para autor e réu, do não pagamento da taxa de justiça inicial, no âmbito da acção em que se converteu o procedimento de injunção.
Em tal aresto, refere-se o seguinte:
“Ponto é saber se esse diverso tratamento afronta normas ou princípios constitucionalmente consagrados.
(…) Num primeiro passo, mister é que se não passe em claro que o desentranhamento do requerimento de injunção não consequencia irremissivelmente que o seu autor deixe de ter acesso aos tribunais. Tal desentranhamento, na verdade, configura uma figura de extinção da instância, desta forma não precludindo a possibilidade de aquele autor vir, novamente, quer através de novo procedimento de injunção, quer através de nova acção, fazer valer o direito que se propôs com o anterior procedimento.
(…)
Depois, há que atentar que o não pagamento pelo réu da taxa inicial quando contesta a acção resultante da frustração do procedimento injuntivo, também não é desprovido de consequências, visto que um dos requisitos de atendimento da contestação é justamente o do pagamento de uma taxa equivalente ao dobro da em falta.
Trata-se, assim, de sancionamentos diversos que não deixam de atender ao diferente posicionamento do autor e do réu da acção em que se «converteu» o procedimento de injunção. E diz-se posicionamento diverso, já que, se porventura a consequência do não pagamento da taxa de justiça inicial por parte do réu quando contesta a acção fosse idêntica à prevista para o autor, o desentranhamento da contestação acarretaria a aplicação dos efeitos cominatórios decorrentes da falta de contestação, como óbvias repercussões no mérito da causa (cfr. artº 2º do Regime), sendo vedado ao réu, posteriormente (e não interessará aqui entrar em linha de conta com as hipóteses em que é possibilitado o recurso de revisão), o acesso ao tribunal para poder exercer de forma efectiva o seu direito de defesa.
Esta diferenciação de situações aponta, pois, para que se possa dizer que a estatuição de diversos regimes quanto às consequências do não pagamento da taxa de justiça por parte do autor e por parte do réu na acção a que se reportam os artigos 16º e 1º e seguintes do Regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 269/98, tem um fundamento material e, assim, se não apresenta como arbitrária (…)”
Os argumentos aduzidos no aludido acórdão, no tocante à posição do réu, corroboram o juízo já formulado, quanto à gravidade das consequências da interpretação normativa que apreciamos.
Tal interpretação, recusada pelo tribunal a quo, conduz, de facto, a um desproporcionado comprometimento do núcleo essencial do princípio do contraditório, como dimensão constitutiva crucial de um due process of law.
8. Concluímos, desta forma, que é inconstitucional a interpretação normativa do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 34/2008 de 26 de Fevereiro – articulado com o disposto no n.º 4 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais – segundo a qual a falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça, devida pelo réu, nos dez dias subsequentes à distribuição do procedimento injuntivo como acção, acarreta o imediato desentranhamento da peça processual de defesa, que valeria como contestação no âmbito de tal acção, por tal interpretação comportar restrição desproporcional do princípio do contraditório, integrante do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da CRP.
Chegados a este ponto, cumpre decidir se este Tribunal deverá quedar-se por emitir o presente juízo de inconstitucionalidade, restrito a determinada e circunscrita interpretação normativa – convocada pelo tribunal a quo, como fundamento da recusa de aplicação – ou se – como defende o Ministério Público, nas suas alegações - deverá proferir uma decisão interpretativa, em sentido próprio.
O n.º 3 do artigo 80.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, LTC) admite a possibilidade de prolação de decisões interpretativas. Porém, o uso de tal faculdade deverá ser parcimonioso, só podendo ser utilizado em situações manifestamente descabidas.
Nestes termos, decide-se julgar inconstitucional a interpretação normativa do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de Fevereiro – articulado com o disposto no n.º 4 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais – segundo a qual, caso o réu não comprove o pagamento da taxa de justiça, nos 10 dias subsequentes à distribuição do procedimento injuntivo como acção, é logo desentranhada a peça processual de defesa, que valeria como contestação no âmbito de tal acção.
III - Decisão
9. Pelo exposto, decide-se:
- julgar inconstitucional a interpretação normativa do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de Fevereiro - articulado com o disposto no n.º 4 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais - segundo a qual a falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça devida pelo réu, nos dez dias subsequentes à distribuição do procedimento injuntivo como acção, acarreta o imediato desentranhamento da peça processual de defesa, que valeria como contestação no âmbito de tal acção, por tal interpretação violar o princípio do contraditório, integrante do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da CRP;
- e, em consequência, julgar improcedente o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Setembro de 2011. – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.