Imprimir acórdão
Proc. nº 746/99
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório.
1. A (ora recorrida) instaurou execução de letra contra B (ora recorrente), para a qual este foi citado em 23 de Dezembro de 1997.
2. Em 26 de Janeiro de 1998, o executado remeteu, por correio registado, a petição inicial de embargos à execução, a qual foi recebida no tribunal no dia seguinte. Concluso o processo ao juiz, foi determinado à secretaria que cumprisse o disposto no n.º 6 do artigo 145º do Código de Processo Civil, por os embargos terem sido apresentados fora do prazo de 20 dias.
3. Em cumprimento daquela determinação a secção de processos remeteu, em 10 de Março de 1998, guias ao embargante, para pagamento da multa, tendo este, em 12 do mesmo mês, requerido que lhe fosse anulada a multa porque, em seu entender, a petição de embargos tinha sido apresentada em tempo.
4. O M.º Juiz de 1ª instância indeferiu o requerido, por considerar que o prazo terminara em 23 de Janeiro de 1998.
5. Notificado deste despacho, por carta de 15 de Abril de 1998, o embargante pediu, em 17 do mesmo mês, a redução da multa, alegando carência de meios económicos.
6. Também este requerimento foi indeferido, por despacho de 30 de Abril de 1998
(fls. 41), por ter sido entendido que o requerimento em que se solicitava a dispensa ou redução da multa deveria ter sido apresentado dentro do prazo para o pagamento da mesma. Na sequência foram ainda rejeitados os embargos, por se ter considerado que aquele requerimento, porque indeferido, era irrelevante, não implicando a suspensão do prazo de pagamento da multa.
7. O embargante, inconformado, agravou para a Relação de Lisboa do despacho que indeferiu o pedido de redução da multa e do despacho que rejeitou os embargos. A concluir a sua alegação, e com relevância para o presente recurso de constitucionalidade, disse, designadamente, o seguinte (fls. 52 v.):
'(...) E) Qualquer que seja a decisão, não pode o ora agravante deixar de invocar aqui a inconstitucionalidade dos n.ºs 5 e 6 do art. 145º do CPC, na parte em que exigem, a quem necessita de apoio judiciário por graves necessidades económicas
– caso do ora agravante – o pagamento imediato das multas aí previstas, porquanto, estando a prática de actos de defesa dos seus direitos condicionada ao pagamento das multas «sub judice», a impossibilidade de pagamento por falta de meios económicos, viola o art. 20º da CRP, pelo que devem tais normas ser desaplicadas, na parte em que exige o pagamento imediato da multa, aplicando-se o regime geral de pagamento das multas processuais (arts. 116º e segs. Do CCJ)'.
8. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 21 de Janeiro de 1999 (fls.
57 a 59), negou provimento ao agravo.
9. Novamente inconformado o embargante agravou para o Supremo Tribunal de Justiça tendo, a concluir a sua alegação, dito, designadamente, o seguinte:
'(...) M) O artigo 145º, n.ºs 5 e 6 na parte em que exigem imediato pagamento da multa neles prevista é inconstitucional, na medida em que, seguindo o entendimento de que o prazo para o pagamento não se suspende, como foi o da 1ª instância e do Vº TRL, o pagamento imediato limita de forma séria o direito de defesa e o acesso aos tribunais por parte dos carentes económicos, já que deixando tal apreciação ao julgador, sempre este, por mero lapso até, pode fazer precludir um direito consagrado na CRP (art. 20º), como se verifica «in casu». N) Devem desaplicar-se as normas previstas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 145º do CPC, na parte em que exigem o pagamento imediato da multa neles prevista à parte que litiga com apoio judiciário, na medida em que tal exigência de pagamento imediato, ao impedir o acesso à justiça e aos tribunais por falta de pagamento da referida multa, no que respeita à parte que não paga por falta de meios económicos, viola o artigo 20º da CRP, como supra já referido.
(...)'.
10. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17 de Junho de 1999 (fls. 76 a
78), negou provimento ao agravo. Sobre a alegada inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, ponderou aquele Tribunal:
'(...) Não há qualquer inconstitucionalidade material na forma como foram aplicados os n.ºs 5 e 6, do citado art. 145º, CPC. Não foi desconsiderada a alegada falta de meios económicos do recorrente, em termos de lhe ficar impedido o acesso à justiça, e assim violado o art. 20º, Const. O que se passou é que o recorrente não fez valer, na devida oportunidade, a alegada carência económica, pois só tardiamente, extemporaneamente, é que veio invocar aquela insuficiência, lembrando, então, que até pedira apoio judiciário.
(...)'.
11. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso. Nos termos do respectivo requerimento de interposição o recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade 'dos n.ºs 5 e 6 do art. 145º do Código de Processo Civil, por falta da imperiosa ressalva de «excepto quando o acto seja praticado por pessoa manifesta e comprovadamente carenciada em termos económicos»', por alegada violação do artigo 20º, n.º 2 da Constituição.
12. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'A) O Recorrente ao praticar o acto estava convencido da sua tempestividade (o primeiro dia de contagem era um DOMINGO e, por força de habituação desde 1929, olvidou-se, aliás, o mesmo acontecendo em múltiplos casos, que, terminado as férias de Natal em 3.01, Sábado, o dia 4.01, Domingo, não contaria, iniciando-se o prazo em 5.01, Segunda-feira). B) Motivo pelo qual, aliás, em consonância com a secção de processos, se requereu de imediato a anulação da multa. C) Sobre aquele requerimento foi prolado despacho de indeferimento, pelo que e de seguida se impetrou pedido de redução e/ou isenção de multa. D) A este responde o M.º Juiz dizendo que o requerimento foi apresentado fora de prazo, pelo que o indefere ao mesmo tempo que rejeitava liminarmente os deduzidos embargos de executado. E) Interposto recurso de agravo, percorridas foram as instâncias, sem êxito. F) O recorrente, porque carenciado em termos económicos, não tinha meios de proceder ao pagamento da multa no prazo de 10 dias, já que e segundo o entendimento do M.º Juiz de 1ª instância, o primeiro requerimento não suspendeu o decurso do prazo. G) Por tal, ficou assim o recorrente impedido de defender-se, obviamente por falta de meios, situação esta que viola frontalmente o art. 20º da CRP. H) Assim dito, temos por certo que os n.ºs 5, 6 e 7 do artigo 145º do CPC, quando literalmente interpretados podem conduzir, como é o caso, a situações objectivas de desconformidade com a ordem jurídico-constitucional. I) Como bem se vê dos autos, ao recorrente foi negado o direito de defesa só porque a sua situação económica não lhe permitiu pagar a liquidada multa. J) Ora, conhecendo o M.º Juiz de 1ª instância a carência económica do recorrente
– vd. A prova do pedido de apoio judiciário -, vedado lhe estava o poder de sancionar a parte carente, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 145º, do CPC, mas sim e de forma oficiosa lançar mão devia, do n.º 7, do predito normativo, que conduziria inequivocamente à isenção de multa, sob pena de assim não procedendo, violar, como destarte violou, o princípio da igualdade material (vd. Art. 13º, da CRP). K) Agindo como se agiu em 1ª instância –talqualmente como nos tribunais de recurso – temos por segura a violação do art. 20º da CRP, por ter sido o Recorrente dessa forma colocado na contingência de ver cerceado o seu direito de defesa e de acesso aos tribunais. L)Entende-se ainda violado o princípio do Estado de Direito Democrático, porquanto, sendo da exclusiva responsabilidade do tribunal o alongar do prazo para a tomada de decisões, não pode o mesmo opor às partes a caducidade do direito para cujo exercício se exige uma determinada conduta, só não adoptada em tempo útil, porque dependente da decisão entretanto protelada'.
13. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação.
14. Por determinação do relator, foram as partes notificadas do seguinte parecer, de fls. 98 a 100:
'1. O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, nomeadamente, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada; b) e que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado no julgamento do caso, como ratio decidendi, a norma – ou interpretação normativa – cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente durante o processo. Ora, segundo parece, isso não terá acontecido nos presentes autos.
2. No requerimento de interposição do recurso refere o recorrente pretender ver apreciada a inconstitucionalidade da norma que se extrai 'dos n.ºs 5 e 6 do art.
145º do Código de Processo Civil, por falta da imperiosa ressalva de «excepto quando o acto seja praticado por pessoa manifesta e comprovadamente carenciada em termos económicos»', por alegada violação do artigo 20º, n.º 2 da Constituição'. A verdade, porém, é que não foi exactamente esta – mas outra – a dimensão normativa dos n.ºs 5 e 6 do art. 145º do Código de Processo Civil que foi, durante o processo, questionada pelo recorrente. Para demonstrar cite-se aqui a conclusão da alegação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em que o recorrente se refere a uma alegada interpretação normativa inconstitucional daquele preceito. Refere, aí, o recorrente:
'M)O artigo 145º, n.ºs 5 e 6 na parte em que exigem imediato pagamento da multa neles prevista é inconstitucional, na medida em que, seguindo o entendimento de que o prazo para o pagamento não se suspende, como foi o da 1ª instância e do Vº TRL, o pagamento imediato limita de forma séria o direito de defesa e o acesso aos tribunais por parte dos carentes económicos, já que deixando tal apreciação ao julgador, sempre este, por mero lapso até, pode fazer precludir um direito consagrado na CRP (art. 20º), como se verifica «in casu». N) Devem desaplicar-se as normas previstas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 145º do CPC, na parte em que exigem o pagamento imediato da multa neles prevista à parte que litiga com apoio judiciário, na medida em que tal exigência de pagamento imediato, ao impedir o acesso à justiça e aos tribunais por falta de pagamento da referida multa, no que respeita à parte que não paga por falta de meios económicos, viola o artigo 20º da CRP, como supra já referido'. (Sublinhados nossos). Do confronto das transcrições supra feitas resulta que, durante o processo e no requerimento de interposição do recurso, o recorrente não coloca exactamente a mesma questão. Enquanto que ali questionou a inconstitucionalidade 'das normas previstas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 145º do CPC, na parte em que exigem o pagamento imediato da multa neles prevista à parte que litiga com apoio judiciário', no requerimento de interposição do recurso questiona-se a inconstitucionalidade dos mesmos preceitos, por falta da imperiosa ressalva de
«excepto quando o acto seja praticado por pessoa manifesta e comprovadamente carenciada em termos económicos»'.
3. Acresce, no mesmo sentido, que a decisão recorrida também não aplicou o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 145º do CPC na exacta dimensão cuja inconstitucionalidade fora questionada pelo recorrente durante o processo: i.e., em termos de exigir o pagamento imediato da multa neles prevista à parte que litiga com apoio judiciário. O que na decisão recorrida se decidiu foi, diferentemente, que o recorrente deveria ter invocado e solicitado, dentro do prazo previsto para o pagamento da multa, a sua redução ou dispensa.
4. Por tudo o exposto, entendemos ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso, por falta de pressupostos legais de admissibilidade. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil, (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias.'
15. Notificadas as partes, veio o recorrente responder nos seguintes termos:
'1) Ressalvado o merecido respeito por opinião diferente, não pode o Recorrente concordar com a solução de 'não conhecimento do recurso'; Com efeito
2) Sendo pressupostos da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, o levantamento da questão da inconstitucionalidade, que se pretenda ver apreciada, e que esta tenha sido suscitada durante a tramitação processual, isto por um lado; E por outro,
3) Que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado no julgamento do caso, como 'ratio decidendi' a norma, ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo Recorrente durante o percurso dos autos. Ora,
4) Dúvidas não restam que, ambos os pressupostos, se encontram preenchidos.
5) O que esteve sempre em causa, aliás, como dos autos se pode ver e ler, foi o facto do pagamento imediato da multa (n.ºs 5 e 6, do art. 145º do CPC), ser determinante no sentido do ora Recorrente, porque carente económico (tem Apoio Judiciário) e, destarte, não lhe ter sido possível proceder ao seu pronto e imediato pagamento, ver negado o direito de se defender em Juízo, com base no seu estado de carente económico, o que por si só viola, e violou, para além do mais, o art. 20º, n.º 2, da CRP.
6) É pois esta a questão de mérito a apreciar e, como bem se entende, a expressão utilizada no requerimento de interposição de recurso ... 'excepto quando o acto seja praticado por pessoa manifesta e comprovadamente carenciada em termos económicos'..., não mais representa do que uma das várias redacções a oferecer ao n.º 6, do art.145º, do CPC, para lhe retirar a inconstitucionalidade.
7) A inconstitucionalidade reside tão só e apenas no facto de, um carente económico, porque não dispõe de imediato de determinada quantia, PERDE O DIREITO DE SE DEFENDER EM JUÍZO.
8) E nem se diga que o n.º 7, do art. 145º, do CPC, 'disfarça' a inconstitucionalidade, tanto mais que, esse poder/dever, não pode ficar nas mãos do juiz, mas sim, consagrado na lei.
9) A multa pode e deve manter-se, mas em caso de carente económico (aquele que litiga com Apoio Judiciário) só porque não dispõe de meios para de imediato proceder ao seu pagamento, nem por isso lhe pode ser negado o direito à sua defesa, sob pena de violação do art. 20º, n.º 2, da CRP.
10) Aqui reside pois, a inconstitucionalidade dos n.ºs 5 e 6, do art. 145º, do CPC, quando nega, de forma peremptória, o direito de defesa em Juízo, só porque não foi possível ao Recorrente, pagar a multa, de pronto e no próprio dia, porque dinheiro não tinha (o Apoio Judiciário serve esse desiderato – recurso aos tribunais, mesmo para os pobres).
11) Estamos certos de ter explicitado o que eventualmente não tenha sido dito com a clareza bastante; [...]'.
16. A recorrida, por seu turno, pronunciou-se no sentido do não conhecimento do recurso, pelas razões aduzidas no parecer. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
17. Em parecer fundamentado e notificado às partes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil, sustentou o Relator do processo a impossibilidade de conhecer do objecto do presente recurso, por nem ter o recorrente suscitado, durante o processo, exactamente, a mesma dimensão normativa dos n.ºs 5 e 6 do art. 145º do Código de Processo Civil cuja inconstitucionalidade pretendia agora ver apreciada, nem ter a decisão recorrida aplicado a dimensão normativa dos n.ºs 5 e 6 do art. 145º do Código de Processo Civil que foi, durante o processo, questionada pelo recorrente. Ora, verifica-se que - o que é decisivo para a questão do conhecimento do recurso - a decisão recorrida, efectivamente, não aplicou, conforme se demonstrou no parecer do Relator, a dimensão normativa dos n.ºs 5 e 6 do art.
145º do Código de Processo Civil que foi, durante o processo, questionada pelo recorrente. As razões então invocadas no ponto 3 do parecer - que em nada são abaladas pela resposta do recorrente - merecem a inteira concordância do Tribunal, pelo que agora apenas resta, por remissão para aquela fundamentação, decidir no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
III. Decisão Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta. Lisboa, 28 de Março de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida