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Proc. n.º 620/02 Acórdão nº 138/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Rede Ferroviária Nacional, REFER, E.P., intentou acção comum de condenação com processo sumário contra A, alegando, entre o mais, que o réu efectuara determinadas construções em contravenção com o Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto, e pedindo que o réu fosse condenado a demoli-las.
Na contestação (fls. 11 e seguintes), A sustentou a inconstitucionalidade orgânica e material do artigo único do Decreto n.º 48.594, de 26 de Setembro de 1968 [por lapso, referiu-se então ao Decreto n.º 48.554] e os artigos 1º e 2º do Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto.
2. Por sentença de 12 de Janeiro de 2001 (fls. 19 e seguintes), o juiz do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Setúbal julgou a acção procedente, desatendendo as suscitadas questões de inconstitucionalidade.
3. Inconformado, A interpôs recurso de apelação da mencionada sentença
(fls. 29), tendo nas alegações respectivas (fls. 40 e seguintes) concluído do seguinte modo:
'1º- O Decreto Regulamentar 42/80 tinha carácter temporário, como resulta do artigo 3º, e já caducou a sua vigência nos termos do artigo 7º do C.C.
2º- A Refer não tinha nem tem, segundo aquele Decreto, o direito de exigir a demolição de construções feitas em contravenção do Decreto 42/80 (este direito, se existir pertence ou à Câmara ou ao Estado):
3º- A construção de um muro não é acto abrangido pela proibição do Decreto Regulamentar 42/80.
4º- A proibição de construir, não implica demolição da obra (sanção não prevista), e apenas relevará para efeitos de ser negada indemnização pelas construções (feitas em violação da lei), no caso de futura e hipotética expropriação;
5º- Haveria abuso de direito no pedido de demolição do armazém, já que durante a sua construção a Refer não a embargou, e essa construção, cujo limite poente entra uns escassos centímetros na zona non aedificandi, não causa prejuízo à Refer.
6º- Não podem criar-se ónus sobre a propriedade privada (servidão de não construção) sem prever o pagamento de indemnizações razão pela qual todos os artigos do Decreto 42/80, bem como o parágrafo único [assim, no original] do Decreto Lei 48.594 de 26/09/68, viola o artigo 62 da Constituição.
7º- O Decreto Regulamentar seria inconstitucional se estipulasse que em beneficio da Refer, durante 10 anos não podiam ser feitas edificações no país.
8º- É também inconstitucional, se o seu âmbito não é tão alargado, mas restringe
às propriedades que circundam a linha do Sado a possibilidade de construção, sem a previsão de indemnizações;
9º- O artigo 7º do C.C. como já dissemos determina a caducidade da vigência do Decreto sendo certo que o diploma se encontra completamente ultrapassado já que as razões constantes do preâmbulo, que determinaram a sua publicação estão ultrapassadas, pois retrocedeu o tráfego de passageiros e de mercadorias.
10º- A douta sentença violou por erro de interpretação o direito, designadamente todos os artigos no Decreto 42/80 e o artigo único do Decreto 48.594 de
26/09/68.'
Nas contra-alegações (fls. 48 e seguintes), a autora sustentou a não inconstitucionalidade dos diplomas em causa (3ª conclusão).
4. Por acórdão de 13 de Junho de 2002 (fls. 66 e seguintes), o Tribunal da Relação de Évora negou provimento à apelação, confirmando a sentença recorrida.
Nesse acórdão, afastou-se a alegada inconstitucionalidade orgânica, com os seguintes fundamentos:
'[...] Resulta do Decreto Regulamentar n° 42/80, de 22/08 que «até à aprovação de planos ou anteprojectos de ampliação das infra-estruturas na linha do Sado, será considerada área ‘non aedificandi’ as faixas de terreno confinantes à esquerda e
à direita desta linha férrea, entre os quilómetros 17,200 e 43,500, conforme os limites e as distâncias expressos nos desenhos nos L-003004, L0030005, L-003006, L0030007, L0030008, L-003009, L0030010 anexos a este diploma e referidos ao eixo da via actual, também descrito no quadro junto». E no quadro referido resulta estabelecido que entre os quilómetros 25,600 e
27,000 o terreno a declarar como área «non aedificandi» é de 20 metros para o lado esquerdo e de 20 metros para o lado direito. Zona de exclusão em que se enquadra o terreno dos autos, onde o R. realizou as construções referidas. Consta do preâmbulo que as disposições normativas do Decreto Regulamentar 42/80 são decretadas ao abrigo do art. 202°, al. c) da Constituição (que atribui competência ao Governo para fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis) e no art. 30°, n° 4 do Decreto Lei n° 39.780, de 21/08/54, na redacção que lhe foi dada pelo artigo único do DL n° 48.594, de 26/09/68. E o art. 30°, n° 4 determina a competência do Governo para em casos especiais em que a segurança de caminhos de ferro o exija ou em que se preveja a necessidade de ampliação da sua infra-estrutura, fixar distância superior à indicada nos nºs
1 e 2 do mesmo diploma, aumentando assim a área «non aedificandi» inicialmente ali prevista. Não se vislumbra assim a inconstitucionalidade orgânica apontada pelo R., já que o Decreto Regulamentar n° 42/80, de 22/08, visou apenas desenvolver, de harmonia com o art. 112°, n° 7 da CRP, a lei que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão e que in casu foi originariamente, como se referiu, o Decreto Lei n° 39.780, de 21/08/54, com posterior alteração efectuada pelo Decreto Lei n° 48.594, de 26/09/68. Assim, não se pode invocar a inconstitucionalidade orgânica apontada com fundamento na violação do art. 165°, n° 1, al. b) da CRP, aprovada posteriormente àqueles diplomas, por força do supra referido princípio «tempus regit actum».
[...].'
Quanto à invocada inconstitucionalidade material, decidiu o Tribunal da Relação de Évora:
'[...] a inconstitucionalidade material invocada com fundamento no facto de o citado Decreto Lei, no seu art. 30°, n° 4, estabelecer a limitação ao direito de propriedade do R., sem pagamento de qualquer indemnização, por violação do art.
62°, n° 2 da CRP, também não se verifica, porquanto, podendo discutir-se a constitucionalidade de tal preceito, na parte em que aí se exclui a possibilidade de indemnizar, não pode contudo considerar-se esta situação semelhante à que ocorria com o art. 3°, n° 2 do Cod. Expropriações de 1976 (que foi declarado inconstitucional por aí se excluir a possibilidade de indemnização
– Ac. n° 262/93, in DR, II Série, de 21/07/93), na medida em que por um lado não se trata aqui de transferir a propriedade da faixa de terreno para o Estado sem indemnizar (o que seria comparável ao enriquecimento sem causa) e por outro o que existe é uma limitação de cariz social do direito de propriedade.
É que o direito de propriedade não pode, hoje em dia e cada vez mais, ser considerado um direito absoluto, nomeadamente no que concerne às edificações que se pretendam implantar, na medida em que há que obedecer a regras de planeamento, existindo limites para a volumetria, limitações quanto ao número de andares, aspectos estéticos, etc., e nem por isso tais regras são inconstitucionais ou pode o proprietário de um terreno onde só se permite a construção de vivendas pedir indemnização por estar impedido de construir um arranha-céus.
[...].'
5. Deste acórdão interpôs A recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 81):
'[...] O recurso é interposto ao abrigo do artigo 70, nº 1, al. b) da Lei 28/82 de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei 85/89 de 07/09. Pretende-se que seja apreciada a inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto-Lei 42/80 (artigos 1º, 2º e 3º) bem como do parágrafo único [assim, no original] do Decreto-Lei 48.594 de 26/09/68. Tais normas violam o artigo 62, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa; Impõem restrições à construção, em favor de particulares (Refer) sem se prever qualquer indemnização. Por isso, todas as normas citadas são inconstitucionais. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada na contestação apresentada pelo ora recorrente, e na alegação do recurso de apelação.
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 83.
Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 85 e seguintes), o recorrente concluiu do seguinte modo:
'1º- Os artigos 1º e 2º do Decreto Regulamentar 42/80 de 22/08, e o § único do D.L. 48.594 de 26/09/68 prevêm a constituição de uma servidão non aedificandi, que onera o prédio do recorrente, sem qualquer indemnização.
2º- A lei civil (1305) assegura o gozo pleno e exclusivo do direito de propriedade ao recorrente.
3º- As normas citadas em 1º violam o artigo 62, nº 1 e 2 da Constituição, pelo que a decisão a proferir não pode ignorar essa inconstitucionalidade.'
A recorrida também alegou (fls. 89 e seguintes), tendo assim concluído:
'a) Deste modo, e pelas razões expostas em 1 e 2 não se verifica a invocada inconstitucionalidade do art. único do Decreto nº 48.594 de 26/09/68 e do Decreto Regulamentar nº 42/80 de 22/08. b) Pelo que, não deverão ser atendidos os pedidos de inconstitucionalidade formulados pelo recorrente. c) No entanto, e só por mera cautela sempre se dirá que a REFER E.P., não poderá vir ser afectada por qualquer ónus decorrente de um do Decreto Regulamentar
42/80 de 22/08 [assim, no original], já que, d) Esse acto legislativo decorre do interesse público no âmbito dos transportes ferroviários, prosseguido pelo Estado Português, tendo em vista os superiores interesse do povo e da Nação.'
Cumpre apreciar.
II A) Delimitação do objecto do recurso
6. Tal como resulta do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal (supra, 5.), o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional de todas as normas do Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto, bem como do artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594, de 26 de Setembro de 1968, face ao disposto no artigo 62º, n.º s 1 e 2 da Constituição.
Nas alegações (supra, 5.), todavia, e no que diz respeito ao Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto, o recorrente indica apenas as normas dos artigos 1º e 2º.
Isto significa que o recorrente restringe o objecto do presente recurso às normas dos artigos 1º e 2º do Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto, e do artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594, de 26 de Setembro de
1968.
Por outro lado, compulsando o texto da decisão recorrida (supra,
4.), verifica-se que nesta apenas foram aplicadas as normas do artigo 1º do Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto (preceito que, aliás, remete para um quadro junto ao diploma) e do artigo 30º, n.º 4, do Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
39.780, de 21 de Agosto de 1954, na redacção que lhe foi dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594, de 26 de Setembro de 1968.
Não foi, designadamente, aplicada a norma do artigo 2º daquele Decreto Regulamentar, nem todas as normas referidas no artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594.
Assim sendo, o objecto do presente recurso apenas pode consistir na apreciação da conformidade das normas do artigo 1º do Decreto Regulamentar n.º
42/80, de 22 de Agosto e do artigo 30º, n.º 4, do Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39.780, de 21 de Agosto de 1954, na redacção que lhe foi dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594, de 26 de Setembro de 1968) com o disposto no artigo 62º da Constituição.
7. O Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto, nomeadamente
'[c]onsiderando o disposto no n.º 4 do artigo 30º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 39.780, de 21 de Agosto de 1954, na redacção que lhe foi dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594, de 26 de Setembro de 1968', dispõe o seguinte no seu artigo 1º:
'Artigo 1º Até à aprovação dos planos ou anteprojectos de ampliação das infra-estruturas na linha do Sado, será considerada área non aedificandi as faixas de terreno confinantes, à esquerda e à direita, desta linha férrea, entre os quilómetros
17,200 e 43,500, conforme os limites e distâncias expressos nos desenhos n.º s L-003004, L-003005, L-003006, L-003007, L-003008, L-003009 e L-0030010 anexos a este diploma e referidos ao eixo da via actual, também descritos no quadro junto.'
Do quadro junto, a que se faz referência neste preceito, decorre que, entre os quilómetros 25,600 e 27,000, o terreno a declarar como área non aedificandi abrange uma faixa de 20 metros para o lado esquerdo e de 20 metros para o lado direito da linha férrea. Por sua vez, o artigo 30º, n.º 4, do Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39.780, de 21 de Agosto de
1954, teve a seguinte redacção, por força do artigo único do Decreto-Lei n.º
48.594, de 26 de Setembro de 1968:
'Artigo 30º
[...]
4. O disposto nos n.º s 1 e 2 não obstará a que, por decreto assinado pelo Ministro das Comunicações, seja determinado, em casos especiais em que a segurança dos caminhos de ferro o exija ou em que se preveja a necessidade de ampliação da sua infra-estrutura, que se guarde distância superior à indicada, sem que por esse motivo seja devida qualquer indemnização.
[...].' Do quadro normativo descrito resulta, portanto, que não é permitida a implantação de edifícios em certas faixas de terreno confinantes com a linha férrea. Dele resulta, ainda, a exclusão do pagamento de uma indemnização aos proprietários desses terrenos (cfr. o citado artigo 30º, n.º 4). Ora, na sentença da primeira instância considerou-se que, nos autos, não esteve em discussão qualquer indemnização – já que ela não tinha sido pedida ou negada por qualquer das partes – e que ficava 'afastada assim do juízo de constitucionalidade a norma jurídica em referência, nessa parte'. Nestes termos, e porque no âmbito do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (a disposição com base na qual o recorrente interpôs o presente recurso) os poderes de cognição deste Tribunal se cingem à norma ou à dimensão normativa aplicada no processo, as normas acima transcritas serão analisadas pelo Tribunal Constitucional na perspectiva segundo a qual estabelecem servidões non aedificandi, sem considerar o aspecto da exclusão do pagamento de indemnização.
B) Apreciação da questão de constitucionalidade
8. A questão sub judice é diversa da apreciada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 331/99, de 2 de Junho (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 162, de 14 de Julho de 1999, p. 4401), em que se declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 8º, n.º
2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, na medida em que não permitia que houvesse indemnização pelas servidões fixadas directamente pela lei que incidissem sobre parte sobrante do prédio expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, capacidade edificativa, por violação do disposto nos artigos 13º, n.º 1, e 62º, n.º 2, da Constituição.
Na verdade, esteve subjacente a este juízo de inconstitucionalidade uma consideração que não pode relevar no caso em apreço: a da 'diminuição efectiva da utilidade do prédio (serviente) derivada da imposição legal de uma servidão non aedificandi decorrente de acto expropriativo e relativamente a parte sobrante com anterior aptidão edificante'.
E acrescentou-se o seguinte, no mencionado acórdão:
'[...] Com efeito, apesar de, em si mesma, uma servidão non aedificandi não se confundir com a expropriação, ela suscita pela afectação de uma faculdade essencial do direito de propriedade, um prejuízo do titular do direito de propriedade, que é, pelo menos em princípio, susceptível de indemnização, por força de um princípio geral de indemnização de danos que, no que se refere à afectação do direito de propriedade, radica no artigo 62º da Constituição (como resultante da protecção constitucional de tal direito). Independentemente dessa susceptibilidade abstracta decorrente da tutela constitucional do direito de propriedade, mas que pode sofrer compressões em razão do interesse público, cuja constitucionalidade não cabe, aqui, averiguar em geral, uma razão específica aponta, no tipo de situações agora consideradas, para, por razões de justiça e de igualdade, tornar concretamente exigível uma indemnização quando a constituição da servidão incidente sobre a parte sobrante do prédio surgir na sequência de expropriação de parte do mesmo prédio. Essa razão consiste em que, nesse caso, à extinção do direito de propriedade decorrente da mesma expropriação acresce uma essencial diminuição das faculdades do direito de propriedade quanto à parte sobrante. Embora a constituição da servidão tenha, obviamente, como causa jurídica, a protecção legal do interesse público, a precedência da expropriação cria um efeito global na função económica da propriedade, que, incidindo a sujeição sobre a parte sobrante, faz decorrer histórica e funcionalmente da expropriação uma redução global das utilidades do bem que é objecto do direito de propriedade. A não indemnização da servidão non aedificandi implicaria, por isso, uma compressão desproporcionada do direito de propriedade e uma violação da igualdade na tutela desse direito. São estas razões que justificaram a decisão do Tribunal Constitucional nos Acórdãos fundamento, os quais se limitaram a julgar a inconstitucionalidade do artigo 8º, n.º 2, do Código das Expropriações, por violação dos artigos 62º, n.º
2, e 13º, n.º 1, da Constituição, enquanto admitisse, sem indemnização, a constituição de uma servidão legal na sequência fáctica de um processo expropriativo.
[...].'
9. Também em anteriores acórdãos deste Tribunal – versando, já não sobre o artigo 8º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1991, mas sobre o artigo 3º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1976 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
845/76, de 11 de Dezembro) – se havia ponderado a precedência de processo expropriativo na formulação do juízo de inconstitucionalidade. É o caso do acórdão n.º 262/93, de 30 de Março (publicado no Diário da República, II Série, n.º 169, de 21 de Julho de 1993, p. 7750), em que se julgou inconstitucional tal norma 'na medida em que não consente a indemnização do prejuízo resultante da imposição de uma servidão non aedificandi sobre parcela sobrante de terreno expropriado'.
No caso sub judice, todavia, e como já se disse, não está em discussão uma proibição de implantação de edifícios decorrente de expropriação, mas uma servidão non aedificandi de fonte exclusivamente legal, destinada à protecção de infra-estruturas ferroviárias. Assim sendo, nunca poderiam ser transpostos para o caso em apreço, sem mais, os argumentos utilizados nos acórdãos citados (e em outros que perfilharam idêntica doutrina), que fundaram um juízo de inconstitucionalidade.
10. Ainda que o ius aedificandi deva ser perspectivado como um dos factores de fixação do valor dos prédios, daí não decorre a inconstitucionalidade, por ofensa ao direito de propriedade, de toda e qualquer norma que estabeleça uma diminuição, para os particulares, da utilitas rei.
Com efeito, a vinculação social do direito de propriedade (e, para quem o entenda constitucionalmente consagrado, o 'princípio da vinculação situacional da propriedade do solo') pode justificar a existência de limitações, restrições e mesmo proibições de utilização do solo – isto independentemente de saber em que casos daí deva decorrer uma indemnização, questão que excede o objecto do presente recurso.
E será sobretudo assim quando a limitação, restrição ou proibição resultante da situação concreta do terreno e das suas características intrínsecas – como é o caso daquela que proíbe a implantação de edifícios em terrenos próximos das linhas férreas – não configure uma modificação ou diminuição acentuadamente gravosas da utilitas rei.
Ora, no caso dos autos, não só a vinculação social do direito de propriedade do recorrente justifica a prevalência da segurança das linhas férreas e da circulação regular dos comboios, como também não se vislumbra uma modificação ou diminuição acentuadamente gravosas da utilitas rei decorrente da aplicação do quadro normativo em apreço, atendendo a que a servidão non aedificandi já fora estabelecida antes da (alegada: cfr. fls. 73 do acórdão recorrido) concessão de licenciamento da obra pela Câmara Municipal.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucionais as normas do artigo 1º do Decreto Regulamentar n.º 42/80, de 22 de Agosto, e do artigo 30º, n.º 4, do Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
39.780, de 21 de Agosto de 1954, na redacção que lhe foi dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 48.594, de 26 de Setembro de 1968), na medida em que de tais normas decorre que não é permitida a implantação de edifícios em certas faixas de terreno confinantes com a linha férrea; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 18 de Março de 2003 Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa