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Processo nº 249/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal deduziu acusação e requereu o julgamento sob a forma de processo comum, com intervenção do tribunal singular, contra A, identificado nos autos, imputando-lhe a autoria de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo nº 3 do artigo 148º do Código Penal, por referência à alínea a) do artigo 144º do mesmo diploma, constituindo-se B, posteriormente, assistente nos autos.
Efectuado o julgamento, a sentença proferida, de 12 de Janeiro de 2000, julgou a acusação improcedente e, em consequência, absolveu o arguido do crime de que vinha acusado.
O assistente, inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra, condenatória do arguido pela autoria do referido crime.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 7 de Novembro do mesmo ano, concedeu provimento ao recurso e revogou aquela decisão na parte em que absolveu o arguido e, em substituição, condenou-o como autor material de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 148º, nº 3, com referência ao artigo 144º, alíneas a) e c), ambos do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 700$00, o que perfaz a quantia global de 70.000$00.
Não se conformando com o assim decidido, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que oportunamente motivou, o qual não foi admitido por despacho do desembargador-relator, de 9 de Outubro de 2001, com fundamento na irrecorribilidade da decisão ao abrigo do disposto nos artigos 432.º e 400.º, n.º1, alínea e), do Código de Processo Penal.
2. - Notificado deste despacho, veio o recorrente deduzir reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, pedindo para se
'declarar a inconstitucionalidade das normas contidas nos art.ºs 400.º e 432.º do CPP, na parte em que proíbem o recurso de decisões condenatórias proferidas pelo Tribunal da Relação em recurso de decisões absolutórias da 1.ª instância, ainda que proferidas por Juiz Singular', e que se revogue o despacho reclamado, admitindo-se o recurso, fundamentando-se no seguinte:
'(...)
4 - ... o recorrente arguido esteve legalmente impedido de interpor recurso da decisão proferida pelo Tribunal de Setúbal, por a mesma lhe ter sido integralmente favorável.
5 – Nos termos do despacho recorrido, está inibido de interpor recurso da decisão condenatória proferida pelo tribunal da Relação, por tal não lhe ser permitido face ao preceituado nos referidos art.ºs do CPP.
6 – Isto significa, em suma, que o reclamante arguido se vê condenado sem hipótese de recurso,
7 – O que contraria o disposto no artigo 32.º da CRP, na medida em que o direito de recurso faz parte do núcleo essencial dos direitos de defesa consagrados no referido art. da CRP.'
No Supremo Tribunal de Justiça, por despacho do Vice Presidente, de 23 de Janeiro de 2002, foi decidido o seguinte:
'(...) II. Cumpre apreciar e decidir. No caso em apreço, está em causa um acórdão da Relação em processo por crime a que é aplicável pena de multa ou de prisão não superior a cinco anos, não sendo assim admissível o recurso, para este Supremo Tribunal, nos termos do art.º
400.º n.º 1 alínea e) do CPP. Quanto à invocada inconstitucionalidade pelo ora reclamante, cabe dizer o seguinte: Após a revisão levada a efeito pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional, o direito ao recurso foi expressamente referenciado como uma garantia de defesa do processo criminal no n.º 1 do art.º 32° da CRP . Todavia, como o T.C. também tem sustentado, a Constituição não impõe que tenha de haver recurso de todos os actos do juiz, como também não exige que se garanta um triplo grau de jurisdição (cf., por todos, os Acórdãos do T.C de 19-06-90, BMJ, 398, p.152, e de 19-11-96, DR,II Série, de 14-03-97). Ora, a admitir-se recurso para este S.T.J., estar-se-ía a garantir um triplo grau de jurisdição, o que a Constituição não impõe, por se bastar com um segundo grau, já concretizado aquando do .julgamento pela Relação. Não se julgam, assim, inconstitucionais as normas dos art.ºs 432° alínea b) e
400° n.º1 alínea e) do CPP, uma vez que são estas que, no caso dos presentes autos, proíbem o recurso de decisões condenatórias proferidas pelo Tribunal da Relação em recurso de decisões absolutórias da 1ª instância. . III. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.'
3. - O arguido interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade, pretendendo a apreciação das 'normas contidas nos artigos
400.º e 432.º do Código de Processo Penal, na parte em que não permitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos Acórdãos condenatórios proferidos pelas Relações em recurso de decisões absolutórias dos Tribunal de Primeira Instância, por ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição que é uma das garantias de defesa consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa'.
Já neste Tribunal, ordenou-se a notificação do recorrente e recorridos para efeitos de alegações, circunscrevendo-se o âmbito de objecto do recurso, desde logo, à norma resultante da conjugação da alínea b) do artigo 432º com a alínea e) do nº 1 do artigo 400º, ambos do Código Penal.
O recorrente alegou oportunamente, formulando as seguintes conclusões:
'1ª - A proibição de recurso de Acórdãos da Relação proferidos sobre decisões absolutórias de 1ª Instância, relativamente a penas de multa ou de prisão não inferior a 5 anos, resultante da norma emergente dos dispositivos legais constantes da alínea e) do nº 1 do artº 400 e alínea b) do artº 432º do CPP, conduz, na prática, a que o julgamento do arguido se cristalize num único grau de jurisdição; Na verdade,
2ª - Nestes casos, o arguido está impedido de recorrer da decisão de 1ª Instância por a mesma lhe ter sido favorável e não pode recorrer da decisão condenatória da Relação por aplicação das disposições legais supra citadas.
3ª - Significando isto que o julgamento do arguido se inicia e acaba sem nunca lhe ter sido dada oportunidade de recurso; O que,
4ª - É claramente ofensivo das garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº
32º da CRP, em que tal possibilidade consabida e inequivocamente se inclui.'
Ao pedir o provimento do recurso, pretende o recorrente que se decida ser inconstitucional 'o dispositivo normativo constante da alínea do nº 1 do artº 400º e da alínea b) do artº 432º do CPP nas hipóteses em que o Acórdão condenatório da relação é precedido de decisão absolutória proferida em
1ª Instância, por ofensa às garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº 32º da CRP'.
O magistrado do Ministério Público competente, por sua vez, suscitou a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, por alegada inadmissibilidade deste.
Ponderou-se, com efeito, que o recurso foi admitido por entidade não competente para o efeito, precludindo, desse modo, a possibilidade de apreciação do âmbito do recurso.
Não obstante, para o caso de outro vir a ser o entendimento adoptado e conhecer-se do objecto do recurso, o referido magistrado formulou o seguinte quadro conclusivo às suas alegações, conducentes à improcedência do mesmo:
'1 – A circunstância de o recurso de fiscalização concreta, interposto pelo arguido, não ter sido admitido pelo autor da decisão que, de modo definitivo, operou a aplicação normativa questionada obsta à apreciação do mérito do recurso.
2 – A norma constante do artigo 400º, nº 1, alínea e) do Código de Processo Penal, ao restringir a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos processos que tenham por objecto crimes puníveis com sanções de gravidade considerada menor – garantindo, todavia, o duplo grau de jurisdição, a exercer pela Relação, em via de recurso, sobre a matéria do processo – não viola o direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias de defesa , nem afronta o princípio constitucional da igualdade.
3 – Na verdade, o princípio do duplo grau de jurisdição é assegurado através da possibilidade de as partes ou sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2ª Instância, a precedente decisão, proferida sobre a matéria do processo.
4 – Podendo naturalmente o arguido, inicialmente absolvido, intervir como recorrido no recurso interposto da decisão proferida na 1ª Instância, contraditando a argumentação do recorrente na sua contramotivação e, deste modo, influenciando naturalmente a decisão final que venha a ser proferida pela Relação sobre o objecto do recurso.
5 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
O assistente constituído, se bem que notificado, não alegou.
Ouvido para se pronunciar sobre a suscitada questão prévia, o recorrente nada veio dizer aos autos.
Cumpre decidir.
II
1. - No presente recurso, está em causa a apreciação da constitucionalidade das normas da alínea b) do artigo 432.º e da alínea e) do n.º1 do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na medida em que proíbem o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões condenatórias proferidas pela Relação em recurso de decisões absolutórias da 1.ª instância.
Entende o recorrente que os preceitos em causa vedam as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas no artigo 32.º, n.º1, constituindo um grave atentado ao princípio da dupla jurisdição, pois, tendo sido absolvido na 1.ª instância e condenado pela Relação, não podia nem tinha interesse em recorrer da primeira decisão por lhe ser favorável, e, por força dos impugnados preceitos legais, está impedido de recorrer desta ultima decisão condenatória, sendo condenado 'sem hipótese de recurso'.
Outra foi, como se viu, a interpretação sufragada no despacho recorrido que, fazendo apelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional, conclui pela conformidade destas normas com a Lei Fundamental, entendendo que a admitir-se recurso para o Supremo Tribunal de Justiça estar-se-ia a garantir um triplo grau de jurisdição, o que a Constituição não impõe, por se bastar com um segundo grau, que no caso já tinha sido concretizado aquando do julgamento pela Relação.
No entanto, mister é, previamente, abordar a suscitada questão de não admissibilidade do recurso.
2. - Com efeito, após a decisão proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de indeferimento da reclamação deduzida pelo recorrente, reagiu este mediante a apresentação de um requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez já no Tribunal da Relação de Évora, em peça processual dirigida ao 'Desembargador Relator' do processo, que, por despacho de 19 de Março de 2002, o admitiu (fls. 355-v. dos autos).
Fê-lo, no entanto, relativamente 'à decisão que não admitiu o recurso por si interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão final condenatório proferido nos autos [...]' (fls. 353).
Ou seja, o interessado reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, assim reagindo à decisão que não lhe admitiu o recurso para esse Alto Tribunal, o que, consoante vem sendo uniformemente entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., por todos, o acórdão nº 159/90, in Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990 e lugares aí citados), deve ainda considerar-se um recurso ordinário, para os efeitos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), e nº 2, da Lei nº 28/82. Como se ponderou no acórdão nº 216/93, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., págs. 589 e segs., '[n]a medida em que é um meio de impugnação de uma decisão judicial (relativa à admissibilidade de um recurso), impugnação dirigida não à própria entidade que proferiu a decisão, mas sim a uma outra entidade que a pode assim revogar, esta reclamação é materialmente um recurso, como o notam J. Castro Mendes (Direito Processual Civil – Recursos, AAFDL, Lisboa, 1980, pp. 4, 5 e 71) e, especificamente sobre os recursos para o Tribunal Constitucional, A. Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1992, p. 332)'.
Ora, uma vez que o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – no caso – se pronunciou sobre a reclamação apresentada, aliás confirmando o anteriormente decidido, não é admissível já recorrer do despacho do Desembargador-relator que foi sujeito a essa reclamação, visto o mesmo ter sido consumido pela decisão daquele primeiro Magistrado. O despacho que decide a reclamação substitui o anterior e como que o consome ou apaga (como, impressivamente, se observou no acórdão nº 97/85, publicado no Diário citado, II Série, de 25 de Julho de 1985) pelo que, atento o seu carácter definitivo, ele é
'a única decisão de que se pode recorrer com fundamento em inconstitucionalidade
(ou ilegalidade) de uma norma jurídica quando o respectivo vício se suscitou durante o processo' (cfr. acórdão nº 316/85, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 14 de Abril de 1986).
Não pode, em consequência, tomar-se conhecimento do objecto do recurso.
III
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 unidades de conta. Lisboa, 28 de Março de 2003 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida